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Diário Liberdade
Sexta, 27 Julho 2018 16:54

Nicarágua e a menina no barquinho

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Atilio Borón

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A dolorosa conjuntura actual da Nicarágua tem precipitado uma verdadeira enxurrada de críticas.


 A direita imperial e seus epígonos na América Latina e no Caribe redobraram sua ofensiva com o único e exclusivo objectivo de criar um clima de opinião que permita derrubar, sem protestos internacionais, o governo de Daniel Ortega, eleito há menos de dois anos (em Novembro de 2016) com 72% dos votos. Isto era previsível; o que não o era foi que em tal arremetida participassem, com notável entusiasmo, alguns políticos e intelectuais progressistas e de esquerda que uniram suas vozes às dos linguarudos do império. Um notável revolucionário chileno, Manuel Cabieses Donoso, que me honra com sua amizade, escreveu em sua crítica incendiária ao governo sandinista que “a reacção internacional, o ‘sicário’ geral da OEA, os media de desinformação, o empresariado e a Igreja Católica se apropriaram da crise social e política despoletada pelos erros do governo. Os reaccionários viajam na onda do protesto popular.” A descrição de Cabieses Donoso é correcta; no entanto, dela se tiram conclusões equivocadas. É correcta porque o governo de Daniel Ortega cometeu o gravíssimo erro de selar acordos “tácticos” com inimigos históricos da FSLN e, mais recentemente, tratar de impor uma reforma do sistema de pensões sem qualquer consulta às bases sandinistas, ou actuar com despreocupação incompreensível ante a crise ecológica na Reserva Biológica Indio-Maíz (1). É correcta também quando diz que a direita local e seus senhores estrangeiros se apropriaram da crise social e política, um dado de transcendental importância que não pode ser relativizado ou subestimado. Mas sua conclusão é radicalmente incorrecta, como são as conclusões de Boaventura de Sousa Santos, do saudoso e enorme poeta Ernesto Cardenal e de Carlos Mejía Godoy, em coro com toda uma pletora de lutadores sociais que em suas numerosas denúncias e escritos exigem – alguns abertamente, outros de modo mais subtil – a destituição do presidente nicaraguense, sem sequer esboçar uma reflexão ou arriscar uma conjectura acerca do que viria a seguir. Sendo conhecidos os banhos de sangue que assolaram Honduras após da destituição de “Mel” Zelaya; os que ocorreram no Paraguai logo após do derrubamento “a jacto” de Fernando Lugo em 2012, e antes, o que sucedeu no Chile em 1973 e na Guatemala em 1954; ou o que fizeram os golpistas venezuelanos depois do golpe de 11 de Abril no interregno de Carmona “O Breve” Estanga, ou o que está a se passar agora mesmo no Brasil e as centenas de milhares de assassinatos que a direita cometeu durante as décadas de "governo conjunto" FMI-PRI/PAN no México, ou o genocídio dos pobres praticado por Macri na Argentina; pode alguém em seu juízo perfeito supor que a destituição do governo de Daniel Ortega irá instaurar na Nicarágua uma democracia escandinava?

Uma debilidade comum a todos os críticos é que em nenhum momento fazem alusão ao marco geopolítico em que a crise se desenvolve. Como esquecer que o México e a América Central são regiões de importância estratégica capital para a doutrina de segurança nacional dos EUA? Toda a história do século XX está marcada por esta obsessiva preocupação de Washington com a submissão do rebelde povo nicaraguense. A qualquer preço. Quando para isto foi necessário instaurar a ditadura sangrenta de Anastasio Somoza, a Casa Branca, sem a mais mínima vacilação, tratou de fazê-lo. Criticado por alguns deputados do Partido Democrata no Congresso dos EUA pelo respaldo que concedia ao ditador, o presidente Franklin D. Roosevelt limitou-se a responder que “sim, ele é um filho da puta, mas é o NOSSO filho da puta”. E nada mudou desde então. Quando, em 19 de Julho de 1979, a Frente Sandinista derrotou ao regime somozista, o presidente Ronald Reagan não titubeou por um minuto em organizar uma operação mafiosa de tráfico ilegal de drogas e armas de forma a poder financiar, para além do que já autorizava o Congresso dos Estados Unidos, aos “contras” nicaraguenses. Tudo isto se deu a conhecer sob o nome de “Operação Irã-Contras”. Podemos ser hoje tão ingénuos a ponto de ignorar estes antecedentes ou para pensar que estas políticas intervencionistas e criminosas são coisas do passado? Ademais, trata-se de um país que recentemente planeou a construção dum canal interoceânico, financiado por enigmáticos capitais chineses, que competiria com o Canal do Panamá, controlado de facto, senão de direito, pelos Estados Unidos. Isto não se trata de evidência anedótica, e sim do pano de fundo indispensável à calibração precisa do marco geopolítico em que se desenvolvem os trágicos acontecimentos na Nicarágua.

Tudo o que se expôs aqui não significa minimizar os graves erros do governo de Daniel Ortega e o enorme preço pago por um pragmatismo que, apesar de estabilizar a situação económica do país e melhorar as condições de vida da população, hipotecou a tradição revolucionária do Sandinismo. Porém, um acordo com inimigos é sempre volátil e transitório; ante a menor mostra de debilidade do governo, e ante um erro grosseiro baseado no desprezo pela opinião da base sandinista, aqueles se lançaram com todo seu arsenal à rua, para derrubar Ortega. Transferiram para a Nicarágua boa parte dos mercenários que protagonizavam as “guarimbas” venezuelanas e estão a aplicar agora no país a mesma receita de violência e morte que se ensina nos manuais da CIA. Conclusão: a queda do Sandinismo debilitaria o entorno geopolítico da já brutalmente agredida Venezuela, e aumentaria as chances para a generalização da violência em toda a região.

Quando estava no Foro de São Paulo, que teve lugar em Havana, pude deleitar-me com a contemplação do mar do Caribe. E lá pude divisar, ao longe, um frágil barquinho. Conduzia-o um barqueiro robusto numa extremidade do barco, e na outra havia uma jovenzinha. O barqueiro parecia confuso, e esforçava-se para manter o rumo do barco em meio a ondas ameaçadoras. Acabei por pensar que essa imagem representava com eloquência o processo revolucionário, e não somente na Nicarágua, mas também na Bolívia, na Venezuela, onde seja. A revolução é como aquela jovenzinha. E o barqueiro é o governo revolucionário. Este pode errar, porque não existe obra humana a salvo de erros, e cometer erros que o deixem à mercê das ondas e coloquem em perigo a vida da menina. Ainda por cima, não muito distante se via a sombra abominável de um navio de guerra dos Estados Unidos, carregado de armas letais, esquadrões da morte e soldados mercenários. Como salvar a jovenzinha? Deve-se lançar o barqueiro ao mar e deixar que o barco naufrague, e com ele a menina? Entregá-la à turba de criminosos que se acotovelam, sedentos de sangue, prontos a saquear o país, roubar seus recursos e violar e em seguida matar a jovenzinha? Não vejo como esta pode ser a solução. Seria mais produtivo se alguns dos outros barcos que se encontram no mar se aproximassem do que está em perigo e obrigassem o infeliz barqueiro a corrigir seu rumo. Fazer afundar o barco que leva a criança da revolução ou entregá-la ao navio estadunidense dificilmente podem ser consideradas soluções revolucionárias.

(1) O incêndio, ocorrido em Abril de 2018, consumiu cerca de 5.000 hectares de uma das maiores e mais bem preservadas reservas ecológicas do país.

O texto original se encontra em https://www.pagina12.com.ar/129111-la-nina-en-el-bote

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