Umha delas é o adjetivo “dialético”. Afirmar que um conflito ou um assunto qualquer, ou simplesmente a realidade, é “dialética” parece poupar já qualquer análise concreta sobre o que nom passa de umha referência abstrata e, como tal, carente das determinaçons e mediaçons que lhe dariam um poder explicativo real. Quem de nós nom ouviu afirmar em tom sentencioso que tal explicaçom é “pouco dialética”, ou que estamos diante de um “ponto de vista dialético”, assim, sem maiores esclarecimentos? E quem se atreve a contestar tais afirmaçons sem medo a ser riscado de ignorante, ou, pior ainda, “antidialético”?
Outra dessas categorias, bastante usada e nem sempre compreendida, é a de “fetiche” ou “fetichismo”. Para além da sua aceçom sexual, o seu uso nas ciências sociais e, concretamente, na política do dia-a-dia, costuma referir atitudes idealistas de sublimaçom de realidades às quais se atribuem poderes que realmente nom tenhem. É o caso do “fetiche constitucional”, o “fetiche do consenso”, ou o “fetiche do crescimento económico”, para só dar três exemplos retirados da imprensa dos nossos dias.
É interessante comentarmos brevemente a história da palavra, a categoria científica a que deu lugar e a utilidade que o seu uso concreto pode ter na Galiza de hoje.
Comecemos por lembrar que 'fetiche' é a adaptaçom francesa de umha palavra galega posta em circulaçom polos navegadores portugueses para referir os poderes mágicos atribuídos a certos objetos de culto nas culturas africanas. Sim, referimo-nos ao vocábulo 'feitiço', bem vivo ainda nos países de fala galego-luso-brasileira e que também no seu país de origem, na Galiza, estava ligado a formas de culto animista que, de certa forma, ainda subsistem na nossa cultura ancestral.
Terá sido no século XVIII quando um iluminista francês, Charles de Brosses, acunhou o conceito teórico 'fetiche', estendendo-se por todo o mundo como galicismo que por sua vez tinha derivado de um lusismo que era originariamente galego (o nosso 'feitiço'). O grande dicionário brasileiro Houaiss regista 1858 como data de entrada da adaptaçom gala 'fetichismo' de volta à nossa língua.
Para além da semántica sexual, proposta pola psicologia, interessa aqui comentarmos a categoria adotada por Karl Marx logo no início da sua principal obra, O Capital, por ser ela a que chegou até os nossos dias. Ela resulta de um desdobramento das teorias da alienaçom de Hegel, de Feuerbach e do próprio Marx. No primeiro desses autores, em relaçom à natureza; no segundo, à religiom; e no terceiro, à mercadoria, célula da sociabilidade capitalista que com tanta genialidade como precisom analisou o barbudo alemám.
Com efeito, a conclusom que tiramos do estudo histórico da categoria 'alienaçom' do materialista dialético Karl Marx é o seu caráter social e histórico, com diferente forma segundo o modo de produçom e as relaçons sociais dominantes em cada etapa, sendo o 'fetichismo' umha das suas concreçons particulares no modo de produçom capitalista.
Quando Marx apresenta, logo no primeiro capítulo da sua monumental obra, O Capital, “o fetichismo da mercadoria e o seu segredo”, ele situa o surgimento do 'fetichismo' contemporáneo na passagem da dimensom utilitária dos produtos (o valor de uso) para a dimensom mercantil-capitalista da mercadoria (o valor de troca). Estamos, portanto, na raiz económica que define esse modo de produçom.
É assim que as relaçons sociais entre as pessoas passam a ser realizadas de maneira indireta, através das cousas (mercadorias), no mercado, passando os produtos do trabalho a se constituírem em sujeitos que 'alienam' os seus produtores e produtoras, resultado do que podemos denominar 'inversom fetichista'.
O resultado vê-se facilmente só com olhar para as seçons de economia nos jornais e telejornais, que nos falam do “estado de ánimo” e do “nervosismo” dos mercados, atribuindo caraterísticas próprias das pessoas às formas económicas que dominam a economia de mercado, como se ela nom fosse um produto humano e aparecendo como um ser superior que chega a dominar o seu criador. As mesmas personificaçons servem para “explicar” a situaçom de crise económica no ámbito nacional, internacional e até mundial. Eis o nível da dita “ciência económica” imperante nos nossos dias.
O fetichismo fai-nos assistir, desse modo, à conversom do objeto social em sujeito com vida própria que nos submete. O mesmo acontece na relaçom diária do produtor com a mercadoria produzida. O próprio Marx, admirador de Goethe, exemplificara já no Manifesto Comunista o fenómeno, fazendo referência à relaçom do feiticeiro com as forças mágicas que invocou, em referência à história do 'Aprendiz de feiticeiro' (1). A história de 'Frankenstein', de Mary Shelley, seria também umha boa representaçom do fenómeno.
É preciso compreender essa relaçom caraterizadora do capitalismo para abordar problemas políticos fundamentais como a “ideologia”, a “consciência de classe” ou o caráter histórico –e nom natural– do capitalismo e, portanto, a possibilidade real de ele ser ultrapassado, como aconteceu antes com os modos de produçom que o antecedêrom na história. Mas também para contornar os truques e armadilhas com que o sistema costuma neutralizar projetos políticos surgidos com vontade emancipatória e que acabam derrotados por assumirem umha identificaçom fetichista das ferramentas de reproduçom institucional do capital como espaços fictícios para a disputa do poder: em lugar de manejarem esses espaços, a maior parte desses projetos transformadores acaba submetida à lógica da reproduçom institucional do sistema que queriam combater.
Na segunda parte desta reflexom espero abordar esta questom um pouco mais a fundo.
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(1) “As relaçons burguesas de produçom e de intercámbio, as relaçons de propriedade burguesas, a sociedade burguesa moderna que desencadeou meios tam poderosos de produçom e de intercámbio, assemelha-se ao feiticeiro que já nom consegue dominar as forças subterráneas que invocara”. Manifesto do Partido Comunista, 1848