Prestes a fazer noventa anos, o texto de Benjamin, no entanto, tem uma juventude assaz pertinente, senão à conjuntura mundial, pelo menos a todos os que são afetados negativamente pela crísica realidade política brasileira.
Vladimir Safatle, filósofo brasileiro, disse recentemente que a melancolia dos brazukas diante do atual Golpe Branco de Estado é mais do que uma simples reação triste e impotente diante de algo que foi perdido. Antes, e estrategicamente, é o afeto mais conveniente aos “Golpeadores Brancos”, pois melancólicos podemos muito menos contra eles. Por isso Safatle coloca que, diante do golpe, “nós precisamos fazer uma crítica dos nossos afetos”, mais especificamente da melancolia, pois sem esse trabalho crítico seguiremos afetados negativamente, isto é, melancólicos e golpeados, e os nossos algozes, realizados e potentes.
As manifestações contrárias ao atual golpe brasileiro que mais chamam a atenção, tais como os virtuais&hashtaguicos #nãovaitergolpe, #foraTemer e #voltaDilma, ou os presenciais-quase-hedonistas shows de artistas consagrados da MPB em prol da democracia por exemplo -sem dizer dos alienantes encontros do tipo Ioga ou pedalada contra o golpe-, por mais entusiasmantes e revolucionários que possam parecer, na verdade, são apenas formas coletivas através das quais a melancolia individual, portanto a impotência, é cultivada inadvertidamente. Em primeiro lugar, porque enquanto nos deliciamos ouvindo juntos boas e clássicas músicas e digitamos hasthtags indignadas nas redes sociais virtuais, os golpistas, na “rede social real”, seguem nos golpeando. E, em segundo, durante essa deliciosa alienação, não exercitamos, muito menos inventamos, formas verdadeiramente revolucionárias e afetos efetivamente potentes capazes de rebater os nossos reais inimigos com a força necessária.
Em uma palestra na Favela da Maré, no Rio de Janeiro, a filósofa brasileira Marcia Tiburi chamou de “esquerdo-fofos” aqueles que, contrários à adversidade da realidade política brasileira, agem de forma “cool”, puramente estética e subjetivamente gratificante, em vez de agirem coletiva e objetivamente de modo efetivo. A filósofa fala de uma “esquerdo-fofice” que, mutatis mutandi, é a crítica que Benjamin faz à inefetiva literatura da esquerda burguesa alemã de seu tempo, encarnada na obra de Erich Kästner, demasiado comprometida com os interesses hedonistas das classes média e alta e, por isso mesmo, melancólica. Ou seja, impotente. Por isso, a impotência dos brazukas diante do atual golpe pode encontrar na crítica de Benjamin à “esquerdo-fofice” alemã do início do século passado pistas para deixar esse espaço melancólico, melhor dizendo, de impotência contemplativa, no qual nos encontramos.
Assim como para Benjamin a “poesia radical de esquerda” de Kästner era um mero objeto de consumo destinado “à fruição diletante de sujeitos sem a menor capacidade política”, a esquerdo fofice das nossas atuais hashtags e ocoolpações é a mercadoria mais consumida por quem, antes de mudar o mundo, quer primeiramente um ambiente agradável em volta de si, mesmo que essa fronteira alienante não seja maior do que poucos passos, sejam eles reais ou virtuais. Em ambos os casos, o efeito é um só: sob a entusiasmante aparência da atividade, a vil essência da paralisia melancólica. O que a “poesia de esquerda” de Kästner criticada por Benjamin e a “esquerdo fofice” tupiniquim denunciada por Tiburi trazem é somente a impotência travestida de um falso sentimento de humanidade. Mas para Benjamin, que aqui não se afasta um passo de Marx, a verdadeira humanidade só deve ter um discurso, e este é sobre a luta de classes.
Sem encarnarmos essa questão pungente, somos apenas uma humanidade alienada de si própria. Crentes de que hashtags virtuais e deliciosos shows musicais presenciais são manifestações políticas efetivas, que resolverão “o problema”, somos apenas animais entretidos por um cenário mentiroso que, com efeito e paliativamente, mantém longe dos olhos a única verdadeira cena do espetáculo do mundo de até então, que deveria ser vivenciado por nós se quisermos que seja revolucionado. E essa ópera dantesca que não enxergamos enquanto vestimos a “esquerdo-fofice” é o sempiterno protagonismo dos interesses opressores das elites, que produzem “non stop” uma realidade social cruel e estrategicamente injusta, versus o antagonismo dos interesses populares, outrossim sempiternamente oprimidos e injustiçados.
“Melancolia de esquerda”, de Benjamim é extremamente útil nesse nosso momento crísico para relembrar-nos de que, nas nossas atuais manifestações políticas, hashtaguicas&ocoolpatórias, a própria revolta que proclamamos contra a “burguesia dominante” tem um dissimulado aspecto pequeno-burguês. A pseudoliberdade em postar hashtags nas redes virtuais e em gritar “Fora Temer” nas ocoolpações, embora minta alguma efetividade e prazer, é o meio melancólico mediante o qual permanecemos aprisionados pela classe dominante. Pior ainda é quando essas práticas esquerdo-fofas melancólicas viram rotina, pois, nas palavras de Benjamin, “estar sujeito à rotina significa sacrificar suas idiossincrasias e abrir mão da capacidade de sentir nojo. Isso torna as pessoas melancólicas”. Sobre a rotina virtual da esquerda brazuka, o ativista do movimento 15M espanhol Javier Toret disse que a esquerda brasileira perdeu as ruas porque é ruim na internet. E pela pouca potência das ocoolpações presenciais, podemos dizer que inclusive na rua ela é ruim...
E melancólicos, isto é, envolvidos com a tristeza e a lembrança do que não mais temos, deixamos de enxergar o que temos agora, melhor dizendo, o que nos têm, qual seja, a luta de classe, aquilo de que não deveríamos nos alienar em hipótese alguma. Hashtags e ocoolpações tem pouquíssimo a ver com a luta de classes, ou quase nada. Na verdade, diria Benjamin, “são a mímica proletária da burguesia decadente. Sua função é gerar cliques, e não partidos; sua função literária é gerar modas, e não escolas; sua função econômica é gerar intermediários, e não produtores”. Para o ensaísta alemão, essa “política revolucionária” é apenas a “conversão de reflexos revolucionários em objetos de distração, de divertimento, rapidamente canalizados para o consumo”, isto é, ao modus operandi que fortalece justamente aqueles contra os quais devemos nos revoltar objetivamente.
Quase cem anos antes de Safatle propor que precisamos mais que tudo fazer uma crítica dos nossos afetos melancólicos, Benjamin já nos propunha a seguinte questão: “o que encontra a ‘elite intelectual’ ao confrontar-se com esse inventário dos seus sentimentos?”. O alemão é cruel ao responder que “eles já foram vendidos, a preço de ocasião”. E aqui, reforço, as ocasiões mais escancaradas nas quais nos vendemos ao inimigo são os precisos momentos em que, postando uma “hashtag-de-ordem” a mais, no imenso mar hashtaguico da contemporaneidade-em-rede-social, ou estando nos shows-dos-nossos-artistas-prediletos-contra-o-golpe, achamos que estamos produzindo alguma revolução. Assim deixamos de ver que, na verdade, estamos consumindo, ao modo de lamber os beiços, a nossa própria servidão. E o que é pior, a mercadoria mais conveniente produzida pelos nossos opressores: a impotência, essencialmente melancólica, muito embora travestida de alegria evolucionária.
“Hoje as pessoas afagam estas formas ocas, com gestos distraídos”, relembra-nos Benjamin, mesmo que o seu hoje não seja o mesmo que o nosso. Ou será que ainda não saímos daquele hoje quase centenário? Observando a população brasileira, golpeada antidemocraticamente indo trabalhar todos os dias e pagando subservientemente os altíssimos e injustos impostos que seus inimigos lhe impõem, e, contra o golpe, apenas postando hashtags cantando boas canções, Benjamin é assustadoramente atual: “nunca ninguém se acomodou tão confortavelmente numa situação tão inconfortável”. E essa comodidade é o sacrifício covarde da verdadeira ação política. Benjamim dizia que a esquerda de seu tempo não estava “à esquerda de uma ou outra corrente, mas simplesmente à esquerda do possível. Porque desde o início não tem outra coisa em mente senão sua autofruição”. Autofruímos nossa esquerdo-fofice, não à esquerda, mas de fato aquém de qualquer possibilidade, e, enquanto isso, sem perceber, transformamos aquilo que deveria ser luta política em objeto de prazer. Só que o verdadeiro prazer, não nos enganemos, é daqueles que seguem golpeando-nos cotidianamente: a classe dominante.
Benjamin, em outro ensaio, chamado “O autor como produtor”, fala da esquerdo-fofice dos teóricos revolucionários de esquerda de sua época “para mostrar que essa tendência política, por mais revolucionária que pareça, está condenada a funcionar de modo contrarrevolucionário enquanto o escritor permanecer solidário com o proletariado somente ao nível de suas convicções, e não na qualidade de produtor”, que em verdade é o que o proletariado oprimido é. Produzir, e não apenas pensar eventualmente sobre a produção e a exploração, não é o que Max quis dizer nas suas “Teses sobre Feuerbach”, qual seja, que "os filósofos até aqui limitaram-se a interpretar o mundo de diversas maneiras; o que importa é modificá-lo"? Enquanto apenas pensamos, diz Benjamin, o que temos é uma “logocracia”, isto é, “o reinado dos intelectuais”. E como até aqui a intelectualidade ainda é privilégio das elites, o investimento no império solitário do logos é a manutenção do velho império burguês, opressor e vendedor de melancolia e impotência.
Não que pensar não seja fundamental. Porém, só o pensamento não basta. No mínimo ele deve produzir pensamento. E por acaso não é isso o que quis dizer o dramaturgo alemão Bertold Brecht ao afirmar que “o decisivo na política não é o pensamento individual, mas sim a arte de pensar na cabeça dos outros”? Slavoj Žižek, recentemente, desdisse a máxima de Marx, sustentando que, hoje em dia, importante mesmo é pensar, apenas pensar, e não agir. Se esse só pensamento ao menos pensar na cabeça dos outros, Brecht não se revirará na sua tumba, pois sua pax aeterna será mantida conquanto o intelectual não abasteça o aparelho de produção sem modificá-lo num sentido socialista. Todavia, para o ensaísta alemão, “o lugar do intelectual na luta de classes só pode ser determinado, ou escolhido, em função de sua posição no processo produtivo”. E produção, materialmente falando, é ação, não somente pensamento.
Abastecer um aparelho produtivo sem modificá-lo é a aparência revolucionária por excelência. Quanto mais não seja, porque “o aparelho burguês de produção ... pode assimilar uma surpreendente quantidade de temas revolucionários, e até mesmo propagá-los, sem colocar seriamente em risco sua própria existência”, diz Benjamin, para quem “isso será verdade enquanto esse aparelho for abastecido por escritores rotineiros [isto é, melancólicos], ainda que socialistas”. A rotina melancólica das nossa hashtags de protesto e ocupações em forma de festivais culturais é a transformação não só do golpe, mas também das velhas exploração e miséria em objeto de fruição estética. Nas palavras de Benjamin, é “abastecer um aparelho produtivo sem modificá-lo”. Em outras, é ser reacionário, e não revolucionário. Um belo exemplo disso é a obra do grande fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, que, sob a superfície hipnotizante de seus preto&branco antologizados, cheios de camponeses e garimpeiros miseráveis, faz da miséria humana a mais refinada mercadoria para o consumo burguês.
Mais ainda, Benjamin diria de Salgado que ele “transformou em objeto de consumo a luta contra a miséria”. E como a roda capitalista exploradora funciona melhor com o consumo ininterrupto e crescente, a manutenção da miséria por meio do seu consumo exige a manutenção da própria miséria, não a sua superação. E Benjamin diria a nós que nossas hashtags e ocoolpações outra coisa não são senão “a metamorfose da luta política ... em objeto de prazer contemplativo”, melancólico. Novamente, sua função política é gerar cliques, e não partidos, a única organização capaz de revolucionar verdadeiramente a vil realidade. A esquerdo-fofice tupiniquim diante do golpe é a sensação de liberdade aonde ela não existe. A “produção” de hashtags em favor da democracia e de deliciosos shows contra o golpe, diria Benjamin, “não é um instrumento a serviço do produtor, e sim um instrumento contra o produtor”.
Recusando-nos à imediatidade inócua das nossas hashtags e à espetacularidade disfarçadamente hedonista das nossas ocoolpações haverá mais sobriedade àqueles que verdadeiramente querem mudar alguma coisa. Para Benjamin, deveríamos manifestar a nossa solidariedade com o proletariado do modo mais sóbrio possível. Ao criticar os intelectuais de esquerda de sua época, o ensaísta traz uma boa resposta, dada pelo advogado e filósofo René Maublanc, à pergunta lançada pelo jornal francês Comune à intelectualidade revolucionária da época, qual seja, “Para quem você escreve?”. Essa resposta seria bom que todos os esquerdo-fofos tupiniquins mantivessem viva enquanto retuítam hashtags e vocalizam com seus artistas prediletos nos recreios que chamam de ocupações. A resposta de Maublanc:
“Escrevo quase que exclusivamente para o público burguês. Em primeiro lugar, porque tenho que fazê-lo e, em segundo lugar, porque sou de origem burguesa, de educação burguesa e venho de um meio burguês, e, por isso, tenho uma tendência natural a dirigir-me à classe a que pertenço, que conheço melhor e que posso entender melhor. Mas isso não significa que escrevo para agradar a essa classe, ou para apoiá-la... O proletariado precisa hoje de aliados no campo da burguesia do mesmo modo que no século XVIII a burguesia precisava de aliados no campo feudal. Gostaria de estar entre esses aliados”.
Dessa resposta podemos tirar a seguinte lição: os esquerdo-fofos precisam jogar fora a ilusão de que são a classe oprimida em luta. Não o são! Tanto que podem se dar ao luxo de seguir postando hashtags e cantando às sextas-feiras à noite com seus artistas de estimação mesmo que esses protestos pretensamente revolucionários não tirem do poder aqueles que, intocáveis, oprimem a verdadeira classe oprimida. Os fofo-revolucionários seriam bem mais úteis, e estariam à esquerda de algo real, se assumissem sem disfarce as suas burguesias e as colocassem, como Maublanc, a serviço consciente e efetivo da luta de classes, a verdadeira e inalienável luta do proletariado. Porém, mais sobriamente, como gostaria Benjamin, para quem “a proletarização do intelectual quase nunca faz dele um proletário”.
Usar o tempo e a força física disponíveis para caminhar com professores em greve; segurar cartazes e gritar ao lado de operários nas portas das fábricas; compartilhar presencialmente conhecimento com os bravos estudantes que ocupam suas escolas para que o inimigo não as ocupe; em suma, não deixar os verdadeiros oprimidos sozinhos e em menor número na “rede real” enquanto postamos hashtags em favor deles nas redes virtuais, isso sim é colocar a intelectualidade a serviço da revolução. Permanecer no gabinete, escrevendo manifestos revolucionários, é tão velho quanto a própria opressão que esse manifestos intelectuais pretendem destruir. E isso porque, diz Benjamin, “a luta revolucionária não é entre capitalismo e inteligência, mas entre o capitalismo e o proletariado”. Esquerdo-fofice-mor é achar que a verdadeira luta é a primeira. Tolice alienante, pois ela é a segunda, a luta de classes, que só não resta clara e absolutamente necessária porque gastamos tempo e atenção com hashtags diárias e protestos-shows nas nossas horas livres.
Melancólicos por perderem os direitos de que necessitariam caso fossem a verdadeira classe oprimida, mas que de fato não necessitam por conta dos privilégios ainda envolvidos no elitismo resistentemente inerente à intelectualidade, os nossos intelectuais de esquerda nada mais são que pseudorevolucionários. Por isso a crítica dos afetos de que fala Safatle, pois só ela mostrará que o que com efeito afeta essa intelectualidade de esquerda não é o medo de seguir sendo explorada, coisa que ela nunca foi, mas, covardemente, a angústia de, de algum modo, ser juntada, contragosto seu, à verdadeira classe oprimida. A melancolia das manifestações políticas esquerdo-fofas é pseudomelancólica: é o sentimento de perda de algo que os esquerdo-fofos nunca perderam.
De qualquer modo, não carece que percam algo para se juntarem à luta dos que realmente perdem e perderam sempre, seja com as velhas exploração e miséria, seja com o jovem golpe brasileiro. A privilegiada intelectualidade revolucionaria de esquerda pode contribuir com os desprivilegiados sim. Em primeiro lugar, socializando com eles o privilégio de que sempre dispôs, e, em segundo e mais desafiador lugar, aceitando “ser socializada” na miséria que eles, contragosto deles próprios, sempre estiveram expostos.