A atual barbarização da nossa “nobre” civilização, todavia, não é tão surpreendente assim se relembrarmos do ensaísta político francês Pierre Drieu la Rochelle, que, no início do século passado, de sua vista privilegiada para a Belle Époque, já dizia que “a civilização extrema gera a barbárie extrema”. Essa máxima de la Rochelle tem a virtude de apontar algo de que estamos esquecidos há muito: a viciosidade disso que chamamos evolução.
Desde que o cristianismo se tornou o paradigma da nossa civilização, e depois a ciência, acreditamos piamente que o tempo é histórico, isto é, que o passado corrompido só faz ficar cada vez mais para trás em detrimento de um futuro sempre e cada vez novo e melhorado. O brilho ofuscante da barbárie na berlinda da nossa contemporaneíssima arena histórica, porém, põe em cheque justamente essa visão, melhor dizendo, essa previsão.
Mesmo com a mui martelada e centenária “Morte de Deus” nietzschiana, mantemos cegamente o vaticínio da evolução em coma assistido. E isso quiçá para não reencontrarmos uma sabedoria da Antiguidade, aliás, própria do estoicismo, vertente filosófica fundada em Atenas por Zenão no início do século III a.C., que propunha a mítica repetição do mundo. Esta concepção afirmava que o mundo retorna sempre à sua origem para que os mesmos atos ocorram novamente, ad aeternum.
Da perspectiva estoica pelo menos, não há nada de errado no retorno da barbárie no sofisticado lounge da civilização. Antes, é a sempiterna dinâmica do mundo ele mesmo. Afinal, o que viria após a civilização senão o seu outro alienado? Por mais que tenhamos afastado estrategicamente barbárie e civilização uma História inteira, a Antiguidade tem a nos relembrar que entre aquelas duas não há mais do que um passo; e que, passo-a-passo, passamos de uma a outra, sem escapatória.
Por isso, o fato de nós, civilizados, estarmos aterrorizados com a barbárie que explode na contemporaneidade é espécie de ingenuidade, para não dizer ignorância; seja porque nunca nos alienamos completamente de nossa essência bárbara, mas apenas a encobrimos com a fina seda da civilização, seja ainda porque nos esquecemos da sabedoria dos antigos, que diz que o mundo é um circuito fechado no qual nada que aconteceu desaparece, mas retorna, eternamente.
Como não esperar que a barbárie e o terror que ela suscita reocupem a arena mundial, por exemplo, no reinado do não menos bárbaro e aterrorizante capitalismo, sistema econômico que, mantendo-se e crescendo mediante a desigualdade entre os agentes sociais, e estimulando a competição desenfreada entre eles, estabelece espécie de inimizade irrecuperável -e lucrativa- entre todos?
Aqui vale a pena relembrar o que disse o italiano Umberto Eco, que “o fim do terrorismo não é somente matar cegamente, mas lançar uma mensagem para desestabilizar o inimigo”. O terrorismo, com efeito, é a mensagem que, uma vez enviada, inimigo algum tem como dar “unfollow”. É lê-la ou lê-la. Ou, do contrário, ignorá-la e ser morto. E nesse ciclo do mundo no qual até mesmo continentes inteiros são transformados em inimigos pelo aterrorizante, cego e surdo capitalismo, mensagens inalienáveis e igualmente aterrorizadoras são cada vez mais trocadas.
E se, como colocou Edward R. Murrow, comentarista e repórter americano do meio do século passado, “nada pode aterrorizar toda uma nação a menos que todos nós sejamos cúmplices”, temos que a barbárie que o mundo assiste atualmente e da qual padece aterrorizado outra coisa não é que o produto coletivo desse mesmo mundo, dito civilizado. Ingenuidade ou ignorância, e por que não dizer covardia, é sustentar que são apenas os bárbaros fundamentalistas muçulmanos ou a besta capitalista os apólogos do eterno retorno da barbárie no cerne da civilização.
Levando em conta a infindável dialética entre barbárie e civilização, cuja única síntese possível repousa sob o signo do mito, isto é, da perpétua superação de uma pela outra, porventura podemos concluir que o investimento cego na civilização, paradoxalmente, é a preparação do mundo para mais um retorno da barbárie? Se é assim, então, um estratégico estímulo à barbárie, por sua vez, faria com que a civilidade se fizesse mais presente?
O que está se desenhando aqui? Que a barbárie é o caminho para a civilização? Esse rascunho, todavia, não deveria parece absurdo, uma vez que, anteriormente, como ninguém há de questionar, foi exatamente assim que se deu. Se em determinado momento do circuito fechado do nosso mundo partimos da barbárie para a civilização, não há motivos para crer que tal procedimento seja, digamos assim, alienígena nem tampouco irrepetível.
Só mesmo uma fé cega na ladainha cristã que prega há pelo menos dezesseis séculos que o tempo e a história são lineares, que nada do passado retorna, que há um fim da história mundana no paraíso celeste, blá-blá-blá, para não esperar que, sim, podemos passar, mais ainda, que passaremos muitas vezes, miticamente, pelo processo de encontrar e abandonar certa barbárie para encontrar e abandonar certa civilização, e assim por diante.
Então, aqui, chegou a hora de reencontrarmos o título desse ensaio, qual seja, “barbárie pouca é civilização”, ou o que é o mesmo, “civilização pouca é barbárie”, se se preferir, afinal, se, miticamente, uma e outra se sucedem dialeticamente, a humanidade é as duas em uma infindável relação. Compreender a humanidade, portanto, é saber, em cada momento, a diferença de nível de uma balança que em um prato carrega a barbárie, e, no outro, a civilização.
Dessa visada -e de forma alguma de uma perspectiva idealista que pressuporia barbárie e civilização como formas puras e hipostáticas capazes de existirem separadamente-, somos, materialmente falando, sempre e ao mesmo tempo semibárbaros e semicivilizados. Aqui vale repetir o que escreveu o pós-romancista português José Valentim Fialho de Almeida no final do século XIX, que “dar a um semibárbaro as regalias de um ser culto e consciente é pôr a civilização na contingência de um regresso brutal à barbárie”.
A solução que se rabisca aqui em respeito ao levante intempestivo da barbárie na contemporaneidade civilizada, cujo ícone último, excelente e espetacular é o terrorismo -muito embora, a meu ver, a sistematizada exploração capitalista seja infinitamente mais bárbara; afinal, quantas mortes contam nas costas do capitalismo e quantas nas dos terroristas?-, em suma, essa solução talvez possa parecer radical demais para ser considerada “politicamente correta”. Todavia, ao menos enquanto proposta deve ser pensada até o final.
Parafraseando o provérbio “besteira pouca é bobagem”, propôs-se outros dois, quais sejam seja, “barbárie pouca é civilização e “barbárie pouca é bobagem”. Colocando estes dois últimos como premissas de um silogismo, temos que, conclusiva e logicamente, “civilização é bobagem”. E isso, todavia, para reforçar a ideia de que investir na civilização contra a barbárie é tolice, pois é nada além de dar acesso privilegiado, melhor dizendo, privilegiar a barbárie.
Então, se é assim que dialeticamente a coisa funciona, deveríamos ser promotores, não da civilização, mas da barbárie ela mesma, pois assim ganharíamos aquela no final do empreendimento desta. No caso do maior problema do mundo atual, o terrorismo, sua solução seria levá-lo ao seu extremo, para que, finalmente, tendo dado tudo de si, sido esgotado, e o que é mais importante, aterrorizado absolutamente a humanidade, não houvesse mais espaço algum para ele, somente para o seu outro, a paz, ou a tranquilidade, se se preferir.
Aqui lembro da controversa afirmação dada pelo filósofo esloveno Slavoj Žižek, que Hitler não foi mau o suficiente. O que o filósofo quis dizer com isso -e que muitos não entendem- foi que se o líder nazista tivesse sido absolutamente mau, não haveria, hoje em dia, não só os neonazistas, que ainda veem pertinência nos ideias genocidas da Segunda Grande Guerra, como também a crescente xenofobia que, galopante, redesenha as fronteiras do mundo em descarada recusa ao outro estrangeiro imigrante.
Seguindo a lógica žižekiana, se Hitler tivesse sido absolutamente mau, isto é, se seu ódio aos judeus tivesse restado universalmente monstruoso, ou seja, absolutamente inaceitável para todas as pessoas e tempos futuros, os ódios mortais e insuportavelmente quje vemos presentemente, como aos estrangeiros, negros, homossexuais, mulheres etc., certamente não teríamos ainda hoje solo fértil para a erva daninha da intolerância radical em relação ao outro seguir lançando tantas e profundas raízes.
Seria o caso então de contribuirmos, no núcleo duro e aterrorizado do agora, com espécie terrorismo absoluto, um terror maior que todos os terrores, em suma, uma barbárie totalmente monstruosa que doravante universalizasse uma recusa definitiva ao terror? Em outras palavras, a pergunta que cabe respondermos é a seguinte: será que só o terrorismo é capaz de dar cabo de si próprio? Vendo a atual impotência das movimentações políticas nesse sentido, é de se pressupor que só mesmo a sua versão prévia, o despotismo, primogênito da barbárie, possa realizar tal empresa.
Lembrando da máxima de Paracelso, médico e físico suíço-alemão do século XVI, qual seja, “a diferença entre um remédio e um veneno está só na dosagem”, é preciso investigar qual seria a dose precisa de terror para que ele fosse um veneno a si próprio, ou, tanto faz, um remédio para a paz mundial. Um elixir paradoxal que, aplicado comedidamente, fizesse com que a quase banalizada ignomínia terrorista esgotasse seu "potencial mensageiro" -como colocaria Eco- e que deixasse irremediavelmente claro a todos porque este tipo de “conversa” não deve mais ter lugar nem vez no nosso mundo.
Colocar-se e responder essa pergunta, porventura, não seria a maior vantagem da civilização em relação à barbárie? Ou, em troca, seria a vantagem desta sobre aquela? Linha tênue essa que separa a barbárie da civilização! Outrossim delicada é a dinâmica que faz com uma suscite a outra, dialeticamente, como viemos tentando pensar até aqui. Dando uma passo além de Paracelso, é preciso dizer que não só a dose do “remédio/veneno terrorisa” a ser aplicado contra o terror real é fundamental. Também a fórmula específica dessa paradoxal “poção” é importante, pois assim como o atual mal terrorista é peculiar, outrossim específico deve ser o veneno/remédio contra ele.
Somente me privo de vaticinar que terror e que dose seriam os mais adequados por dois motivos. Em primeiro lugar, porque decerto já me expus e contrariei o senso comum em demasia fazendo do terror a solução ao problema que ele mesmo é, sem dizer da fé no investimento na barbárie como via à civilização. E, em segundo e último lugar, porque mesmo entendendo que sou bárbaro e civilizado ao mesmo tempo, a pequena vantagem que, em mim, a civilização ainda tem sobre a barbárie é suficiente para impedir-me de ser um terrorista ipsis litteris.
“Uma única andorinha não faz verão”, diz o provérbio popular. Do mesmo modo, um bárbaro solitário –hoje em dia um “lobo solitário”- não faz a revoada bárbara capaz de produzir o verão civilizado de que tanto necessitamos. O paradoxal passo civilizatório que viemos tentando pensar até aqui se dará somente quanto tanto o terror quanto a sua dose, digamos assim, medicinais, forem prescritos e administrados coletivamente. Do contrário, teremos um mundo de semicivilizados aterrorizados por um único semibárbaro terrorista. A balança então penderia para a civilização, todavia, com esta sendo apenas peso morto na sempiterna dinâmica da humanidade.