Em 24 de novembro do ano passado, a Força Aérea turca abateu um caça russo sob alegação de que ele violara o espaço aéreo do país. A Rússia negou a acusação. O caça russo caiu em território sírio. Enquanto caía de paraquedas, um dos pilotos foi morto a tiros por guerrilheiros turcomenos que lutam na Síria e que têm ligações com grupos de extrema-direita na Turquia. O outro foi resgatado, mas um dos soldados russos da equipe de resgate, que contava com apoio sírio, também foi morto pelos guerrilheiros. A Força Aérea turca alegou que os pilotos russos receberam advertências, o que o sobrevivente negou. De todo modo, pela alegação turca, o avião teria penetrado no espaço aéreo do país por apenas 17 segundos, entrando apenas 2,1 quilômetros nele. A retaliação foi considerada excessiva por vários dos analistas que examinaram o caso.
A partir daí a Rússia adotou uma série de represálias econômicas contra a Turquia, que foram desde a suspensão de voos charter de turismo entre os dois países até a expulsão de empresários turcos da Rússia e a suspensão das negociações sobre a construção de um gasoduto entre os dois territórios. Também as exportações turcas de alimentos foram prejudicadas. Pelos cálculos do próprio governo turco, estas represálias trouxeram um prejuízo mais de US$ 700 milhões ao país, mas outros cálculos chegam a falar em US$ 2,5 bilhões. Quatro milhões de russos visitam anualmente a Turquia, sendo 3,3 milhões por meio de pacotes turísticos.
As coisas começaram a mudar em junho, quando Erdogan dirigiu uma carta ao governo russo lamentando o episódio e a morte do piloto. No fim do mês, Erdogan e Putin falaram pelo telefone. Mas a reaproximação se consolidou logo depois do fracassado golpe de estado de 15 de julho contra o governo de Ancara. Putin foi dos primeiros chefes de Estado a se solidarizar com Erdogan (junto com o Irã), e este considerou a reação dos governos ocidentais tardia e apenas protocolar.
Para completar o quadro, Erdogan acusou o líder religioso Fetullah Gulen (que já foi seu aliado), que vive nos Estados Unidos, de preparar ou instigar o golpe, e pediu sua extradição, sem resultado. Desencadeou uma severa retaliação contra os seguidores de Gulen e, ao que tudo indica, extrapolando este alvo, atingindo outros opositores. Fechou escolas e jornais, promovendo expurgos nas Forças Armadas, no Judiciário, entre os funcionários públicos e nas universidades. O número de atingidos deve estar chegando a casa da centena de milhar. Esta repressão provocou críticas, ainda que cautelosas e moderadas, no Ocidente. Putin evitou comentar o assunto.
Numa outra frente, Erdogan vinha manifestando sua contrariedade pelo que considera a demora da União Europeia em liberar os turcos da necessidade de obter um visto para entrar em seus países. Este é um tema polêmico dentro da União Europeia, pois o passo seguinte seria o pedido da Turquia para entrar na própria União. A relação entre ela e a Turquia fica assim numa espécie de jogo de puxa e empurra, com negaceio diante da possibilidade desta entrada, mas aproximação porque a União precisa da Turquia para equacionar o problema dos refugiados que vêm da Síria.
A Turquia tem uma das principais forças militares da Otan, e não se sabe o que esta reaproximação com a Rússia vai provocar nesse campo. Também haverá problemas a contornar na frente política, pois a Rússia é tradicional aliada dos curdos, que são tidos genericamente pelo governo de Ancara como inimigos mais incômodos até do que o Estado Islâmico. Por outro lado, os movimentos curdos vem recebendo cada vez mais apoio dos Estados Unidos por seu empenho na luta contra o Estado Islâmico. Evidentemente, o caso da Síria estará na pauta, uma vez que Moscou apoia Damasco, e Ancara está mais próxima de alguns dos grupos rebeldes.
De todo modo, aguarda-se o resultado do encontro entre os dois chefes de estado, que deve ocorrer em São Petersburgo (que Erdogan visita por um único dia) para avaliar o que esse realinhamento vai significar de fato. É a primeira visita de Erdogan ao exterior desde a fracassada tentativa de golpe.
Para completar o quadro, o governo turco anunciou a detenção dos dois pilotos que derrubaram o avião russo em novembro, sob a acusação de participar da tentativa de golpe. A ordem de abater o avião partiu do gabinete do primeiro-ministro Ahmet Davutoglu (hoje rompido com Erdogan), embora ele tenha afirmado que deu uma ordem "genérica", sem se referir àquele avião em particular.
Estará em debate também a possibilidade de alguma indenização à família do piloto morto, embora anteriormente Erdogan tenha se negado a considerar a possibilidade. Mas essa negativa aconteceu antes deste novo passo, que em artigo na Al Jazeera (de Dimitar Beshev, professor visitante na Universidade de Harvard) foi descrito como "senão um caso de amor, pelo menos um casamento de conveniência". Talvez fosse melhor descrever a situação como um "caso extra-conjugal", porque Erdogan nano parece disposto a pedir o divórcio da Otan.
Fonte: RBA