Se descesse do topo de seu moderno farol iluminista, e caminhasse pela areia movediça da obscura contemporaneidade, que sob a superfície mentirosa da globalização esconde a crescente e profunda recusa ao outro -simbolizada mormente pela recusa declarada ao outro imigrante-, será que ainda assim Kant sustentaria o destino cosmopolita da humanidade? Para responder essa pergunta é preciso primeiro compreender a paradoxal “sociabilidade insociável” proposta pelo filósofo enquanto o fundamento da mais excelente organização humana, a Sociedade Civil.
Para o iluminista alemão, sociabilidade e insociabilidade são capazes de harmonizarem-se nos homens porque eles “não procedem de modo puramente instintivo, como os animais, e também não como racionais cidadãos do mundo em conformidade com um plano combinado”. De modo que a inclinação para viver em sociedade, que assegura e abre oportunidades, anda de mãos dadas com uma propensão ao isolamento devido à resistência que os planos e desejos de cada um encontra na íntima relação com os dos demais.
No entanto, diz Kant, “esta resistência é que desperta todas as forças do homem e o induz ... a obter uma posição entre os seus congêneres, que ele não pode suportar, mas dos quais também não pode prescindir”. E é nesse ínterim que se passa da insociabilidade inerente à barbárie para a sociabilidade própria da civilização. Obviamente, não é o bárbaro solitário que realiza o potencial humano, mas o civilizado socializado, e isso porque o uso da razão –a ação própria do ser humano- “desenvolve-se integralmente só na espécie, e não no indivíduo”, coloca o filósofo.
Não obstante a paradoxal “sociabilidade insociável” humana, que por um lado nos leva a viver em sociedade, mas que por outro lado ameaça dissolver essa mesma sociedade, é essa contrariedade mesma que faz o homem evoluir, segundo Kant, de modo patologicamente condicionado. Ora, cada homem quer viver confortavelmente entre seus iguais; quer os benefícios do acordo civilizado com eles; mas estes, que também querem o mesmo, impõem a cada um e a si mesmos obrigatoriedades que, por conseguinte, tolhem a liberdade individual. Eis o “pathos” do qual não nos vemos livres mas sem o qual não avançamos.
Em uma bela metáfora o filósofo esclarece a virtude da “sociabilidade insociável”: “tal como as árvores num bosque, justamente por cada qual procurar tirar à outra o ar e o sol, se forçam a buscá-los por cima de si mesmas e assim conseguem um belo porte, ao passo que as que se encontram em liberdade e entre si isoladas estendem caprichosamente os seus ramos e crescem deformadas, tortas e retorcidas.” E aqui devemos entender esse “bosque” enquanto a Sociedade Civil, o estado ideal para a realização do objetivo cosmopolita humano de que fala Kant.
Sem a limitação individual inerente à pertença a uma sociedade, Kant garante que “cada um, pois, abusará sempre da sua liberdade”. E, como na metáfora acima, se desviará de sua humanidade. Em uma imagem, crescerá “torto”. Absolutamente livre já éramos enquanto selvagens. No entanto, para Kant, vimo-nos compelidos a renunciar à nossa “liberdade brutal para buscar a tranquilidade e a segurança numa Constituição Civil”, pois só limitados por nós mesmos, e em suprema instância por um governante, deixamos ser bárbaros escravos de nossos impulsos e passamos a ser senhores de uma liberdade propriamente humana, qual seja: viver de acordo com uma vontade universalmente válida.
O que Kant quer dizer é que o homem, para atualizar plenamente a sua natureza, tem de galgar para si uma outra liberdade que não aquela experimentada na selvageria primordial. Os homens, começando por limitarem-se uns aos outros em vista de maior conforto e segurança, e, insistindo nesses objetivos, organizando-se em forma de Estados Nacionais, trazem ao mundo -a si mesmos- uma especial liberdade cuja virtude é não poder ser contestada, visto que universalmente acordada.Mutatis mutandis, a civilizada liberdade universal exige que seja abandonada a bárbara liberdade individual.
Portanto, enquanto não impusermos a nós mesmos um conjunto de regras e leis, e principalmente um indivíduo -ou grupo deles- que nos obrigue à conformidade com essas regras e leis, disporemos apenas da menor e mais primitiva liberdade, cujo inconveniente é ser contestável por qualquer outro, seja por palavras, seja pela força. Só que essa Constituição Civil que garante a maior das liberdades não é fruto de uma deliberação pontual e contingente, mas, antes, como o título do ensaio kantiano pretende deixar bem claro, apenas mediante uma “Ideia de uma História Universal com um Propósito Cosmopolita”.
E tal ideia pode ser alcançada, por exemplo, na letra de Kant, “se partirmos da história grega, se seguirmos a sua influência na formação e na desintegração do corpo político do povo romano, que absorveu o Estado grego, e a influência daquele sobre os bárbaros que, por seu turno, destruíram o Estado romano, e assim sucessivamente até aos nossos dias; se, além disso, acrescentarmos episodicamente a história política dos outros povos ... descobrir-se-á um curso regular da melhoria da constituição estatal”.
Essa espécie de pré-hegelianismo kantiano outra coisa não é que a busca de um fio condutor que nos guie ao “absoluto cosmopolita” no qual o inescapável devir político da humanidade se torne, nas palavras do próprio Kant, “a arte política de predição de futuras mudanças políticas”. Desse modo, a condenável xenofobia que vemos crescer no presente pode ser compreendida, por exemplo, como o amargo, todavia necessário primeiro passo na histórica construção de sua condenação universal futura. Mas isso, é claro, se Kant estiver certo, ou seja, se a natureza humana tiver mesmo um “Propósito Cosmopolita”.