Os números totais atribuídos aos candidatos foram de 1.700.030 votos para Crivella e 1.163.662 para Freixo.
A alienação eleitoral, ou seja, a soma das abstenções e dos votos nulos e brancos foi privilegiada por quase 50% do eleitorado carioca. Número elevadíssimo, que relativamente expressa fenômeno nacional, devido a decantada crise da democracia representativa brasileira.
Desse modo, algumas importantes questões são colocadas pelo processo eleitoral carioca e por seus números finais. Seguramente necessárias para a reflexão sobre o comportamento político local e, talvez, tendam a guardar certa possibilidade de atenção para outras paragens municipais e estaduais.
Para o que nos importa em especial, essa eleição carioca merece detida reflexão por parte das esquerdas da cidade e do País, como um todo, já que muitos, em todo o Brasil, canalizaram esperanças para o Rio.
Em primeiro lugar, cumpre observar que o PSOL de Freixo tem se notabilizado por uma empedernida atuação coerente, anos a fio, na cidade e no estado. O seu raio de alianças eleitorais converge sempre à esquerda. Nessa eleição com o velho e bom PCB de guerra.
A atuação parlamentar, na Câmara da capital e na Alerj, manifesta ousadia e combatividade frente aos seguidos governos do PMDB.
Os mais diferentes movimentos sociais, seja operando com reivindicações relativas aos direitos individuais, seja salientando questões coletivas, têm sempre contado com o apoio e a generosa atenção dos parlamentares do partido.
Praticamente, se pode dizer que, com assento nas instituições políticas, somente o PSOL tem oferecido atenção às múltiplas causas da coletividade organizada do Rio de Janeiro. Especialmente entre os servidores públicos, os movimentos estudantil, feminino, negro e de moradores de favelas.
Esse comportamento do partido tem propiciado uma importante legitimidade política junto a frações significativas do eleitorado. Ademais, vem permitindo a construção de uma identidade peculiar e razoavelmente distinta dos demais partidos maiores, notadamente de esquerda, criando uma imagem alternativa e parcialmente antisistêmica.
Com parcos recursos financeiros e limitadíssimo acesso ao horário eleitoral, convenhamos, não é pouco. O fato de Marcelo Freixo ter chegado ao segundo turno pode naturalmente ser considerado um grande feito, em face das máquinas partidárias, religiosas e econômicas em disputa.
Mais ainda em um contexto nacional de criminalização, demonização e desqualificação acentuada das esquerdas pelos subsistemas político, judicial e midiático. A derrota eleitoral, consideravelmente previsível, em nada diminui o belo trabalho de formiguinha do PSOL.
Contudo, a eleição não deixou de apresentar lacunas, limitações e problemas da parte da campanha do PSOL. Esses precisam ser submetidos à reflexão e à correção de certos cursos tomados na eleição.
Uma saliente limitação evidenciada na campanha eleitoral do PSOL foi a abdicação de um exercício de politização mais consequente. Em meio a um golpe de Estado em curso no País, em que a soberania do voto, o patrimônio público e os direitos sociais encontram-se abertamente sujeitos a ataques dos cavalares entreguismo e golpismo capitaneados por Temer (PMDB), não fez o menor sentido diminuir a reverberação desses problemas.
A campanha de Marcelo Freixo explorou, fundamentalmente, questões de ordem municipal, deixando para escanteio graves questões nacionais que afetam diretamente a vida dos municípios, como a malfada PEC 241, que subtrai recursos da saúde e da educação públicas nos próximos 20 anos.
Por outro lado, no início do 2º turno, a campanha chegou a concordar com Marcelo Crivella em reduzir o tempo de propaganda eleitoral televisiva para 5 minutos. Uma baita bola fora, que manifestou escassez programática. Com a prevalência simbólica, informativa e formativa dos conglomerados de mídia, junto ao Povo brasileiro, como a esquerda pode rejeitar tempo maior de intervenção televisiva?
Não fez o menor sentido. Expressou desapreço pelo trabalho de politização. Desconsideração sobre o alcance da TV. E não adianta argumentar que faltavam recursos financeiros para a produção.
O velho e combativo Leonel Brizola sentava-se em uma cadeira e tecia suas considerações. À revelia dos poderes, de dinheiro e de votos. Dizia o que era necessário no momento, desempenhando fecundo trabalho pedagógico em face de amplas camadas da população.
As amigas e os amigos que até aqui persistem na leitura irão indagar: Freixo perdeu por esses motivos, então? Não. Definitivamente não. O contexto nacional e a agenda dos oligopólios da mídia falaram bastante alto.
No entanto, se estamos a nos dirigir, sobretudo, a leitores de esquerda, estes concordarão com o autor que mais relevante do que o voto imediato é o trabalho de esclarecimento e de politização. No caso específico do PSOL, se trataria simplesmente de dar sequência, em maior escala, à sua atuação parlamentar na cidade e no estado.
O principal motivo da derrota eleitoral, mas não política, de Freixo e do PSOL, foi o cotidiano. Explico operando com um exemplo eleitoral remoto.
Faz poucos dias concluí uma pesquisa historiográfica a respeito da eleição de 1960 para o governo do estado da Guanabara. Foi assim que designaram a cidade do Rio de Janeiro, que então deixava de ser capital federal.
O conservador Carlos Lacerda ganhou a eleição por estreitíssima margem de votos. Em segundo lugar ficou o trabalhista Sergio Magalhães, apoiado por comunistas e socialistas. Sergio só perdeu por que Tenório Cavalcanti, político bastante popular, retirou votos do candidato das esquerdas no mesmo terreno eleitoral.
Lacerda ganhou na zona sul da cidade e Sergio nas zonas norte e oeste, precisamente as regiões da cidade em que predominam os votos populares. À época, a geografia da cidade e as classes sociais coincidiam com o perfil do voto. Hoje não mais.
No dia de ontem, Crivella ganhou com muitas sobras especialmente na zona oeste do Rio. Freixo aí penou. Bastante. Muitos vão atribuir um certo elitismo do PSOL, por que alcançou maioria na zona sul e expressiva votação em áreas do Centro e da zona norte. Trata-se, na melhor das hipóteses, de meia verdade. O buraco é mais embaixo e de difícil solução. Senão, vejamos.
Em torno do ano de 1960, a cidade, reitero, somente a cidade do Rio de Janeiro, contribuía com quase 12% da produção industrial brasileira. Ficava apenas atrás do estado de São Paulo. Hoje mal chega a 2%. Em particular, após a crise da dívida externa, nos anos 1980, a cidade entrou em franco processo de desindustrialização.
Isso incidiu em substantivas mudanças no mundo do trabalho. Os empregos industriais foram desaparecendo, as formas de sociabilidade cotidiana de grossa parte dos moradores e dos trabalhadores das zonas norte e oeste do Rio acusaram grandes modificações.
As modalidades cooperativas de relacionamento no dia a dia, típicas do emprego industrial, e os sindicatos, têm sido deslocados por outras formas de sociabilidade e de construção identitária. Em boa medida, uma identidade religiosa.
Como bem lembra o sociólogo Jessé Sousa, as igrejas neopentecostais são as únicas instituições que dizem para múltiplas pessoas que as vidas delas valem a pena, dando sentido e identidade para elas. Isso é extremamente oportuno para se pensar a zona oeste do Rio.
Acrescento: o fenômeno se dá em vastas áreas em que a população está submetida à superexploração do trabalho, não raro sujeita a condições degradantes de trabalho e moradia, excluídas do acesso a diversos bens materiais e simbólicos/culturais.
O trabalho, em suas novas configurações, pouco sentido dá às pessoas. Em regra, os sindicatos, especialmente nos setores de serviços e de comércio, como no Rio de Janeiro, são muito frágeis para a representação, a mobilização e a construção da identidade das pessoas. Na gigantesca informalidade inexistem.
De modo que, para as esquerdas – todas elas –, em nossos dias é muito difícil se inserir no cotidiano de amplos segmentos das classes populares e trabalhadoras. Sem os sindicatos como tradicionais cabeças de ponte, improvável. Em 1960, eles atuavam como intermediários entre uma cosmovisão de esquerda e as camadas populares. Era quase regra. Hoje não é.
As notórias formas alternativas de proximidade são a igreja, fora do controle e da atuação das esquerdas, e o assistencialismo ordinário. Típico dos partidos e caciques conservadores, que operam com a intermediação das bases locais junto às administrações municipal e estadual. Com perfil ideológico, que transcende a geografia, trata-se de um outro campo no mínimo complicado para a atuação das esquerdas – reitero, de todas elas, não apenas do PSOL.
De pouco adianta o candidato chegar nas eleições em áreas sem associações e organismos populares intermediários. Freixo esteve frequentemente nas zonas norte e oeste da cidade durante a eleição. Teve pouca valia. É preciso criar um organismo representativo, mobilizatório e identitário no cotidiano, que tenha capacidade de substituir os tradicionais sindicatos.
E as associações de moradores? A tendência dessas é a operar como os caciques clientelísticos locais. A necessidade de resolução dos problemas práticos do dia a dia tendem a levá-las a compromissos e a estreitamento de relações com caciques locais e a administração de turno.
Qual organismo, então? Essa é a questão chave a ser pensada e respondida. Coletivamente, entre os diversos setores das esquerdas, e digo no plural, pois não tenho recursos nem imaginação suficientes para responder a tão difícil problema prático.
Mas, e a vitória eleitoral de Crivella? Pouco falastes! O leitor permita a esse carioca dizer somente que se apega em Nossa Sra. da Aparecida para proteção da cidade, frente ao que está por vir, de um novo prefeito que apoiou o golpe contra o voto do Povo brasileiro e defende o entreguismo deslavado e a supressão dos direitos sociais patrocinados pelo golpista e espúrio presidente da República.
Roberto Bitencourt da Silva – historiador e cientista político.