Segundo, um poder judicial igualmente suspeito por sua conivência com a corruptela generalizada do sistema político e repudiado por amplas camadas da população do Brasil. Mas é um poder do estado hermeticamente alheio a qualquer classe de controle democrático ou popular, profundamente oligárquico em sua cosmovisão e visceralmente oposto a qualquer alternativa política que se proponha a construir um país mais justo e igualitário. Como se isso já não fosse o bastante, assim como os legisladores, esses juízes e fiscais vêm sendo treinados ao longo de quase duas décadas por seus pares estadunidenses em cursos supostamente técnicos mas que, como é bem sabido, têm invariavelmente um fundo político que é necessário muito esforço para imaginar seus contornos ideológicos.
O terceiro protagonista deste gigantesco furto à soberania popular são os principais meios de comunicação do Brasil, cuja vocação golpista e ethos profundamente reacionário são amplamente conhecidos porque militaram desde sempre contra qualquer projeto de mudança em um dos países mais injustos do planeta.
Ao separar Dilma de seu cargo (por um prazo máximo de 180 dias no qual o Senado deverá decidir por uma maioria de dois terços se a acusação contra a presidenta se ratifica ou não) a presidência temporária recaiu sobre obscuro e medíocre político, um ex-aliado do PT convertido em um conspícuo conspirador e, finalmente, infame traidor: Michel Temer. Infelizmente, tudo leva a crer que em pouco tempo o Senado converterá a suspensão temporal em destituição definitiva da presidenta porque na votação que a retirou de seu cargo os conspiradores obtiveram 55, um a mais do que o exigido para destituí-la*. E isso será assim, embora, como Dilma reconheceu ao ser notificada da decisão do Senado, possa ter cometido erros, mas jamais crimes. Seu límpido histórico nessa matéria resplandece quando é comparado com os prontuários criminais de seus censores, torvos personagens prefigurados na Ópera do Malandro de Chico Buarque quando ridicularizava o “malandro oficial, o candidato a malandro federal, e o malandro com contrato, com gravata e capital”. Essa malandragem hoje governa o Brasil.
A confabulação da direita brasileira contou com o apoio de Washington – imaginem como teria reagido a Casa Branca se algo semelhante tivesse sido tramado contra algum de seus peões na região! Em seu momento Barack Obama enviou como embaixadora no Brasil Liliana Ayalde, uma especialista em promover “golpes brandos” porque antes de assumir seu cargo em Brasília, o qual segue desempenhando, certamente que por pura casualidade havia sido embaixadora no Paraguai, nas vésperas do derrocamento “institucional” de Fernando Lugo. Mas o império não é onipotente, e para viabilizar a conspiração reacionária no Brasil suscitou a cumplicidade de vários governos da região, como o argentino, que definiu o ataque que seus amigos brasileiros estavam perpetrando contra a democracia como um exercício parlamentar de rotina e nada mais.
Em suma, o ocorrido no Brasil é um duríssimo ataque encaminhado não só a destituir Dilma mas também a derrubar um partido, o PT, que não pode ser derrotado nas urnas, e a abrir as portas para um processo contra o ex-presidente Lula que impeça sua candidatura na próxima eleição presidencial. Em outros termos, a mensagem que os “malandros” enviaram ao povo brasileiro foi claro: não votem mais no PT ou em uma força política como o PT!, porque mesmo que vocês prevaleçam nas urnas nós o faremos no congresso, no judiciário e na mídia, e nosso poderio combinado pode muito mais do que seus milhões de votos.
Grave retrocesso para toda a América Latina, que se soma ao já experimentado na Argentina e que obriga a repensar o que foi que ocorreu, ou nos perguntar, em linha com o célebre conselho de Simón Rodríguez, onde foi que erramos e por que não inventamos, ou inventamos mal. Em tempos obscuros como os que estamos vivendo: guerra frontal contra o governo bolivariano na Venezuela, insidiosas campanhas da imprensa contra Evo e Correa, retrocesso político na Argentina, conspiração fraudulenta no Brasil, em tempos como esses, dizíamos, o pior que poderia ocorrer seria que recusássemos a realizar uma profunda autocrítica que impedisse recair nos mesmos desacertos.
No caso do Brasil um deles, talvez o mais grave, foi a desmobilização do PT e a desarticulação do movimento popular que começou nos primeiros passos do governo Lula e que, anos depois, deixaria Dilma indefesa ante o ataque da malandragem política. O outro, intimamente vinculado ao anterior, foi acreditar que se poderia mudar o Brasil somente a partir dos despachos oficiais e sem o respaldo ativo, consciente e organizado do campo popular. Se as tentativas golpistas ensaiadas na Venezuela (2002), Bolívia (2008) e Equador (2010) foram repelidas foi porque nesses países não se caiu na ilusão institucionalista que, infelizmente, se apoderou do governo e do PT desde os seus primeiros anos.
Terceiro erro: ter desestimulado o debate e a crítica no interior do partido e do governo, apanhando em troca uma fraseologia facilista que obstruía a visão dos desacertos e impedia corrigi-los antes que, como se comprovou agora, o dano fosse irreparável. Por algum motivo Maquiavel dizia que um dos piores inimigos da estabilidade dos governantes era o nefasto papel de seus conselheiros e assessores, sempre dispostos a adulá-los e, por isso mesmo, absolutamente incapacitados para alertar sobre os perigos e emboscadas que aguardavam ao longo do caminho. Oxalá que os traumáticos eventos que se produziram no Brasil nesses dias nos sirvam para aprender essas lições.
* Nota da tradução: O número mínimo de votos no Senado para destituir temporariamente Dilma da presidência da República era de 41 votos, portanto foram 14 votos a mais favoráveis ao impeachment do que o mínimo necessário.
Fonte: http://www.atilioboron.com.ar/
Tradução: Diário Liberdade