Em Pedrógão Grande, num dos maiores fogos florestais de que há registo, morreram mais de 60 pessoas. Em Londres, os 600 habitantes atingidos eram quase todos imigrantes e descendentes de imigrantes e ficaram sem nada. Em Pedrógão, as centenas de pessoas das aldeias isoladas, onde os bombeiros mal podem chegar, não eram ricas e muitas perderam tudo.
Num caso como noutro as causas dos fogos terão sido naturais: um curto-circuito num frigorífico, e um raio que incendiou uma árvore. Não há portanto a desculpa útil da “mão criminosa”.
O prédio de Londres era de habitação social, mas fora entregue pelo Estado à “gestão privada”. Sofrera obras de “melhoramento” em que foi aplicado um isolamento térmico no exterior facilmente combustível, responsável pela propagação do fogo a todo o imóvel e pela emissão de fumos tóxicos.
Para tornar mais rentável (e apetecível) a gestão privada, tinha sido aumentado o número de apartamentos (seis por piso) suprimindo uma escada de serviço. Foram eliminados os detectores de incêndio e não havia sistema de combate ao fogo, apesar dos alertas repetidos dos moradores. Tudo dentro da lei: as normas de segurança mais apertadas foram revogadas a fim de facilitar o negócio aos gestores privados.
Casa roubada, trancas à porta: nos últimos dias, mais de 70 prédios de Londres em condições semelhantes foram evacuados e vão ser sujeitos a “medidas correctivas”.
Em Pedrógão e arredores, faltaram os meios adequados de combate ao fogo. Falhou o sistema de comunicações (Siresp) que devia pôr em contacto os diversos órgãos de intervenção. O Siresp, que custou 500 milhões de euros, foi negociado pelos mesmos bandidos que tiraram proveito do BPN e da Sociedade Lusa de Negócios, sem que ninguém os tenha chamado à pedra. E depois foi adjudicado pelo PS. É legítimo pensar que os 47 mortos na fatídica estrada 236-1 podiam estar vivos se as comunicações funcionassem e a GNR soubesse a tempo que tinha de cortar a via.
Antes desta aflição toda, havia e continua por resolver o caos da floresta e do ordenamento do território, em grande parte responsável pela propagação fácil dos fogos e pelo isolamento das populações.
A propriedade florestal, esmagadoramente de pequena dimensão, não está tratada nem devidamente cadastrada. Muita dela está ao abandono. O Estado detém escassos 3% da floresta, quando na União Europeia a média é de 40%. Na Grécia, Espanha e Itália, países com clima idêntico ao nosso, a floresta tem aumentado, e por cá diminuído.
Para “economizarem” e “racionalizarem”, os governos extinguiram os guardas florestais (PS) e os serviços florestais (PSD-CDS) e acabaram com as normas que restringiam a propagação do eucalipto (PSD-CDS), facilitando a vida à indústria da pasta de papel. E em cima disto o PS apresentou em Março uma lei que atribui a gestão das terras abandonadas, não ao sector público, mas a empresas financeiras. Virão depois, nesta lógica, as medidas que tornem “atractiva” a gestão privada.
Um colunista, involuntariamente cómico, dizia sobre a desgraça de Pedrógão que a chave para acabar com os fogos é “desenvolvermo-nos” como país — passará então a haver menos fogos incontrolados, tal como diminuíram os mortos em acidentes de automóvel graças ao cinto de segurança e aos testes de alcoolemia. É uma fé, pelo menos, duvidosa: basta atentar no fogo de Londres, capital de um país “desenvolvido”.
Esta fé no “desenvolvimento” esquece deliberadamente que o progresso se opera sempre dentro de limites estreitos, e agora cada vez mais estreitos. O “desenvolvimento” tem por condição — render. E não rende dar condições de vida seguras às pessoas, não rende prevenir os fogos. Mas rende a gestão privada dos bens sociais, rende o negócio de apagar incêndios todos os anos. Tal como não rende a medicina preventiva, comparada com a medicina curativa.
Alguém lembrou em tempos que o capital desenvolvido não precisa de falsificar a mercadoria ou roubar no peso como o industrial ou o comerciante de vão-de-escada — porque os seus processos de acumulação o colocam acima disso. Mas é assim quando o capital se expande e progride. Agora que chegou à velhice e decai, parece tender a voltar aos velhos métodos; simplesmente, à escala dos grandes potentados económicos. É que à falta de vontade de sempre soma-se hoje a sua incapacidade para acorrer às necessidades, muito mais vastas e complexas, da colectividade humana — com efeitos de crime social.