Os regimes políticos usam o espetáculo e abusam da coreografia na exata medida em que se revelam opressivos e empobrecedores dos povos. Se há coisa que as classes políticas sabem fazer é aplicar a regra do pão e circo, popularizada pelos antigos romanos. E, hoje, vivendo um feliz concubinato com as cadeias de televisão, injetam circo na plebe com um ritmo e uma variedade que os romanos não tinham; há muitos mais rodriguesdossantos ou gomesferreiras do que os gladiadores que os imperadores romanos podiam ostentar.
A observação de um curto video[1] inserido na solenidade que envolveu o doutoramento honoris coisa do Guterres é uma rara oportunidade, oferecida à plebe, de ver desfilar tão grande mole[2] de membros da lusa intelligentsia.
Fez parte da coreografia um luzido desfile, devidamente abrilhantado com a presença de um conhecido leitor de contracapas, investido como supremo magistrado da nação, por obra e graça de Deus Nosso Senhor. Se tivessem incorporado uma elefante no cortejo teriam rivalizado com a embaixada ao papa no século XVI, tal o colorido e a distinção dos marchantes; consta nos mentideros que a eurodeputada Ana Gomes chegou a ser pensada para esse papel.
À frente do desfile vem uma banda, de metais reluzentes e, de acordo com uma tradição centenária, com os músicos encadernados em uniformes militares. Dentro do mesmo espírito castrense surge, logo a seguir à banda, um grupo de velhos alabardeiros de laço branco e carecas luzidias; sem o garbo, convenhamos, da guarda papal que usa o mesmo adereço bélico. Se tivessem em atenção a evolução tecnológica deveriam ter transportado uma kalash ou uma carripana que exibisse um drone daqueles que a tropa portuguesa vai comprar por 500,000 euros cada um, com as comissões corruptas incluídas, claro está.
Logo a seguir começa a vera marcha lenta, compassada, da intelligentsia portuguesa, mais precisamente coimbrã. Distinguem-se sobretudo pelas belas echarpes que contrastam com aquelas capas negras e compridas como as usadas pelos juízes que aplicam a lei nos processos que não prescrevem ou que exaram hilariantes despachos proibindo que os corruptos, quando colocados à solta, comuniquem entre si. São capas mais sóbrias do que as dos jovens tontos que comemoram a entrada na universidade e protagonizam as queimas das fitas, as recepções aos caloiros, as praxes, preparando as meninges para enfardarem o conhecimento transmitido pelos lentes, com monumentais bebedeiras.
A intelligentsia apresenta-se com um género de capacetes prussianos, não de aço mas de malha, para que o ar arrefeça a efervescência que vai nas suas cabecinhas; o cruzamento de bits e bytes, de muitos zeros e poucos uns, exige arrefecimento, como sabemos pelos computadores.
Achamos, porém que é mais adequado equiparar esses adornos a abat-jours invertidos. E como se verá, no luzido desfile, eles apresentam-se de muitas cores, em cuidada sintonia cromática com as echarpes. E não se misturam; grupos de abat-jours laranja marcham separados dos azuis embora a combinação caísse bem. Porém, logo atrás dos azuis vêm os amarelos (a mais numerosa das confrarias do abat-jour, só de machos) o que também joga bem; ouro sobre azul.
A seguir aos amarelos ressaltam as echarpes grenats com abat-jours bourdeaux da primeira confraria que apresenta cores distintas entre as barretinas e as macias echarpes; a criatividade também está presente! Há ainda uns que apresentam sobre a cabeça e sobre os ombros um desenho colorido que nos faz lembrar o usado nas botas tradicionais da Gronelândia ou as camisas bordadas da Transilvânia. E podem ver-se duas damas de roxo que talvez tenham reutilizado a indumentária presente em cerimónias da semana santa. Não se observam confrarias com fardas verdes porque os seus membros estarão em ação de protesto por o campeonato de futebol ter sido canalizado para o Benfica e contra a presença do Presidente da República que, como adepto do Braga, também pende para o vermelho.
A equiparação a abat-jours é um sinal de atenção dos seus portadores para com os mirones que nem sempre estarão equipados com óculos de sol. De facto, o brilho do conformismo e do pedantismo da intelligentsia é tal que poderiam ofuscar e provocar danos oculares nos basbaques, cuja presença, aliás não se fez notar na cerimónia.
Ei-los que passam, novos e velhos, sem procurar a sorte noutras paragens, noutras aragens, entre outros povos, ei-los que passam velhos e novos[3], altos e baixos, gordos e magros, homens e mulheres, barbados e pelados, calvos e cabeludos, com ar solene e marcha cadenciada pela banda. Parece uma criativa mistura de graves cónegos, juízes de tribunal constitucional e marchantes de carnaval, só faltando o colorido de contratadas brasileiras de vestes parcas e fartas bundas, ondeando ao som da tuba.
Quando a banda faz descansar os instrumentos, ou porque sendo o cortejo longo, já se não consegue ouvir o seu som, ressalta a solenidade da cabra para marcar a cadência, dlim, dlão…
Mais atrás, um intervalo ao predomínio pesado das opas pretas encimadas por abat-jours. Eis que surge uma confraria, cujas fatiotas e a preferência por chapéus de mercador de Veneza, em vez do abat-jour, fazem lembrar uma passagem de doges na praça de S. Marcos.
Alguns trazem uma medalhinha ao peito que, para se tornar mais visível cai, pendurada, de fitas largas de bom tecido. Porventura serão daquelas distribuídas nos dezdejunho pelo PR de serviço, a distintas figuras do regime como o Bava, o Granadeiro, o Ricardo Salgado e afins; o que deve ser objeto de grande afã todos os anos, pois quase todos os corruptos, vigaristas e mandarins já foram contemplados. Felizmente, a seleção ganhou o Euro de futebol e mais alguns atletas brilharam, tendo direito a medalhas, animando a sua produção e cujos efeito no PIB alegraram o Costa e o Centeno.
A propósito de medalhas, sabemos que os assessores do PR andam a percorrer a lista alfabética dos nomes dos portugueses para manter viva a tradição da medalha e a indústria que as produz. Um dia desses bateram à porta de um amigo que se chama Aarão, e notificaram-no para comparecer no próximo dezdejunho para receber uma medalha. Modesto e pouco dado a fantochadas, Aarão recusou. Passado um mês, as finanças citaram-no para pagar uma coima por desrespeito para com a pátria.
Não podemos deixar de lembrar neste contexto de actos solenes, o presidencial chilique na Guarda, em 2014 e que tivemos a suprema felicidade de ocasionalmente estar com um aparelho de tv aceso perto dos olhos e comentar oacontecimento[4]. E sempre recordamos com saudade os silêncios de Cavaco, contrastantes com as intervenções de Marcelo cuja frequência se confunde com o permanente ruído das autoestradas.
Voltando à marcha de Coimbra, lá mais para o fim da peça, não podia deixar de ser, surge o leitor de contracapas que adora multidões, fotografias, exposição pública; embora menos do que a sua imagem ao espelho. Assim, todos os lentes da academia foram confortados com mais um discurso, captado pelos plumitivos, por dever de ofício, embora nada haja neles de relevante, para ser espalhado por aí, aos frequentadores habituais do circo televisivo. Dois passos (que aziaga palavra!) atrás do Marcelo, marcha o Costa, ambos de gravata azul, símbolo do feliz concubinato .
Nem só de pão vive o Homem; convém que se embebede de circo.