SE bem que a partir dos anos 60 já o Departamento de Defesa do governo dos Estados Unidos (EUA) possuía um design lógico que permitia ligar ordenadores distribuídos entre diferentes universidades e centros de pesquisa do país — originando, dessa forma, a grande rede de interconexão que hoje conhecemos como Internet — não foi até 1993 que a World Wide Web foi lançada ao domínio público.
Mais na frente e com a criação do Mosaic, a primeira versão de um navegador ou browser, e outras ferramentas gráficas simples para o uso da rede, o número de hosts ou equipamentos de computação ligados à Internet cresceria aceleradamente, tanto que hoje resulta um espaço indispensável para o acesso a órgãos da mídia (meios informativos, redes sociais, fazer download de arquivos e vídeos) e, inclusive, como ferramenta de trabalho.
Contudo, a possibilidade de utilizar esta tecnologia e seus conteúdos pode mudar, segundo a quantia que possua o cliente no bolso ou em seu cartão de crédito, para pagar aos provedores dos serviços da Internet.
É uma realidade que vem sendo aplicada desde julho de 2017, com a proposta da nova lei, mas virou notícia quando, em 14 de dezembro, a Comissão Federal das Comunicações (FCC, por sua sigla em inglês) dos EUA aprovou, por três votos a dois, dar cabo das medidas promulgadas, em 2015, pela administração de Barack Obama, que impediam às companhias bloquear o acesso a sites, demorar ou acelerar a conexão e cobrar diferente pelo serviço oferecido.
Agora, essa ideia de equidade, de neutralidade na rede acabou.
Segundo expressou o jornal El País, a mudança — vista como uma vitória da liberdade — é coisa dos grandes provedores, já que gigantes das telecomunicações como Comcast, AT&T ou Verizon se juntaram com o governo de Trump para quebrar a regulamentação legal que evitava, precisamente, que essas empresas impusessem suas condições no mercado e os conteúdos da rede.
Neste sentido, as consequências da mudança podem ser mais profundas do que se aprecia com um simples olhar, pois em um contexto de não neutralidade os clientes têm a obrigação de pagar quantias adicionais ou comprar pacotes de serviços às companhias telefônicas para poder acessar a alguns sites.
VOZES CONTRA
O cancelamento da neutralidade prevê restaurar a liberdade, estabelecer uma internet melhor e mais barata. Continuará a proteção ao cliente e seu acesso não será limitado. Porém, não é nosso trabalho determinar quem ganha e perde na economia da Internet.
«O governo não regulamentará como se deve lidar com os provedores, pois estes terão incentivos para enfrentar a próxima geração de redes e serviços», comentou publicamente o presidente da FCC, Ajit Pai, após conhecer a notícia.
Embora as recentes medidas tenham seus defensores, não são poucos os critérios que alegam que a decisão entranha uma ameaça para a Internet, a livre concorrência e a inovação.
Uma carta publicada sob o nome Os pioneiros a favor da neutralidade, assinada por 21 pessoas — entre elas Vinton Cerf, considerado o pai da Internet; Steve Wozniak, cofundador da Apple; Tim Berners-Lee, criador da WWW, e a presidenta da Fundação Mozilla, Mitchell Baker — faz declarações públicas para defender o que consideram uma grande perda da liberdade para a sociedade.
«A neutralidade da rede é chave para prevenir que os provedores com acesso bloqueiem o conteúdo, as webs ou aplicações, que possam tornar mais devagar ou mais rápidos os serviços ou que os classifiquem por categorias para cobrar por navegar pelas redes mais rápidas. A lei elimina a supervisão de práticas discriminatórias», explicaram na carta.
Devemos mencionar que em meados de novembro, quando foi conhecida a proposta da FCC para propor as mudanças acerca da neutralidade na rede, centenas de companhias tecnológicas dos EUA publicaram sua inconformidade.
Nessa ocasião, a companhia Facebook disse ficar «desiludida de que a proposta da FCC fosse a favor de manter as fortes proteções de neutralidade na Internet, que permitem o acesso para todos», assinalou a BBC Mundo.
No entanto, um grupo conformado por cerca de mil negócios nos EUA, escreveu uma carta à comissão, arguindo depender de uma Internet livre para que as grandes companhias das redes não possam discriminar pequenas empresas, como eles.
Inclusive, na própria FCC, foram escutadas vozes divergentes ao ser aprovada a regulamentação, em 14 de dezembro.
A comissária democrata Jessica Rosenworcel, comentou que «a medida coloca a Comissão do lado equivocado da história, da lei e da Internet».
A «NÃO NEUTRALIDADE»... EXPERIÊNCIAS EM OUTROS PAÍSES
Um exemplo do que acontece quando se navega em uma rede menos igualitária, é o caso do Portugal. Como membro da União Europeia, este país é regido por leis que proíbem às empresas diminuir a conexão ou bloquear o acesso a determinados serviços; contudo, o que não se regulamenta é oferecer contratos nos quais certas aplicações ou sites não consomem dados do pacote geral.
Isto é, um cliente pode navegar pelos conteúdos de um operador da Internet, com um pacote de livre aceso, mas se quer acessar a outros serviços fora do limite deste operador, teria que pagá-los.
«No caso da Guatemala, por outro lado, as companhias oferecem pacotes pré-pagos com acesso não a um conjunto de serviços semelhantes, mas sim a só uma aplicação», explicou a BBC Mundo, Renata Ávila, assessora da organização World Wide Web Foundation, em temas de direitos digitais.
«Então os clientes optam por ter um cartão de telefone com WhatsApp gratuito ilimitado, outro com Facebook e outro com alguns megabits de navegação diários. Depois, mudam os cartões segundo suas necessidades ou diretamente usam celulares que têm mais de uma entradaI, relatou.
Segundo Ávila, o mais desfavorecido por esta hiperfragmentação do acesso à internet é aquele que tem pouco dinheiro para se conectar, «que é o cliente quem justamente se deve empoderar, ajudar a ampliar seu horizonte, que procure trabalhos através do sistema on-line. São clientes que priorizarão o produto mais barato e indispensável como é a Internet de consumo e passiva, mas não será possível acessar a uma Internet de criação e inovação».
Se bem que os grandes provedores da Internet nos Estados Unidos ainda não falam de seus planos futuros no contexto da não neutralidade, é certo que a nova medida abre o caminho para eles condicionarem o acesso que têm os clientes à informação.
Uma das possíveis ramificações seria que as companhias telefônicas se empoderem ainda mais, podendo limitar o acesso a alguns conteúdos. Mas, a nova conjuntura afetaria, além dos clientes, as pequenas ou novas empresas que surgem no contexto da web.
Para estas últimas já resulta difícil concorrer com consórcios reconhecidos como Google, Amazon, Netflix ou Facebook, mas se agora somamos que têm que pagar às companhias operantes tarifas especiais por um acesso preferencial à Internet, mas provavelmente aconteça que a qualidade de seus conteúdos se veja pior e abranja um número menos de clientes, pois uma grande porção não poderá assumir os novos preços.
Ainda que seja limitada a recente regulamentação no território dos Estados Unidos, a preocupação assenta em que a maioria dos serviços que hoje conformam a rede são desenvolvidos por companhias desse país. Daí que não sejam poucos os especialistas e diretores executivos (ceo) de empresas das telecomunicações que alegam que a chamada Internet de duas velocidades, ou a Internet para ricos e pobres — diferenciadamente — se aproximem mais do que imaginamos.
Talvez muitos deles não perceberam que a medida só incrementa a brecha digital, pois as tecnologias da informação e as comunicações têm, há tempo, níveis desiguais de acesso, marcados pelo desenvolvimento de cada país, os níveis das receitas dos sujeitos, que estabelecem prioridades segundo isto, e até a alfabetização para conseguir o uso ótimo destas ferramentas.