Dizem os que viveram a ditadura de Anastacio Somoza antes do triunfo da Revolução Sandinista (1979) que, desde então, Nicarágua não sofria ações tão dantescas como a ocorrida contra essa família.
O terror e o desrespeito pela vida humana invadem as ruas desta terra de lagos e vulcões, onde eclodem a violência, o ódio e o rancor instigados pelos que pretendem desestabilizar o país.
Um dos sobreviventes do incêndio, cuja identidade se absteve de revelar por segurança, conta com tristeza que só pôde salvar a duas primas, porque, ao retornar, as chamas já haviam tomado a casa, onde funcionava uma fábrica de colchões com material altamente inflamável.
O negócio era de uma família sandinista do bairro Carlos Marx, em um setor assediado por vândalos desde o início da crise no país. O jovem, que pôde sair a tempo da moradia de três andares, relatou que delinquentes tentaram entrar com o pretexto de procurar supostos franco-atiradores escondidos no terraço. Bombas molotov e morteiros artesanais lançados por indivíduos encapuzados, segundo afirmam vizinhos, trouxeram a desgraça a essa família, uma das vítimas da onda de violência, que já custou a vida de pelo menos 168 pessoas e provocou mais de 2.100 mil feridos, de acordo com as cifras oficiais.
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Grande parte da população vive aflita. Criminosos com armas de fogo, morteiros e bombas molotov realizam atos de terrorismo e próprios do crime organizado em vários departamentos, segundo a Polícia. Os incêndios, bloqueios de vias, agressões e saques à propriedade pública e privada se intensificam, apesar do clamor pela paz.
O país atravessa uma crise sociopolítica sem precedentes nas últimas décadas. A escalada de violência eclodiu em 18 de abril em meio a protestos contra reformas no seguro social, mais tarde revogadas, mas que não detiveram as manifestações, às quais se somaram outras demandas políticas.
A espiral de violência e os fechamentos de estradas (tranques) geram severos danos ao país, sobretudo para as famílias pobres, assegurou o presidente da Comissão de Economia e Orçamento da Assembleia Nacional, Wálmaro Gutiérrez. Tal situação viola o direito à livre circulação, afeta o acesso ao trabalho, centros de saúde, escolas, e o abastecimento de alimentos e combustíveis, segundo denúncias de povoadores.
A Câmara de Comércio e Serviços da Nicarágua estima perdas de pelo menos 700 milhões de dólares na região centro-americana, a raiz do bloqueio de estradas, onde chegaram a estar parados cerca de seis mil caminhões de carga.
Analistas opinam que o impacto negativo da crise sociopolítica na economia nacional é praticamente irreversível.
O Banco Central estimou perdas no valor de 260 milhões de dólares em rendimentos, 157 milhões em investimento estrangeiro e direto, e 270 milhões em exportações, só em uma contabilização realizada até o dia 21 de maio. A isso se somam 58 mil empregos a menos, grandes impactos ao turismo e uma desaceleração na taxa de crescimento em atividades agropecuárias pela não comercialização de produtos, segundo avaliações do ente emissor.
'As famílias estão enfiadas em suas casas com uma angústia horrível e os setores midiáticos que manipulam isto a partir de um interesse político pretendem nos lançar a uma guerra que já vivemos (...) O diálogo nacional é a última alternativa para seguir adiante', expressou o jornalista Absalón Pastora.
O CAMINHO PARA A PAZ E SEUS DETRATORES
O governo afirmou que a situação de violência criminosa gerada por grupos políticos de oposição com agendas específicas, constitui uma conspiração que viola a Constituição da República, e pretende destruir a segurança e a vida das famílias nicaraguenses.
Também repudiou as acusações desses grupos que 'em uma provocação doentia e sem precedentes no país, se confabulam para denunciar ataques inexistentes, e depois agridem e produzem vítimas para culpar as instituições da ordem pública'. 'É totalmente perverso, abominável provocar a dor, o crime, a aberração, e depois acusar. Quanto descaramento ou quanta maldade', denunciou a vice-presidenta Rosario Murillo, ao lamentar a morte dos seis cidadãos no incêndio e o assassinato de um sandinista, cujo corpo foi profanado.
A opositora Aliança Cívica pela Justiça e a Democracia culpou o governo pelos incidentes. Em resposta, Absalón Pastora denunciou que a mesma 'está cumprindo uma agenda eminentemente política, e não para mudar a nação, mas para derrubar o governo eleito e se colocar em seu lugar, em nome das vidas perdidas'.
O presidente Daniel Ortega reconheceu que têm o direito de criticar, mas não de conspirar para destruir, promover a violência e, pior ainda, buscar nos Estados Unidos os grupos políticos mais extremistas, racistas, exterminadores, para que financiem planos de desestabilização no país.
Por sua vez, nas redes sociais leva-se a cabo uma intensa campanha de desinformação e manipulação, replicada pelos meios de comunicação alinhados à direita, para gerar confusão e exacerbar as tensões, segundo advertem internautas, observadores, acadêmicos e analistas políticos.
Diante dessa situação, Ortega pediu continuar trabalhando pelo diálogo nacional, pela paz, a justiça e a democracia na nação; todavia, a oposição propõe agendas que conduzem a um golpe de Estado, segundo advertiu o chanceler Denis Moncada.
Enquanto o governo tenta dialogar com os setores opositores para superar a crise no país e desenvolve um cronograma para o fortalecimento das instituições democráticas, mediante a implementação de recomendações da Missão de Acompanhamento Eleitoral da Organização dos Estados Americanos (OEA).
A administração assegura que tem trabalhado aspectos relativos à configuração e composição do Conselho Supremo Eleitoral (CSE), como suporte institucional fundamental para as garantias eleitorais e eleições livres, justas, democráticas e transparentes.
Nesse caminho, a Assembleia Nacional aprovou a renúncia do presidente do CSE, Roberto Rivas, uma das demandas da oposição.
Com a Conferência Episcopal como mediadora e testemunha, a mesa de diálogo acordou recentemente a pronta presença da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, a OEA e uma missão da União Europeia, para contribuir com a saída da crise.
Apesar de se pactuar o fim da violência, as agressões continuam e com elas a aflição, o temor e o desespero.
'Nosso maior compromisso, nossa obrigação, é lutar e defender a paz que temos que recuperar. O desafio é abrir caminho orientando-se para a paz', assegurou o chefe de Estado.
Após dois meses do início da onda de violência, os nicaraguenses centram suas expectativas nos resultados do diálogo nacional, considerado única alternativa para devolver a tranquilidade, o entendimento e a estabilidade ao país.
* Correspondente da Prensa Latina na Nicarágua.