A aprovação, pelo Congresso Nacional, da PEC 247/55 em dezembro do ano passado, e da lei que amplia e generaliza as terceirizações, agora em março, representam um endurecimento decisivo dos ataques do Estado aos direitos sociais e trabalhistas do povo brasileiro, e uma submissão ainda maior aos interesses e estratégias dos capitalistas no Brasil. Várias “reformas” análogas, retrocessos nas frágeis e limitadas conquistas obtidas pela luta popular nos últimos trinta ou trinta e cinco anos, também estão planejadas para serem implementadas a curto prazo, com destaque para a infame Reforma da Previdência.
Contrastando com a rapidez e a determinação com que as “reformas” vão sendo propostas e aprovadas pelas diversas esferas do Estado e da classe burguesa/patronal, está a fraca e descoordenada resistência popular às medidas. Os protestos contra a PEC 247 existiram, mas foram fracos e um bem tímidos, apesar das louváveis tentativas de setores mais combativos no sentido de radicalizá-los (o que ficou claro no protesto em Brasília no dia da votação da PEC). Os protestos contra a terceirização foram virtualmente inexistentes, menores ainda que os convocados pelas centrais sindicais em 2015, quando a questão começou a ser tratada no Congresso.
Mas no último dia 15 as mobilizações convocadas contra a Reforma da Previdência, que incluíram paralisações parciais e manifestações de rua, foram bem expressivas, embora tanto seu volume como suas formas (ainda muito pouco radicalizadas tendo em vista a gravidade das ameaças ao povo) ainda sejam claramente insuficientes para se derrotar os planos das elites exploradoras e opressoras. Mas, é evidente que a revolta popular cresce e com ela a disposição de luta. A grande questão hoje é: como potencializá-la, trazer mais pessoas à luta, adotar formas mais contundentes que consigam fazer retroceder e na sequência derrotarmos as intenções sinistras de nossos inimigos?
A mobilização do dia 15/03 foi em certo momento chamada como uma Greve Geral. Por um lado isso é importante, pois não há dúvida que somente impondo custos (econômicos, políticos e simbólicos/mediáticos) aos patrões e ao Estado, maiores que os custos que eles pretendem economizar com as medidas planejadas, essas malditas reformas podem ser detidas. Mas é evidente que a jornada de lutas ficou muito aquém disso: um número limitado de categorias paralisou seu trabalho no dia, e dentro das categorias que pararam um número limitado de trabalhadore/as participaram. Mais ainda, se concebemos, como devemos conceber, uma greve geral como uma ação de todo o povo explorado e oprimido visando parar a produção (interrompendo vias de transporte, por exemplo), e não só uma soma de greves de setores formais e sindicalizados, devemos reconhecer que foi muito pequena a participação popular “grevista” no dia.
Devemos ter claro, ainda, que passeatas e ações diretas que não atinjam diretamente a produção e o patrimônio dos capitalistas, ainda que importantes e “visíveis”, são bem insuficientes dada a dimensão da disputas de interesses de classe em jogo. Não nos iludamos, em 2013 grandes protestos e ação direta localizada puderam obrigar os governos e os empresários do transporte a abrirem mão do aumento das passagens, porque o custo envolvido para eles nesse recuo era relativamente pequeno e recuperável a médio prazo. Hoje, estamos falando de regime de aposentadorias e pensões, direitos trabalhistas e gastos públicos em setores sociais como saúde e educação, não há nível de comparação. A luta tem que ser muito mais contundente, organizada e, até certo ponto, arriscada, que juntar milhares de pessoas caminhando na rua por algumas horas.
Para muitos, 2013 é a única lembrança de mobilização popular efetiva e relativamente vitoriosa, pois vivemos um longo período (mais de vinte anos) de desarticulação e empequenamento das lutas populares no Brasil, desde o início dos anos 1990. Mas, antes disso, experimentamos um período de ascenso da organização e dos combates do povo, começando pela luta pelo fim do regime militar no final da década de 1970, que foi responsável pela grande maioria das conquistas e direitos que o povo pobre e trabalhador tem hoje, e que são alvo das “reformas” agora.
Um dos efeitos, na memória coletiva das lutas populares e de toda a sociedade, do período de crescimento eleitoral do PT, chegando às duas eleições de Lula e aos seus governos e de Dilma Roussef, foi levar as pessoas, principalmente as mais jovens, a ver esse período de grandes lutas e conquistas, nos anos 1980 e antes, apenas como um prelúdio das “conquistas” institucional/eleitorais da “esquerda” nas décadas seguintes. Na verdade, houve mais ruptura que continuidade entre os dois períodos, ainda que os personagens envolvidos fossem os mesmos muitas vezes. Em setembro do ano passado, pouco depois do afastamento de Dilma e o ressurgimento das propostas de eleições gerais, escrevi um texto (bastante compartilhado) em que lembrava: “A viabilidade eleitoral do PT cresceu na mesma proporção da burocratização e perda de combatividade da grande maioria dos movimentos. A última greve geral digna desse nome aconteceu no Brasil em 1991, mas já foi bem mais fraca que a de 1989, e com muito menos organização autônoma de base.” Acho que pouca gente reflete nisso, e pouca gente aliás sabe que tivemos duas grandes greves gerais (de 48 horas) em 1989 e 1991.
Embora a situação política e social de hoje seja muito diferente daquela época, não obstante há suficientes coisas em comum para que a proposta de Greve Geral novamente apareça como uma proposta válida e importante de ação coletiva. Então, antes de comparar as duas situações e tentar extrair as lições ainda válidas das lutas passadas, vou falar um pouco daquelas greves (principalmente da de 1989).
A greve geral de 1989 como auge da época de ascenso das lutas populares nos anos 1970-1980
No mesmo texto de setembro passado que citei, caracterizei sumariamente assim a conjuntura daquela época: “a revolta e a combatividade do povo e seus movimentos na época era muito grande, e um a um os planos de ajuste do Sarney foram inviabilizados. Entre 1984 e 1989 houveram lutas épicas, incluindo uma greve geral de base, organizados por comitês de greve enraizados nos locais de trabalho e nos bairros, ... que deixaram muito acuada a classe dominante branca burguesa. E, graças a essas lutas, que tiveram seus mártires e heróis (como os operários assassinados pelo Exército em Volta Redonda, entre muitos outros), foi aprovada uma Constituição consideravelmente progressista em 1988, apesar da composição reacionária do Congresso Constituinte, onde a bancada do PT, por exemplo, era quase desprezível.”
Nessa série de lutas, mobilizações chamadas de “greve geral” já haviam sido convocadas em dezembro de 1986 e agosto de 1987, por exemplo, com relativo sucesso. Mas, “construir a Greve Geral” era um norte, um mantra, uma diretriz do movimento há muitos anos, desde que nosso canto “Greve Geral Derruba o General” tornou-se popular nas manifestações pela Anistia e outras a partir de 1979, até 1984. A chave aqui é a palavra “construir”. De um modo geral, concebíamos a greve geral como uma construção cotidiana nas lutas parciais/localizadas, um acúmulo de organização e entendimento. Falávamos do significado e dos desafios de se construir uma greve geral poderosa em cada reunião e atividade de nossos movimentos sindical, de bairro, estudantil, etc.
Na verdade, desde essa época, percepções e entendimentos diferentes do significado da greve geral já se manifestavam. Eu fazia parte de uma organização que compunha o setor radical/revolucionário da CUT e de muitos outros movimentos, que, com muita confusão, é verdade, concebíamos as lutas não só como resistência imediata e busca de conquistas parciais, mas como as ocasiões e o contexto de construção de uma forte organização popular de base que seriam os “embriões de poder popular” (nem todos setores radicais usavam a mesma terminologia, mas a idéia era basicamente a mesma), algo como versões brasileiras de sovietes, conselhos revolucionários ou áreas liberadas, que levassem, eventualmente, à resolução da questão do poder numa direção em que o Estado burguês fosse explodido e mudanças sociais, econômicas e políticas profundas, para muito além do capitalismo e da democracia representativa, pudessem começar a ser realizadas. A confusão e a debilidade se manifestava, entre outras coisas, no fato de que, mesmo muitos de nós “revolucionários”, participávamos das disputas eleitorais, embora dizendo que era atividade “secundária”...
Todo um outro setor, que era majoritário nas direções da CUT e demais movimentos, e que se dedicava à construção eleitoral do PT, na verdade limitava a Greve Geral a um momento de resistência e luta localizada, cuja influência na “questão do poder” resumia-se a desgastar os sucessivos governos patronais e a pavimentar o caminho para a ascensão política do PT e aliados nas estruturas do Estado. Também havia muita confusão entre eles, e mesmo nesse setor majoritário haviam momentos de radicalização. Mas eles buscavam uma greve geral construída essencialmente por acordos nas direções sindicais, e sempre punham as datas e os preparativos na dependência da aproximação com a CGT, a outra central surgida do cisma da Conclat de 1981 (deixo essa para vocês pesquisarem, rs), e na qual atuavam partidos como o PCB, o PCdoB e o MR8, todos mais pelegos que o PT na época (nisso, aliás, o PCdoB não mudou).
As diferenças entre os dois campos se manifestava também no papel que atribuíam aos trabalhadores não organizados em sindicatos e aos movimentos populares não sindicais em geral. Os setores combativos/radicais propunham a organização e multiplicação dos comitês de greve geral de base, não só nas categorias e locais de trabalho, mas também nos bairros (locais de moradia) e escolas (locais de estudo). Os majoritários/moderados, ainda que não atacassem abertamente a idéia dos comitês de greve geral, queria que eles tivessem papel secundário e totalmente subordinados às direções sindicais. Isso também tinha relação com o papel e a importância que cada um dava às ações diretas, além do não comparecimento ao trabalho, que deveriam ser efetuadas durante a greve, principalmente a inviabilização do transporte de massas e sabotagens diversas em locais de trabalho onde pudessem estar atuando fura-greves. Não era uma época pelega como hoje, e a maioria tinha vergonha de criticar essas ações diretas, mas os “moderados” (proto-pelegos) buscavam minimizar sua importância e exagerar seus riscos e efeitos contra-producentes.
Nós radicais, mais que da “adrenalina”, partíamos de duas compreensões básicas. Primeiro, em 1989 já vivíamos quase uma década de depressão econômica, o número de desempregados era muito grande, maior ainda os precarizados, muitos trabalhadores não tinham como participar da interrupção da produção através dos sindicatos, mas apenas das ações diretas. Segundo, os sindicatos dos trabalhadores dos transportes no Brasil, em sua grande maioria, ainda eram totalmente controlados por máfias pelegas fura-greves, não se podia esperar que deles (nem mesmo das oposições sindicais nesses setores, ainda muito frágeis e sujeitas à bandidagem dos capangas dos pelegos) viesse a interrupção desse setor fundamental, que garantia inclusive o deslocamento aos locais de trabalho dos assalariados desorganizados, precarizados e temerosos de perderem seus parcos empregos. Se os transportes não parassem, teríamos que PARÁ-LOS.
Foi nesse contexto de disputa e diferentes compreensões, que foi convocada a greve geral de 14 e 15 de março de 1989. A motivação imediata foi o Plano Verão, mais um “plano de estabilização” do Sarney, mas, além da rejeição às medidas governamentais, a pauta contemplava reivindicações imediatas (reposição das perdas salariais, reajustes mensais automáticos segundo os índices do Dieese – vivíamos praticamente em hiperinflação – congelamento real dos preços - principalmente da cesta básica, etc) e estruturais (reforma agrária, não pagamento da dívida externa, etc), que vinham se consolidado há anos nas lutas. A preparação da greve, aliás, começou antes mesmo da definição da data, e os comitês de greve de base multiplicaram-se rapidamente em algumas cidades do país, como no Rio.
Os comitês se formavam quase naturalmente a partir dos núcleos de lutas que já existiam, sejam as categorias e seus locais de trabalho, sejam as associações de bairros, os grêmios estudantis e vários outros núcleos de base de movimentos. Mas, ao juntar todos numa ação comum que ia além das reivindicações parciais e da resistência localizada, dava uma qualidade e um alcance novos à organização popular. Tínhamos que organizar a interrupção da produção e da circulação de bens e serviços, mas também tínhamos que organizar fundos de emergência para os dois dias, estocar alimentos para as casas e os piquetes, garantir a segurança e a autodefesa diante da repressão policial e paramilitar que viria. Eram reuniões febris, mas muito objetivas e produtivas. Era o povo experimentando e tomando consciência de seu poder.
Esse era o quadro, mais ou menos, onde os setores combativos eram fortes e mais enraizados no trabalho de base, que era o caso do Rio de Janeiro, mas certamente houve bastante variação pelo Brasil. Acho que até hoje não existe estudo muito detalhado sobre isso.
Todo o trabalho acumulado manifestou-se nos dois dias da Greve. Calcula-se que 70% dos trabalhadores, ou 35 milhões de pessoas, participaram da greve de uma maneira ou outra em todo o país, mas o que aconteceu foi muito além dos números. Ações muito radicalizadas interromperam ferrovias, estradas e ruas. Milhares de ônibus foram inutilizados por sabotagens, principalmente furando seus pneus com os famosos “miguelitos”, pedaços de vergalhões dobrados que metalúrgicos e pequenas oficinas mecânicas produziram em massa e distribuíram aos piquetes e comitês de greve. Piquetes de categorias pouco mobilizadas foram viabilizados por gente de todo o povo, fechaduras de agências bancárias e repartições também foram sabotadas. Quem não sabotava, montava barricadas ou ia para os piquetes, ajudava na distribuição dos lanches, de água, etc.
Também houve manifestações, passeatas, concentrações, mas essas não eram as atividades principais da Greve. O importante mesmo era parar a produção, não indo trabalhar e/ou impedindo que nossos irmãos explorados fossem mais uma vez obrigados a comparecer ao trabalho por medo, da repressão ou da perda do emprego miserável. E isso conseguimos fazer!
Dois exemplos da disposição de luta e de ação direta de base daquela época
Vou dar agora dois testemunhos pessoais de como naquele tempo havia grande disposição do povo, inclusive de seus setores mais empobrecidos e violentados, de participar de ações radicalizadas na luta. Um foi na greve geral de 1989, não participei dos fatos mas soube através de companheiros de minha organização. No segundo caso, na greve de 1991, participei diretamente.
Em 89, moradores da favela de Manguinhos engajados na construção da greve, ainda na madrugada do primeiro dia, executaram uma ação decisiva que paralisou todo o transporte nas imediações da comunidade. Arrancaram vários dormentes da linha do trem (o ramal Leopoldina que passa por ali), inutilizando-a, e usaram os dormentes para montar barricadas na Leopoldo Bulhões, interrompendo portanto também o tráfego de ônibus e automóveis. Ação perfeita e coordenada. Ações semelhantes aconteceram por todo o Rio de Janeiro.
Em 91, durante as ações de greve no centro de Niterói, fui convidado por sindicalistas do Sintel para ajudar na agitação na Kombi de som do sindicato. Os sindicalistas, petistas, faziam a arenga oficial preconizada pelas direções cutistas: “hoje é dia de greve, fique em casa, não saia, a luta é de todos”, etc. Obviamente irritado, mudei completamente o tom quando me passaram o microfone: “hoje é dia de greve geral, de luta, de protesto, vá para a rua, apóie os piquetes, faça uma manifestação com seus vizinhos, feche as ruas.”
Para minha surpresa, meus colegas da Kombi gostaram de minha agitação e logo adotaram o mesmo discurso. Um deles, logo concluiu onde tal pregação daria melhor resultado, e propôs irmos para a Vila Ipiranga, favela que fica no bairro do Fonseca. Depois de no máximo 15 minutos de discurso no larguinho que fica no alto da favela, um grande grupo de moradores começou a juntar entulhos, madeiras, móveis velhos e lixo e rapidamente desceram para a Alameda São Boaventura (a via principal do Fonseca) e a fecharam com uma barricada em chamas. Tivemos que sair correndo quando capangas armados das empresas que vinham dentro dos ônibus começaram a atirar em nossa direção, mas pelo que soube a barricada voltou a ser montada mais de uma vez.
A greve geral de 1989 (e de certa forma também a de 1991) não foi um “milagre”. O povo que dela participou de forma tão determinada vinha experimentando suas forças e adquirindo autoconfiança há mais de dez anos. Ao contrário de hoje, os movimentos não estavam na defensiva, e sim na ofensiva. Várias conquistas e direitos formais já vinham se acumulando, embora seu reflexo nas condições de vida das pessoas em grande parte ainda não eram sentidos, devido à situação econômica catastrófica. Mas se revelariam anos mais tarde, na conjuntura de crescimento cíclico da economia, cujos frutos teriam sido integralmente absorvidos pelos capitalistas e latifundiários caso as conquistas das lutas não existissem (por isso tanta pressão da oligarquia, durante os governos FHC, Lula e Dilma, para anular em parte os direitos simbolizados na Constituição de 1988 e na legislação relacionada).
Claro que as mudanças estruturais buscadas historicamente pelos movimentos (fim do latifúndio, controle popular do grande capital, extinção do aparato repressivo do Estado, amplos investimentos em educação e saúde públicas, moradia digna e acessível para todo o povo, etc) ainda estavam (como ainda estão) muito distantes. A parte mais consciente dos movimentos sabia que para a conquista dessas era preciso resolver a “questão central da revolução”, a famosa “questão do poder”, como se dizia na época, embora isso fosse interpretado de forma muito diversa pelos diferentes setores atuantes nas lutas. Mas, na época, pelo menos aqueles que se agrupavam na CUT e organizações afins tinham claro que, enquanto estivessem no poder governos comprometidos com os interesses da oligarquia capitalista neo-colonial, qualquer avanço nesse sentido mais “estrutural” era impossível.
Isso continua sendo verdade hoje. A grande diferença era que, na época, terminar com o poder desses governos oligárquicos era uma perspectiva plausível e palpável para o curto prazo.
Depois da greve, a questão do poder e a metamorfose do movimento
A tremenda demonstração de força popular da Greve Geral em 1989, coroando mais de uma década de lutas e organização em ascenso, inevitavelmente colocou a “questão do poder” na ordem do dia, seja para a classe dominante, seja para os explorados e oprimidos. O grande complicador de tudo isso foi que 89 era o ano em que haveria a primeira eleição direta para presidente após o fim do regime militar.
TODOS os partidos mais orgânicos da classe dominante entraram em crise profunda, inclusive o recém fundado PSDB, e logo ficou claro que nenhum deles teria condições de emplacar um candidato com chances de vitória. Uma boa parte da elite arriscou-se então na aventura imprevisível de Collor de Mello. Mas ninguém tinha segurança do que aconteceria.
Os setores combativos/radicais, num primeiro momento, saíram fortalecidos e determinados em aprofundar a perspectiva de um desfecho no sentido do poder popular. Aqui no Rio, e em outros lugares, trabalhamos no sentido de manter os comitês de greve geral, que deveriam voltar a encaminhar, de uma forma coordenada, as lutas parciais e locais de resistência, mas com a perspectiva de construir novas ações como a greve geral, cada vez mais amplas, radicalizadas e profundas. A maioria admitia participação nas eleições para presidente numa perspectiva de “propaganda do programa revolucionário”, mas sinceramente víamos isso como uma pausa menor no trabalho fundamental de acúmulo revolucionário num novo patamar. Seríamos totalmente surpreendidos pelo desenrolar do processo.
A ala majoritária da CUT, ou seja, o núcleo dominante do PT, também não acreditava muito nas possibilidades eleitorais de Lula, e também seria surpreendida, mas trabalhou conscientemente para canalizar toda a energia militante que se expressara na greve para a campanha eleitoral. Não queriam mais comitês de greve geral, queriam comitês eleitorais da Frente Brasil Popular.
Os meses seguintes, com o crescimento da candidatura Lula, foram decisivos para que a ala majoritária e cada vez mais eleitoreira dos movimentos desequilibrasse definitivamente a seu favor, e esvaziasse definitivamente a influência dos setores combativos, que se perderam ainda mais quando foram tomados pelo entusiasmo popular da campanha lulista. Desde então, não recuperamos a força que tínhamos naquela época.
Eleger Lula, ainda mais naquela eleição polarizada, era a forma mais acessível e plausível de abordar a questão do poder, inclusive para os setores mais ativos do povo trabalhador e explorado. Nosso discurso radical sobre o poder popular era coerente, mas ainda muito abstrato e ainda mais prejudicado por nossa ambiguidade diante das eleições.
O PT, mesmo com a derrota de Lula no segundo turno, saiu muito fortalecido eleitoralmente, e passou a subordinar cada vez mais as lutas populares à sua agenda institucional. Isso acabou permitindo, em parte conscientemente, uma recomposição do regime burguês e do Estado em crise, como se veria pouco depois na era FHC, que conseguiu aplicar em parte os ajustes neoliberais que Sarney não havia logrado. Mas, a médio prazo foi uma tática coerente. Oportunista e contra-revolucionária, mas coerente e “vitoriosa” nos seus termos, já que afinal conseguiu a conquista de vários espaços no Estado pelo PT e aliados, até a eleição de Lula em 2002.
Mas a longo prazo (os últimos vinte e tantos anos), isso foi profundamente destrutivo e desmobilizador para as lutas populares. Entre outras coisas, a perspectiva da greve geral desapareceu por anos. Porém foi muito mais que isso, os movimentos se metamorfosearam profundamente, de instrumentos de luta tornaram-se apêndices das estratégias eleitorais e institucionais, logo depois apêndices do Estado (e do capital). Se alguma “luta” ainda era travada, era quase sempre para desgastar esse ou aquele governo/partido adversário do bloco do PT, o qual por sua vez colheria frutos eleitorais. As reivindicações foram vergonhosamente rebaixadas, políticas construídas em conjunto com o capital, e que nunca haviam sido proposta dos movimentos, acabaram sendo adotadas por estes como o centro de suas “lutas”. Um dos melhores exemplos talvez seja o Minha Casa Minha Vida, programa de construção, por grandes empreiteiras, em terrenos adquiridos no mercado, de imensos conjuntos habitacionais em áreas sem infraestrutura urbana, algo que ia contra o que os movimentos por moradia haviam sempre proposto, mas que acabaram sendo (e ainda são) defendidos como “grande conquista” pela maioria desses movimentos, hoje totalmente apelegados.
A militância desses “movimentos” metamorfoseados, como não podia deixar de ser, se tornou cada vez mais cínica e obtusa, porque tinha que internalizar a defesa de algo que não tinha nada a ver com suas origens como instrumentos buscando a emancipação social. O eleitoralismo tornou-se sua “segunda natureza”, e a grande maioria dessas pessoas são hoje incapazes de escapar disso (a cúpula burocrática dos “movimentos”, é claro, nem quer escapar disso, porque o jogo eleitoral lhes traz poder e privilégios).
Para quem sabe e conhece essa história, não foi nenhuma surpresa a incapacidade desses “movimentos” em resistir ao chamado “golpe” que foi sendo construído (com ajuda ativa do PT) no refluxo das rebeliões de 2013. Como não é surpresa que, agora mesmo, diante de ataques tão brutais às conquistas passadas, a única perspectiva real que esses “movimentos” conseguem traçar é... Lula 2018.
Comparando a proposta da Greve Geral em 1989 e hoje
Apesar de tudo, a proposta de Greve Geral volta a ter força no Brasil de hoje. Com certeza, isso se deve a uma retomada de perspectivas e formas de luta mais combativas desde os levantes de 2013, apesar de todas as contradições e retrocessos que observamos desde então. Mesmo os setores mais burocratizados e eleitoreiros dos movimentos, diante da magnitude dos ataques do Estado, falam de greve geral, com sinceridade ou não. Mas, qual as possibilidades e o papel dessa forma de luta na situação atual? Talvez uma maneira de responder isso seja comparar as condições de uma greve geral hoje, com a greve efetiva de 1989.
1) A greve de 1989 foi resultado (na verdade, foi o ponto alto) de todo um período ofensivo das lutas populares, de mais de 10 anos, durante o qual a organização popular avançou a fortaleceu-se. Hoje, vivemos uma situação claramente defensiva, depois de mais de 20 anos de desorganização e retrocesso político e cultural dos movimentos populares;
2) Em 1989 vivíamos uma época de conquistas de direitos, e a greve tinha como objetivo barrar somente mais um plano de “ajuste”, embora servisse também para a reafirmação da necessidade de mudanças mais profundas, estruturais. Hoje, vivemos um período acelerado de perdas de direitos anteriormente conquistados, o que demonstra a fragilidade e superficialidade dessas conquistas passadas, e ainda mais dos supostos “avanços” obtidos por quase quinze anos de governos “de esquerda”;
3) Em 1989, apesar de toda radicalidade e combatividade, havia uma situação imensamente favorável para a criação de uma ampla ilusão eleitoral no seio do povo, principalmente dos setores mais organizados e participantes das lutas. Hoje, experimentamos uma crescente descrença popular nas eleições farsescas, como se nota pelo aumento continuado dos níveis de abstenção/voto anulado. Claro que ainda há “ilusão”, ou simplesmente cinismo, da parte da “militância” da esquerda partidária/eleitoral, mas mesmo no interior dessa é impossível dizer que haja um entusiasmo genuíno. Também é verdade que, seguindo o raciocínio fraco, mas compreensível, do “menos pior”, muitos trabalhadores e explorados concluam pelo voto em Lula no ano que vem, mas também aí ninguém pode dizer que haja entusiasmo e expectativa de avanços reais, como existia, por exemplo, no voto no PT/esquerda em 1989 ou 2002.
Como em 1989, e mais ainda, os setores combativos/radicais/consequentes terão, portanto, que se confrontar com aqueles que tentarão (já tentam) conduzir a luta e a resistência, inclusive a proposta da greve geral, simplesmente para o fortalecimento da campanha Lula 2018. A diferença, favorável a quem busca a verdadeira combatividade, é que ninguém se entusiasma de verdade com mais uma eleição e mais uma presidência de Lula.
A dificuldade principal não vem daí, vem da situação de desorganização e burocratização dos movimentos. Na verdade, a degeneração já está tão avançada que se trata na verdade de reconstruir todo o movimento popular, os movimentos dos setores explorados, oprimidos e violentados do povo. Esforços nesse sentido já vem sendo feitos há algum tempo, mas a questão é que, diante dos ataques que temos sofrido, essa reconstrução precisa ser acelerada, sob o risco de amargarmos derrotas tão profundas que deixaria o povo desmoralizado e abatido por muito tempo.
É aqui que a proposta de CONSTRUIR A GREVE GERAL (exatamente nesses termos, de construção) readquire um sentido e uma atualidade que tem certos paralelos com a realidade dos anos 1980.
Os comitês populares de greve de 1989 eram de certa maneira um desdobramento “natural” das organizações de luta e de base que já vinham crescendo há vários anos. Hoje, o papel desses comitês de base de greve seria essencialmente contribuir para a reconstrução mais sólida da organização de base.
Não obstante essa diferença, o mais correto seria criar e multiplicar comitês populares de construção da Greve Geral mais ou menos da mesma maneira como propunham os setores combativos imediatamente após a greve de 1989:
1) defender que esses comitês são necessários porque uma greve geral de ser uma greve de todo o povo, inclusive dos trabalhadores informais e desempregados, dos aposentados e estudantes, pois a produção e a circulação de bens e serviços deve ser paralisada não apenas pelo não comparecimento ao trabalho de setores sindicalizados, mas também (e talvez principalmente) pelas ações de sabotagem, bloqueio/interrupção de vias, piquetes populares e outras ações como foi em 1989. Aliás, devemos incorporar nesse repertório de ações diretas formas que se aperfeiçoaram nos últimos anos, apesar de toda desorganização, como foram as ocupações (de prédios públicos, empresas, escolas, etc) e as barricadas de chamas nas ruas e estradas (com pneus e outros materiais).
2) os comitês não devem só debater e agir na ocasião de uma greve geral propriamente dita (da dimensão da de 1989, por exemplo), mas dedicarem-se a unificar e apoiar mutuamente as lutas locais e parciais (moradia, saúde, educação, contra a violência de Estado, salariais, etc), numa base territorial. Em cada luta parcial/setorial/localizada, que tem suas necessidades e justificativas próprias, também “treinamos” e preparamos nossas forças para embates maiores.
3) claro que, para isso, os comitês precisam ter uma vida orgânica mínima e contínua, com assembléias, seminários/eventos culturais, atividades de arrecadação de recursos, etc. Claro que não há receita e formas predeterminadas, cada realidade territorial tem suas características e sua história, o importante aqui é a ênfase na continuidade.
4) a perspectiva das lutas maiores, e a participação em jornadas de mobilização, devem por sua vez ser construídas e garantidas pela coordenação dos diferentes comitês locais, através de assembléias inter-comitês, quando a proximidade geográfica permitir, ou encontros de delegados escolhidos em cada comitê.
A perspectiva de construção da greve geral através de comitês populares de base territorial, difere essencialmente da visão burocrática de uma greve nacional “organizada” por acordos entre as cúpulas sindicais. Mas é claro que, na eventualidade da convocação, pela burocracia sindical/partidária, de “jornadas de luta” (contra a reforma da Previdência, por exemplo), ou mesmo de uma greve geral, os comitês podem e devem se mobilizar à sua maneira, com seus métodos e seus objetivos, mostrando a importância da unidade da luta mas não se submetendo às táticas eleitoreiras dos pelegos.
No desenrolar da resistência e da luta, inevitavelmente os comitês e outros núcleos de luta terão que enfrentar mais uma vez a “questão do poder”, inclusive para se diferenciarem das propostas eleitoreiras de conquista do Estado. Em 1989, a “construção do poder popular” era uma pauta/bandeira muito mais disseminada que hoje, em compensação a confusão era muito grande. Nossas diferentes visões de “poder popular” estavam contaminadas, de um modo ou de outro, tanto pelas ilusões eleitorais/institucionais da social-democracia, como pelas ilusões do socialismo de Estado (URSS, China, etc). Essas confusões ainda existem, mas já temos como nos basear, por um lado, em quase trinta anos de reflexões desde a queda dos regimes do Leste Europeu, e em novas e instigantes experiências de poder popular anti-estatal mais consolidadas em várias partes do mundo (México, Curdistão, etc), mesmo com seus problemas e contradições. Mas não há nada melhor para iluminar as confusões “teóricas” que a experiência prática da organização popular combativa de base.
Para não perder, o readquirir um hábito perdido, concluo com os chamados apropriados:
CONSTRUIR OS COMITÊS POPULARES DE GREVE!
CONSTRUIR A GREVE GERAL!
LUTAR, CRIAR, PODER POPULAR!