Diário Liberdade - O primeiro que devemos perguntar e se já tinhas estado na Galiza anteriormente
Miguel Urbano Rodrigues - Já. Estive várias vezes na Galiza em encontros internacionais em Vigo e Ponte Vedra. Também estive de férias para visitar Compostela e as rias, porque adoro a Galiza.
DL - Como militante, para além de teres uma atividade e uma produção muito intensa e continuada, também viajas muito para participar em eventos como este aqui na Galiza. Qual é a importância que dás a este tipo de encontros, aos debates e às discussões públicas como a que hoje ocorreu em Compostela?
Miguel Urbano - Foi a vida que me permitiu correr um pouco pelo mundo. Estive exilado do fascismo durante 17 anos na América Latina e mais tarde, quando terminei a vida pública, vivi 8 anos em Cuba, o que me permitiu circular por todo o continente americano e sentir como meus os processos de luta dos diferentes povos.
A minha condição passada de deputado pelo meu partido permitiu-me também correr muito não só pela Europa, como pela Ásia e pela África. A compreensão da diversidade das culturas dos povos teve uma grande influência na evolução do meu pensamento, porque a terra é a pátria comum do ser humano.
Quanto aos eventos, tenho participado em eventos muito diferentes uns dos outros mas, sem pretender ser agradável, devo dizer que foi extremamente gratificante para mim estar aqui com os camaradas e amigos galegos, porque por vezes, em grandes congressos e seminários internacionais, assistes a uma exibição de vaidades mas aqui, na Galiza, há uma preocupação verdadeira pela reflexão sobre o nosso tempo, sobre os grandes problemas que enfrentamos, sobre a crise da humanidade, etc.
Aqui os discursos foram simples e acessíveis e as perguntas inteligentes, de maneira que foi muito gratificante para mim estar aqui neste encontro.
DL - Nem toda a esquerda portuguesa, nem sequer a revolucionária, entende bem as causas das nações oprimidas, como aGaliza, a Catalunha ou o País Basco. Qual é a tua opinião sobre o assunto?
Miguel Urbano - Há pouco eu disse que já não emprego a palavra ‘esquerda’ devido à perversão. O que é em Portugal a esquerda? Na realidade, se excetuarmos um pequeno número de personalidades independentes, a esquerda exige hoje uma definição clara de ser anticapitalista, mas há forças que se dizem de esquerda que não são contra o capital ou, então, querem reformar o capitalismo, mas não desejam como alternativa o socialismo.
A base social do Partido Comunista Português é verdadeiramente revolucionária e põe como alternativa o modelo socialista.
Quanto ao que se passa aqui na Galiza, nós temos um sistema mediático tão perverso e péssimo quanto o espanhol. Eu quando era jovem iniciei-me nas atividades políticas como repórter, mas hoje o jornalismo ainda é pior que no tempo do fascismo. Naquela altura, o combate ao fascismo obrigava a um certo respeito pela ética, mas hoje o jornalismo tornou-se muito mercenário com os media controlados pelo grande capital.
Eu venho agora do Brasil, onde estive justamente no aniversário do Partido Comunista Brasileiro —no qual eu militei na juventude— e no Brasil ainda há uma certa, não direi liberdade, mas uma certa abertura ou uma certa possibilidade de serem expressas opiniões contrárias e incompatíveis com as direções e os proprietários dos jornais do sistema.
Em Portugal, a base das redações é constituída por mercenários controlados pelas chefias que ditam os interesses e desviam as atenções sobre assuntos absolutamente irrelevantes com a omissão total ou parcial de grandes acontecimentos ou problemas de luta que não lhes interessa divulgar. Hoje aqui falou-se muito da Síria, mas no mundo fala-se pouquíssimo. São apenas três ou quatro linhas nos crimes do império norte-americano. O que está a acontecer no Afeganistão, que é uma guerra perdida, merece quatro ou cinco linhas e aqui creem que é a mesma coisa.
As pessoas só se podem interessar quando há um acesso ao conhecimento. Em Portugal, quem fala da Galiza é o turista que a foi visitar e gosta da catedral e da parte histórica de Santiago de Compostela, e acontece a mesma coisa em relação aos problemas da Catalunha ou do País Basco.
Recentemente houve em Portugal um movimento liderado por Saramago que defendia a integração de Portugal no Estado espanhol. Chegou a dizer até que como região autónoma como a Andaluzia ou as Astúrias. Aquilo motivou reações de várias pessoas como eu e outras perante tal disparate. Se o Estado espanhol depois de séculos de opressão não conseguiu resolver os problemas da Galiza, a Catalunha ou o País Basco, como é que ia resolver os problemas dos portugueses? Evidentemente que isso é um absurdo completo, mas seria necessário que nós tivéssemos um sistema mediático diferente do atual para que se falasse e que as massas fossem sensibilizadas com acesso ao conhecimento que hoje não têm.
DL - Mas na nossa pergunta anterior estávamos a falar inclusive das pessoas conscientes e mais politizadas.
Miguel Urbano - Eu não quero entrar em problemas de estratégia do meu partido, já que não estou aqui a título partidário. Só posso é registar o facto de que se dá pouca atenção a esses problemas, embora individualmente haja quadros e intelectuais que escrevem, particularmente, sobre a questão basca, mais do que sobre a galega. Da Galiza há quem escreva, mas acho que é um assunto pouco tratado.
DL - Como militante revolucionário português, achas que a Galiza devia ocupar um lugar especial no relacionamento futuro com Portugal na perspectiva de uma reestruturação da Península Ibérica com base na soberania dos povos? Achas que essa história comum que nos une devia também projetar-se no futuro num relacionamento especial entre os dois povos?
Miguel Urbano - Acho que sim. Portugal é filho da Galiza, quer no idioma, quer na história. Ainda hoje é impressionante chegar aqui e ver as afinidades. Tirando as mínimas diferenças entre uma determinada maneira de falar e de escrever, há afinidades enormes. Nessas afinidades culturais, há um espaço de cultura galaico-portuguesa que transcende os dois povos.
Eu recordo que o José Velo Mosqueira, que participou na tomada do Santa Maria e de quem eu fui muito amigo e que era um revolucionário romântico e um ser humano maravilhoso...
DL - ...e partidário da independência da Galiza.
Miguel Urbano - Pois é. Quando ele chegou ao Brasil depois da ação do Santa Maria –em que também eu participei, ele começou a chorar nas ruas ao ver as lojas. Ele dizia: ‘Estou a ver as coisas escritas na minha língua...’ e ficou comovido. Em Portugal, há agora a campanha de uns intelectuais, eu diria presunçosos, a quererem derrubar o Acordo Ortográfico. Eu acho que a ortografia comum é uma questão demorada no tempo, mas que é útil.
Nas organizações internacionais, os países que usam o castelhano como língua conseguiram adotar uma ortografia comum independente de que no México ou no Peru a oralidade seja diferente.
Eu fui deputado nalgumas organizações internacionais e recordo da burrice de alguns deputados portugueses, que não queriam as traduções brasileiras. Isso é uma estupidez completa, filha da ignorância. As camadas cultas brasileiras falam um português do século XVIII que até é mais puro do que o português de Portugal.
Nós temos que ter uma ortografia comum, embora os angolanos, os moçambicanos, os guineenses ou os timorenses falem doutra maneira.
Por agora, há um domínio político até negativo dessa comunidade de Estados de língua portuguesa ou galaico-portuguesa, mas penso que há que aprofundar nas relações, e isso é importante.
Do ponto de vista da idiossincrasia, do olhar sobre a vida, do sentir... há mais afinidade entre um galego e um português do que entre um galego e um cidadão de Valência ou de Granada.
Há que acabar com as campanhas estúpidas contra o Acordo Ortográfico. Eu chego ao Brasil e sinto-me brasileiro e se chego aqui, as lutas do povo galego são as minhas lutas.
Como dizia o grande escritor português António Sérgio, a minha pátria, se eu estou em um país, é a minha identificação com as lutas desse povo. Aqui eu sou galego.
DL - Indo agora para Portugal, como vês a evolução dos acontecimentos na crise atual, tendo em conta que Portugal, juntamente com a Grécia, talvez seja o povo que mais está a sofrer a degradação que está a experimentar o capitalismo nocontinente europeu? A Grécia está a dar uma batalha muito forte e intensa com greves e mobilizações sucessivas, mas Portugal nem tanto. Dá a impressão de que exista uma certa passividade. Corresponde isto com a realidade? Como vês a evolução da crise no teu país?
Miguel Urbano - Não é fácil responder a esta pergunta. Eu hoje falei aqui das condições da Grécia. As condições objetivas em Portugal, como na Irlanda ou no Estado espanhol têm muitas afinidades, mas as condições subjetivas é que são diferentes.
A Grécia tem uma história de sofrimento e de heroísmo através dos séculos, da colonização, da ocupação... Basta dizer que é o único país dos Balcãs que conseguiu preservar a sua língua. Os gregos resistiram a toda agressão de culturas estranhas. Todo isto facilitou a luta da independência nacional, facilitou a resistência aos alemães, facilitou a insurreição afogada em sangue pelo exército britânico.
Em Portugal não há essas condições mas em Portugal; houve sim uma revolução muito profunda e que também é muito mal conhecida, porque depois da Comuna de Paris não houve na Europa ocidental uma revolução que realizasse num período de tempo mínimo conquistas tão profundas como a revolução portuguesa.
Mesmo a reforma agrária mais importante que se fez em toda a Europa foi a reforma agrária portuguesa, essencialmente na minha província, nos campos do Alentejo. Os camponeses coletivizaram as terras e chegaram a ter empresas modelo, algumas chegaram a receber prémios na altura da CEE. Essa revolução realizou conquistas que explicam também a ferocidade da contraofensiva da burguesia.
A burguesia portuguesa, com plena aprovação do imperialismo, tem destruído extraordinárias conquistas da Revolução. Basta dizer que, em determinado momento, o serviço de saúde português era o quinto ou o sexto melhor do mundo e isto era uma conquista da Revolução de Abril. Houve conquistas dos trabalhadores no controlo operário durante períodos curtos que foram muito importantes. Ficaram as sementes, mas agora, como é que elas vão desabrochar? Isto insere-se nos problemas que foram aqui discutidos e que o Jorge Beinstein, particularmente, colocou muito bem sobre o problema da insurreição.
Eu não gosto de fazer futurologia, mas creio que é um tema que não foi hoje aqui abordado e que exige reflexão. A reação do povo norte-americano contra a guerra do Vietnam apressou o fim da guerra. Na Argélia foi também, no fundo, a rejeição da guerra colonial que a França mantinha que fez que um milhão de franceses abandonaram a Argélia e regressasse à França. Uma guerra colonial que era uma monstruosidade.
Acho que é possível e acredito que é muito provável que nos Estados unidos ocorram num prazo de tempo não muito distante movimentos que se ampliem.
Não vamos dizer se é os indignados se é Occupy Wall Street ou o que for... mas são sintomas do que está a acontecer, embora inorgânicos, embora marcados pelo espontaneísmo, não levam a vitória, mas aquilo é como uma maré que enche. Ela pode baixar em parte, mas acredito que não vai ser possível conter a rejeição de um sistema em que toda a política deste governo, da mão dos presidentes que mais ameaçam a humanidade pela sua política, como o presidente Obama, que só favorece o grande capital financeiro e as grandes transnacionais.
O povo, vítima da crise, não percebe quaisquer benefício. Acho que vai continuar a fermentar esse área de resistência nos Estados unidos e haverá convergências como disse o Beinstein, e lutas que se inserem umas nas outras.
O capitalismo está condenado. É impossível a sua sobrevivência. À medida que a crise nos Estados unidos aprofunde uma rejeição cada vez maior das massas, na Europa poderão explodir outras crises que vão convergir e isso pode ser fatal para o sistema de poder imperial.
DL - Precisamente queríamos perguntar pelo movimento Occupy Wall Street, que teve seu precedente inicial não no Estado espanhol, como se diz, mas em Portugal, com a geração à rasca. Foi em Portugal que surgiu primeiro essemovimento de indignação espontânea com muita participação juvenil. Queopinião tens do papel que a juventude está a jogar nesse movimento?
Miguel Urbano - Na altura escrevi um texto, quando começou o movimento dos indignados, recusando certa atitude simplista de dizer com um ar quase de desprezo que não conduzia a nada.
Eu acho que aqueles jovens não foram capazes de definir o que é que querem nem para onde vão, mas foi extremamente importante a rejeição e a tendência para aquela consciência de rebeldia contra o sistema. Uma percentagem ponderável dessa juventude irá evoluir para uma consciência de classe e uma consciência social. É uma questão de tempo.
É evidente que não podemos desestimar o imperialismo que, muito a tempo, impõe um controlo e uma realidade virtual. Como é possível que num país como França, que estejam empatados neste momento Sarkozy e Hollande?
Não é que o Hollande seja qualquer coisa a não ser um capitalista, mas pior que o Sarkozy é impossível, porque é um neofascista e um racista. Não obstante, está empatado, depois de meses atrás ter popularidade baixíssima.
A perversão do sistema e de falsificação da história permite situações como esta.
Eu estava em França quando a citada lei do primeiro emprego, que na verdade era uma lei para promover o desemprego, propiciou uma reação violenta dos estudantes da Sorbonne de Paris.
Eu na altura estava num hotel em frente mesmo da Sorbonne, bloqueada pelas forças da repressão, e as manifestações começaram a sair à rua com centenas de milhares. Ocuparam a Sorbonne, depois foram expulsos e espancados pela polícia. A seguir, centenas de milhares de pessoas, depois um milhão, dois milhões...
Com a opressão das massas aconteceu algo que era incomum. O parlamento francês, que tinham ocupado e que tinha aprovado a lei do primeiro emprego, e o presidente Chirac que a tinha promulgado foi obrigado a revogar a lei. A movimentação das massas teve a força do poder num Estado capitalista.
Isto demonstra as potencialidades que há nas lutas quando ela é prioridade, enquanto a luta de massas for encarada como um complemento das lutas no parlamento, isso será muito difícil e isso é o que está a acontecer.
DL - Nas últimos anos dá a impressão de que as lutas de massas no Estado espanhol estão a acompanhar as alternâncias de poderem cada eleição, não sei como é em Portugal ou na França. Os governos mudam, mas as políticas não. Parece que não é nosparlamentos que se vai resolver a situação...
Miguel Urbano - Não é, mas é muito difícil também traduzir as palavras de que a prioridade é para a luta de massas numa ação concreta e eu citei hoje o caso da Grécia. Na Grécia a mobilização não para. Faz uma mobilização de 200.000 pessoas, depois de 300.000 pessoas... em Portugal saíram 120.000 professores à rua para protestar contra as leis que atingiam aos professores. Houve manifestações constantes, houve greves, mas também há refluxo.
A grande lição da Grécia é que tudo está articulado em lutas permanentes. Esta luta permanente é a que dará então à mobilização das massas um carácter que pode conduzir para uma situação pré-revolucionária que depois desemboca, por sua vez, na insurreição sob a qual o Lenine escreveu o seu famoso ensaio ‘A arte da revolução’.
Mas eu hoje chamei a atenção aqui para um problema que acontece com frequência. Fala-se da alternativa, mas a alternativa tem que ter propostas concretas. Nós dizemos que a alternativa é o socialismo, mas não temos ainda uma teoria que seja gratificante para as massas.
O resultado do que se passou na união de toda a Europa ocidental é a ausência de uma teoria de transição do capitalismo para o socialismo. Como é que depois, quando se toma o poder se constrói socialismo? Isto é muito complicado e temos o exemplo de Cuba.
Cuba fez uma revolução heroica, continua a ser uma revolução que é uma contribuição para a história da humanidade formidável mas está o problema da construção do socialismo através do bloqueio. Todo o povo cubano foi privado das condições mínimas que permitiam construir.
Não há socialismo verdadeiro sem uma participação intensa da massa. É o povo, que é o sujeito da história, que tem que desempenhar o papel fundamental na construção do socialismo. Quando há um socialismo encarado com o resultado de medidas por melhores que sejam, mas que é de cima para baixo, que é outorgado, o resultado é negativo.
Eu vivi na América latina, como exilado no Chile e no Peru. Acompanhei o processo da unidade popular e o processo do general Blasco Alvarado. Ao contrário do que muita gente pensa, por exemplo no Estado espanhol, no Peru fizeram-se conquistas muito mais importantes do que no Chile. Não no plano político, não no económico, mas no Peru praticamente socializou-se tudo, mesmo a imprensa que não foi estatizada, mas socializada. Blasco expropriou os jornais, entregou um à juventude, outro à reforma agrária, outro às comunidades industriais, outro à pesca, outro à cultura, outro aos jornalistas...
Fizeram a reforma agrária mais importante que se fez na América Latina, mais que a mexicana, só que os camponeses com a cultura do incário e com toda aquela ingenuidade revolucionária, entre aspas, de querer transplantar a revolução cubana, não a souberam defender. Eu recordo que havia comunidades riquíssima e, em vez de investirem, iam comprar prédios em Lima ou então as índias iam fazer cesarianas porque as senhoras faziam cesariana...
Isto demonstra que aquilo que é oferecido de cima para baixo, e não é conquistado em luta pela classe trabalhadora, não tem base para se sustentar. Bastou um presidente traidor, Morales Bermudes, para destruir tudo em pouco tempo e converter o governo num dos mais reacionários da América.
DL - Portanto avalias as experiências socialistas no século XX como insuficientes ou insatisfatórias.
Miguel Urbano - É. Mesmo na Europa oriental, onde eu conheci todos esses países menos a Albánia, que aliás não era um país socialista.
DL - Não era?
Miguel Urbano - Não, nunca foi. A Albánia nunca chegou a ser um país socialista, mas uma caricatura. Não é que fosse influenciada pelo maoísmo... toda a teoria do Enver Hoxha... aquilo não era sério.
Qualquer desses países –todos diferentes e não se deve generalizar, herdeiros de culturas muito diferentes e situações históricas diferentes, em todos foi a presença do exército vermelho ao libertar esses países que permitiu que os partidos ocupassem o poder, embora alguns com alianças da burguesia progressista, mas não foi conquistado pelo povo, de maneira que não havia solidez nesses regimes para sobreviver.
Conheci o general Jaruzelski, que era um grande patriota, uma pessoa das que eu admiro, mas conheci por exemplo na Hungria o diretor e membro da comissão política do Népszava, o jornal que era órgão oficial do partido. Durante a guerra das Malvinas, eu estava em Budapeste e queira conhecer os telegramas do dia e ele disse-me: “não sei porque é que você está interessado por esta guerra entre o imperialismo britânico e uma ditadura primária, porque eu estou longe disso, mas apesar de tudo prefiro os ingleses, que são um povo civilizado”. Isto mostra o que era a ficção do socialismo em que um dirigente político diz uma coisa destas, marcadas de racismo profundo.
Quanto à União Soviética, o partido grego [KKE] talvez seja o partido que tem os estudos mais profundos sobre as causas do fim da desagregação da União Soviética e da reimplantação do capitalismo.
Também Charles Bettelheim, economista e sociólogo francês, comenta que as causas principais foram a falta de uma teoria e que a luta de classes prolongou-se dentro do partido, isto é o que ele chama as guerras civis. Mas há outros dizem que foi o Vigésimo Congresso. Então os responsáveis seria o Trotsky, seria o Stálin, seria o Khrushchov... um absurdo, não se pode ver uma crise tão profunda como a que levou à reimplantação do capitalismo atribuindo ou a uma personalidade ou a uma única causa, É todo uma suma de fatores que ao longo do tempo se vão acumulando e que produzem esse efeito, e nós temos que perder esta tendência sectária de personalizar as crises e atribuir a este ou àquele, porque isso é um absurdo completo. No caso de Stálin ou Trotsky, ou tudo foi perfeito ou tudo foi errado, e não foi, nem num nem no outro. Foram o que foram, seres humanos com acertos e com erros e que ao longo da vida tiveram posições muito diferentes. Há uma tendência dominante que não ajuda à compreensão da complexidade da história.
DL - Apesar do insatisfatório destas experiências socialistas doséculo XX, e apesar também do grau de fragmentação edesintegração das organizações revolucionárias, do estado atual de certo antipoliticismo, antipartidismo e uma defesa abstratados movimentos sociais... Todo este panorama que se apresentapermite-te ser otimista ainda, apesar de tudo, de cara a este novo século que vivemos?
Miguel Urbano - Eu sou otimista desde a minha idade. Nós vemos que logo após a reimplantação do capitalismo na União Soviética, e ainda antes, começaram a surgir uma série de obras, entre elas aquela obra daquele funcionário do Departamento de Estado, Francis Fukuyama sobre o fim da história, que dizia que o neoliberalismo ia ser a ideologia definitiva e que o marxismo era obsoleto. Começaram primeiro por atacar o Stálin, deste passaram ao Marx, deste ao Lenine... e a seguir era uma ofensiva permanente e pensou-se que tudo tinha acabado.
Porém, nos últimos anos estamos a assistir a um fenómeno que é contraditório, sobretudo na Europa ocidental, nos lugares onde os partidos comunistas não foram destruídos ou socialdemocratizados. No caso de França ou de Itália, foram destruídos e noutros são partidos que tiveram uma traição de intelectuais que se diziam marxistas e que muitos atravessaram para o outro lado do rio.
No entanto, assiste-se a um renascimento da intelectualidade brilhante que está a produzir obras que exigem... e citei já aqui alguns como o Domenico Losurdo em Itália, Georges Labica e Georges Gastaud em França ou Jean Salem, que recomendo particularmente aqui aos amigos galegos e que tem um pequenino livro que nós traduzimos para o português que se chama: Lenine e a revolução. É um livro que foi traduzido no Brasil e em Portugal e que em menos de 100 páginas apresenta 6 teses de Lenine e mostra a plena atualidade do pensamento de Lenine para compreendermos a crise do nosso tempo. É um ensaio luminoso, brilhante e numa linguagem facílima.
Estou a citar estes casos para nós entendermos os processos da América Latina, que se tratou hoje aqui permanentemente. Às vezes há um bairrismo na América Latina, Europa, Ásia.. Na Venezuela vi recentemente alguns intelectuais, até amigos e de respeito, a dizerem que a Europa está decadente. Nós não podemos ver as coisas dessa maneira. Temos que ver é quais são as posições e que tipo de atitudes e olhares da crise contemporânea se têm e extrair de cada lado o melhor que há.
Hoje falou-se muito aqui do socialismo do século XXI. Eu considero absolutamente negativo que num país que desempenha um papel absolutamente fundamental na América Latina hoje como é a Venezuela e do povo venezuelano e todo esse processo revolucionário em andamento, contraditório... considero, como digo, absolutamente negativa essa ideia de agora de vamos descobrir o socialismo perfeito que é o socialismo do século XXI. Isto é um disparate e não ajuda nada, devemos dar muito combate a este sectarismo.
DL - Então dá para sermos otimistas?
Miguel Urbano - Eu sou apesar de tudo otimista e tendo ao meu favor o facto de ter 86 anos. O meu tempo de vida útil é muito breve, mas como eu aqui hoje dizia, não tenho compromissos com o calendário, o meu compromisso é com as ideias pelas quais vivi, pelas quais lutei e nas quais eu acredito. Nesse sentido, eu acredito na humanidade, que padeceu incontáveis crises desde o começo das primeiras civilizações do mediterrâneo oriental e do médio oriente e que sempre conseguiu encontrar saídas e que vai encontrar novamente as saídas.
A história não são 10 ou 15 anos. A rapidez com que os Estados Unidos perderam esta ideia de que queriam conquistar o domínio perpétuo e universal sobre a humanidade... estes mitos estão a ser destruídos pelo andamento da história e a luta dos povos.
DL - Umas palavras finais para os galegos e as galegas que vão ler esta entrevista no Diário Liberdade?
Miguel Urbano - Quero repetir a minha grande alegria por estar aqui. Portugal é filho da Galiza e a nossa língua nasceu aqui. Eu sou, evidentemente, profundamente solidário com a luta do povo da Galiza contra a opressão secular de que tem sido vítima e espero que encontre a saída, que seja a mais progressista e a que responda particularmente aos comunistas galegos na sua luta corajosa.
DL - Obrigad@s, camarada Miguel!
Compostela, abril de 2012