Impérios não começam como abusadores-provocadores. Começam como reação ao Império anterior que se tornou abusador-provocador depois de se agarrar à húbris, não à humildade.
Perto do fim, os Impérios têm de recorrer a abusos-provocações, porque são fundamentalmente fracos. Todos se superdistenderam seguindo a depreciação da moeda, superdistensão a qual, por sua vez, degrada a vantagem cultural que a sociedade teve antes sobre o Império que se acabou.
Donald Trump sabe abusar-provocar, aprendido dos melhores abusadores-provocadores. Vou e volto sempre ao tema do status de Trump como abusador-provocador. É figura mercurial, homem de imprevisibilidade previsível.
Vejo-o mais como um Loki do que como abusador-provocador típico. Em outras palavras, é provável que não cometa injustiça se disser que, para Trump, abusos-provocações são só tática, uma tática como outra qualquer.
Assim, como presidente dos EUA, que é Império nos estágios iniciais do colapso, fundamentalmente enfraquecido por duas gerações de construção de Império depois do fracasso de Bretton Woods, Trump cometerá abusos-provocações contra seus adversários, porque sabe que Império que não seja temido logo logo será gargalhado.
E quando isso acontece, é fim de jogo.
Trump compreende que os EUA já não podem pagar o preço da ordem institucional pós-2ª Guerra Mundial. A Europa está-se reconstruindo, mas a União Europeia dedica-se a re-rasgá-la em pedaços, para salvar o globalismo.
E quem se beneficia dos nossos centavos minguados é a Alemanha.
Assim sendo, se você é contra o Império, independente do lado político em que milite, você deve considerar evento bem-vindo o ataque de Trump ao G7 e, especialmente, à Alemanha.
Mas você deve preocupar-se, isso sim, com a evidência de que os mesmos abusos-provocações viram-se também contra Rússia e Irã. Em meu mais recente artigo para Strategic Culture Foundation, lembro a todos que quem aconselhava Trump sobre Ucrânia e Crimeia no início de 2017 era ninguém menos que Mr. Realpolitik, Henry Kissinger.
E depois de ver o modo como Trump processa nosso relacionamento com a Rússia, é claro para mim que a influência de Kissinger sobre Trump foi muito mais forte do que todos supuseram.
No que tenha a ver com o Kremlin
A Esquerda que esbraveja sobre 'colusão' com a Rússia é doida. Trump não prestou servicinhos secretos a Putin, aí, pelas costas de todos. Não há qualquer coordenação política entre os dois.
Passei quase todo o ano passado discutindo com gentes do "Make America Great Again", MAGA, que acreditavam seriamente que Trump e Putin estariam unidos numa guerra secreta contra o Estado Profundo e os neoconservadores. Choveram argumentos de xadrez 4-D.
Nem quando a realidade era que Trump e Putin estivessem em contato para evitar que acontecessem pequenos conflitos diretos entre forças dos EUA e da Rússia na Síria, significava que Trump estivesse amolecendo com a Rússia, fosse como fosse.
Não provocar país armado com bombas atômicas não é prova de colusão: é evidência da presença de células cerebrais que ainda funcionam satisfatoriamente (o que não pude dizer essa semana, sobre a maioria dos críticos anti-Trump).
É princípio operacional que comandou também o encontro, essa semana, entre Trump e o líder da República Popular Democrática da Coreia, RPDC, Kim Jong-un. Foi esperteza de Trump reunir-se com Kim, que há cinco anos faz pouco caso das manobras dos EUA, porque não há quem não saiba que, sim, ele construiu e mantém ativo seu arsenal nuclear.
Isso empurrou os EUA para a mesa de negociações, e Trump, bem esperto, aproveitou a chance de salvar a cara e preferiu a paz.
Não se pode dizer que haja no horizonte coisa semelhante a isso, com a Rússia, hoje.
O Kremlin já andou adiante. Bem que apreciaria que uma melhor relação com Washington, mas não tem qualquer ilusão quanto à qualidade da relação que há. Conta a favor de Putin que ele não descartou a possibilidade de falar com Trump, mas, como Alistair Crooke explica hoje, não se pode dizer que haja qualquer boa razão para que fale.
Trump sapateou sobre tantas e tantas linhas vermelhas, com sua política inspirada em Kissinger para 'obrigar' a Rússia – com agressões econômicas e políticas – a abandonar as relações com a China, que os russos sabem bem que pouco têm a ganhar em qualquer 'conversação' que ultrapasse questões de chove, não chove; faz calor ou faz frio.
Cuidado com o caldeirão
Para derrubar um abusador-provocador, você tem de esperar que ele se superdistenda. O abusador-provocador tem de se sentir seguro de que você se manterá passivo, por mais que ele abuse-provoque. Significa que o abusador-provocador lhe dá um tabefe e você oferece a outra face. O abusador ataca seus amigos, você não ataca os amigos dele.
Já há mais de um ano, temos visto isso, em todo o mundo, contra os russos, na Síria e na Europa. São ataques nos dois casos militares, na Síria e na Ucrânia, e financeiros, no gasoduto Ramo Norte 2.
Ao longo do ano passado, detalhei tudo isso. Putin suportou tantos diretos no queixo, que as relações EUA/Rússia mantêm acentuada semelhança com a "Luta na Selva" [ing. "Rumble in the Jungle", 30/10/1974], quando Mohammed Ali deixou que George Foreman o castigasse, round após round, por oito rounds, e se exaurisse na vã tentativa de o derrubar.
Até que, quando Foreman já sentia os braços como se fossem de chumbo, as pernas, geleia, Ali atacou tão duro e tão rápido, que aturdiu o planeta.
A estratégia militar russa é dominada por esse tipo de pensamento. Atraia o oponente. Crie e ofereça um ponto fraco e deixe que ele bata, bata e bata. Convoque o caos. Faça o oponente crer que esteja vencendo.
Assim sendo, estamos hoje no seguinte pé:
1. Se Trump conseguir que a Alemanha se acovarde ante seu regime de sanções, porá o Irã sob pesada pressão, financeiramente e socialmente.
2. Pode levar a uma retirada formal das Forças Quds, do Corpo de Guardas Islâmicos Revolucionários, da Síria. Mais uma vitória.
3. Mas só acontecerá se os EUA deixarem a passagem de fronteira de Al-Tanf. Pequeno preço a pagar.
4. O governo alemão pisa terreno cada vez mais escorregadio, com o AfD [(partido) Alternativa para a Alemanha, de direita] que não lhe dá sossego e inferniza o dia a dia no Parlamento, com o ministro Horst Seehofer, da união governante, ministro do Interior, que desafia abertamente a chanceler Merkel por causa de sua política para os imigrados.
5. Os EUA negociam um acordo com a Turquia para controlar Manbij, possivelmente para minar a relação da Rússia com Erdogan, mantendo os turcos na Síria, para complicar as conversações de paz.
6. Conflito militar muito provável na Ucrânia nas próximas semanas com a Força Aérea da Ucrânia atacando o Donbass e um incidente no Mar de Azov.
7. Apoiar o governo Poroshenko em processo de colapso, com problemas antes das eleições e arrastar Putin a apoio direto na região, o que poderia justificar mais sanções e manter a UE ao lado dos EUA, 'por causa' da "agressão russa" e 'porque' os russos "não respeitam os acordos de Minsk."
8. Trump está abertamente conectando as sanções e a normalização do comércio, com o fim da construção do gasoduto Ramo Norte 2, negociação à moda Máfia que complica ainda mais a vida de Angela Merkel.
9. Mais cinco empresas russas foram sancionadas essa semana 'por crime' de 'ciberataques'.
10. Trump está abertamente ameaçando grandes multinacionais que negociam nos EUA, por participarem na construção do gasoduto Ramo Norte 2.
Acho que vocês já entenderam. Posso continuar a lista por mais uma, duas páginas.
A armadilha se fecha
A questão é que esse é típico comportamento de abusador-provocador, é bullying clássico. Trump está pot-committed, como dizem os jogadores de pôquer. Tem tantas fichas em jogo e tão poucas para jogar, que não tem saída para sua política: ou continua, ou está fora do jogo.
Depois que você começa com sanções e ameaças, não pode parar. É preciso aumentar, aumentar, ou o blefe será desmascarado. Com a Europa, ok, Trump tem ases. Os países da Europa dependem dos EUA e a fraqueza deles será ganho para os EUA por mais um, dois anos. A crise da dívida soberana da Europa explodirá, e os EUA verão entrada massiva de moeda estrangeira.
Será vitória massiva, mas não será A Vitória. E derrotar a Europa é praticamente se posicionar para a grande derrota: na luta pelo Oriente Médio e na integração da Eurásia.
O gambito de Trump com Rússia e Irã vai-se tornando jogo de tudo ou nada. Trump está comprometido, está com tudo apostado no tudo. A passividade de Rússia/Irã/China levou-o a apostar sempre mais e mais. O governo Obama, temerário ao criar lixões na Ucrânia e na Síria, entregou péssimas cartas a Trump, e nada além de um punhado de fichas podres.
Até agora, Trump não ganhou sequer uma mão, que fosse, no Oriente Médio. Sim, sim, conseguiu manchetes. Mas Putin, Rouhani, Nasrallah e Assad venceram todas as rodadas que realmente fazem diferença. Trump venceu mãos fáceis, que renderam nada. O quadro para algum acordo nunca mudou. E não há complicações inventadas à moda Kissinger que alterem o mundo.
Irã não quer permanecer na Síria, tanto quanto Putin não quer intervir no Donbass. Quer dizer: é fácil tirar o Irã, da Síria – é só Trump sair de lá. Israel não vai gostar, mas Israel não decide nada. Foi o que Putin disse com todas as letras a Netanyahu, quando Netanyahu visitou Moscou.
Os curdos tomarão a decisão por Trump, agora que já estão abertamente negociando com Damasco, depois que Trump os apunhalou pelas costas na questão de Manbij. E sem o apoio dos curdos, os EUA absolutamente não podem permanecer na Síria.
Quer dizer que, na hora de mostrar as cartas, Trump não terá ases. O clássico caldeirão russo se fechará em torno dele. Perder tudo na Síria será o fim do Império Norte-americano fora de casa.
E o mundo festejará.