Dia 04 de dezembro de 2016, em vários estados do Brasil, novamente ocorreram manifestações de massa convocadas por grupos e organizações de direita. O evento teve grande repercussão midiática, como das vezes anteriores. Em muitos aspectos, há uma clara continuidade em relação às manifestações que desembocaram na subida de Michel Temer ao governo central do país: discurso anticorrupção, pedidos de golpe militar, defesa da Operação Lava-Jato etc. No entanto, o Executivo parece ter saído do foco dos protestos, mesmo com vários de seus membros investigados por corrupção, e o Congresso Nacional, com sua pauta que afronta setores e práticas do judiciário, parece ter virado o bode expiatório da vez.
O que essas manifestações dizem da atual conjuntura brasileira? Como podemos entendê-las a partir de uma análise mais aprofundada? Para debater essas questões, o Diário Liberdade entrevistou a militante e professora da Escola de Ciência Política da UNIRIO, Clarisse Gurgel. Ela também é colunista do site LavraPalavra, onde escreve com frequência sobre a conjuntura do país e os dilemas da esquerda contemporânea.
Agradecemos imensamente a disponibilidade da entrevistada, que prontamente colaborou com nosso Diário.
Diário Liberdade: Clarisse, como você avalia as manifestações do dia 04? Poderíamos afirmar uma retomada dos protestos de direita, que estavam em refluxo desde o impedimento de Dilma?
Clarisse Gurgel: Pois é. A pergunta é bem oportuna porque nos permite uma análise mais cuidadosa. Diria até mesmo que não houve refluxo. Se formos observar, os protestos da direita, em sua maioria, contaram com poucos ensaios. E chamo de ensaios aquelas manifestações que servem de agitação inicial para outras mais volumosas. Nas grandes capitais, os conservadores conseguem manter uma vitalidade em seus atos, pelo próprio caráter que possuem, de verdadeiras sessões de descarrego. Além disso, os protestos mantêm interlocução contínua com as movimentações superestruturais. Moro e companhia são dirigentes políticos com poder. Até a queda de Dilma Roussef, a ofensiva da direita, das diversas forças conservadoras, veio em um crescente. No marco do que a esquerda convencionou como acúmulo de forças. Algo que a própria esquerda, em grande medida, esqueceu da importância.
Após o impedimento da presidenta, assistimos, ainda que em cenas discretas, a inquietação de setores do empresariado ainda sem unidade em torno de um nome a servir de síntese política para os projetos do capital, no poder do Estado. Esta ausência de acordo entre eles deixou em aberto o processo que sucedeu o impeachment. Não sabíamos, assim como não sabemos ainda, ao certo, se assistiríamos um chamado para novas eleições ou se o vice de Dilma contemplaria as forças golpistas. Este impasse, ademais, foi o diapasão para o próprio processo de perseguição da presidenta, que oscilou desde apenas uma movimentação de desgaste do executivo como forma de facilitar as ações do legislativo e judiciário, até a incorporação mais consequente de uma estratégia de derrubar efetivamente o PT, por meio da figura da ex-pedetista. Assim, testemunhamos agora o continuum desta ausência de unidade política entre os empresários que se dividiram, até há pouco, entre os que se beneficiaram e os que ficaram de fora dos grandes esquemas, na Era Lula, do mercado político – aquele em que a ação política tem valor de troca tal como as relações de compra e venda.
O esforço do empresariado, no momento, é de se recompor em torno de algum quadro capaz de manter dispensável o populismo de esquerda. Temer parece não contemplar a todos da direita. Além disto, a divisão interna do partido protagonista da governabilidade por coalizão, o PMDB, tensionado pela polarização PT versus “nós”, ainda é um fator complicador para a recomposição política do capital. Como reflexo desta disputa em torno do “dia depois de amanhã”, assistimos agora a tentativa, por parte de alguns setores mais extremistas, de reinstaurar a atmosfera de crise política. Enquanto o governo procura, assim como Dilma, nomear a crise em termos de recessão. A esquerda, porém, não consegue avançar de forma mais substancial em sua contraofensiva. Pedidos de Inquéritos Parlamentares, apresentações de petições e de projetos que visam compensar uma desfavorável correlação de forças têm sido métodos corriqueiros entre nós. A chamada “judicialização da política” não é recurso novo. E o que obtemos de vitória relativa, judicializando a política, demarca também o espaço e o tempo da reação dos políticos, naquilo que, desde o primeiro mandato de Lula, tornou-se o reduto da direita: o judiciário. E nada melhor do que a política para liberar a Justiça e seus tiranetes dos eventuais constrangimentos da lei. A politização do judiciário torna legal toda a forma de abuso. Assim, a busca por limitar o poder, indubitavelmente abusivo, deste judiciário, por meio do famigerado “Pacote de medidas anticorrupção”, acabou por atiçar, na linguagem do adversário, setores mais raivosos, que contam, justamente, com uma estrutura forte na Justiça.
E, em nome da defesa do que encarna a forma de um valor universal, a direita alardeia todos sobre a ameaça que sofre a heroica operação Lava Jato. Este é o cenário perfeito para reabrir o debate intestinal acerca da real sucessão de Dilma.
Diário Liberdade: A defesa da operação Lava-Jato e do juiz Sérgio Moro ontem nos traz a uma questão complicada, que é a relação entre o direito e a política. Judicialização da política, politização do judiciário, ou nenhum dos dois: o que vivemos hoje?
Clarisse Gurgel: Pois é. O que acabava de dizer. Judicializar a política é terreno fértil para aqueles que fazem política no judiciário, pois a “pólis” é transferida para as torres dos palácios. Há uma frase conhecida do ator e escritor Constantin Stanislavski que diz que o Rei só se torna Rei se os súditos assim o enxergam. Mal ou bem, o judiciário adquiriu o poder que hoje possui – de governar o país – pela contribuição que a esquerda deu ao esvaziar de social – de conteúdo efetivo e vivaz – o político, por meio da verticalização burocrática da ação, via judicialização, por exemplo.
Diário Liberdade: O que a forma de uma manifestação diz dela? Dia 29/11, em Brasília, o protesto chamado pela esquerda teve forte repressão, mas também resistência, retomando polêmicas muito recorrentes no levante de 2013. Já ontem, o próprio MBL em sua página se orgulha pelo ato ter sido "pacífico" e "democrático". Como pensar essas diferenças, se são mesmo relevantes?
Clarisse Gurgel: Gostaria de problematizar um aspecto que tangencia esta questão. Em seguida, tratarei diretamente do ponto. É curioso que, hoje, mais do que nunca, ao mencionarmos certas manifestações e protestos, no Brasil, precisamos antes esclarecer se estamos tratando de algum evento da direita ou da esquerda. O aspecto mais relevante disto, a meu ver, é a aparente mudança de gramática. Poderíamos denominar também como estética.
A forma de ação política caracterizada pelas marchas, passeatas, comícios... Era marca da esquerda, dos trabalhadores organizados ou de setores populares indignados diante da exploração e da opressão. Ir às ruas era o meio que restava de imprimir e exercer pressão, por parte de uma maioria sem poder, sobre uma minoria poderosa. Além disto, este modo de agir de esquerda carregava o princípio de que problemas coletivos devem ser resolvidos de forma coletiva. Seja em termos de seus meios, seja em termos de seus fins, as manifestações serviam como processos educadores, para além de demonstrações de acúmulo de força.
Da parte dos conservadores, porém, o que se desenvolve é a crença na solução individual daquilo que sabemos se tratar de problemas estruturais do capitalismo, mas que os capitalistas cuidam de situar como problemas oriundos da competência de cada um. É nesta perspectiva individual que a noção de cidadania é forjada, como forma de limitar e delimitar a ação política, velando seu caráter de classe. A cidadania é aquela perfeita ideia de si, em que se dilui as diferenças de classe, a partir de uma pretensa igualdade de direitos e deveres. Esta é a forma, por excelência, de homogeneizar aquilo que está permeado de contradições e que é, efetivamente, inconsistente. Marx já tratou muito bem disto, em A questão judaica, distinguindo emancipação política de emancipação humana, ao apontar para o cidadão como aquele que conquistou o direito de ser explorado, em um sistema que só pode se perpetuar se a igualdade e a liberdade se despirem da fraternidade.
Mesmo um olhar ligeiro nos permite notar que os protestos dos conservadores possuem a atmosfera de um gozo da cidadania. Sem prejuízo do que se pode abordar acerca da diversidade na composição social dos atos dos chamados “coxinhas”, o que se nota de preponderante é a satisfação de cada um, lá presente, diante do fato de se supor recuperar o sentido da vida por meio de uma ação cidadã.
Ainda assim, algo permanece misterioso nestes tempos em que os que querem conservar são os que se movimentam: o porquê daquele imaginário que delimita a política em termos da ação individual incorporar, hoje, o caráter coletivo que é marca das ações da esquerda. Arriscaria dizer que a razão disto se encontra nos limites da própria esquerda. Nos últimos anos, testemunhamos avanços em direitos restritos, em especial, àquelas bandeiras que marcam as lutas identitárias e de costumes: no Brasil, a união homoafetiva foi aprovada, a legalização do aborto e das drogas começa a ser cogitada. Isto explica o porquê de setores que nada perderam, em termos do que o Estado adota como medida para garantir os lucros do capital, resolverem ir para as ruas protestar. Esta é a razão, ademais, para a sensação que temos de que a reação conservadora é desproporcional à ação transformadora, ao ponto de termos dúvida acerca de quem age e quem reage, sobre de que lado estaria a ofensiva e a contraofensiva. Ao meu ver, o aspecto coletivo que assume o exercício da cidadania dos conservadores encontra explicação aí: nos marcos morais em que está a insatisfação da direita. Este seria o motivo pelo qual o resgate de valores universais torna-se tarefa dos que querem conservar.
A ironia disto tudo é que, assim, estamos perdendo para os conservadores a tarefa de cultivar pensamentos – valores, métodos, princípios, concepções. A esquerda precisa compartilhar pensamentos, entre si. Só sendo comum a nós que o comum se torna passível de universalização. Mas para assumirmos esta grande tarefa precisamos superar certos fantasmas que provocam uma triste confusão entre totalidade e um tal de totalitarismo. A pluralidade só é garantida se forjamos universalidades. Algo próximo do esforço que um colega professor, Joanildo Burity, bem sintetizou como o de relativização de pretensões essencialistas. Aquilo que requer, como condição para a liberdade, uma atuação nossa consciente de nossos próprios limites. É o que permite a construção de sujeitos coletivos sem a dissolução das diferenças num todo homogêneo. Assim, diria que, enquanto a esquerda não compreender esta dimensão, não recuperará sua maior distinção: seu papel de revolucionária universal. Na ausência deste entendimento, o que vemos é a fragmentação crescente das forças militantes, em nome, ainda que de soslaio, do que acreditam ser a autonomia e a independência de cada setor, categoria, organização... Indivíduo... Em suas singularidades e especificidades.
Tal como ocorreu em Brasília, as organizações não chegam a acordos, se digladiam, muitas vezes com práticas mesquinhas, com leituras melindradas da realidade e com uma descrença discreta na luta como método. Isto é o que também dá margem a reações desorganizadas e poucos solidárias com os que estão em uma manifestação. São comuns aqueles rompantes marcados por certo capricho narcísico de atos heroicos isolados ou até mesmo pelo desespero, por um forte desapego à vida diante de tantas derrotas. O fetiche na autonomia acaba por pairar sobre todos, cada um ou cada grupo, sob equivalentes estilos, em um imaginário comum que esvazia de eficácia o potencial comunal do método coletivo. Aliás, os dois termos, juntos, já seriam também uma tautologia – autonomia e fetiche -, pois a crença em um sujeito que possuiria vida própria, sem determinações externas, carrega semelhança com a crença em uma coisa com vida própria, sem interferência do trabalho social, o tal feitiço, da mercadoria. Este mosaico de forças guarda, sem dúvida, semelhança com as jornadas de 2013. Lá, o que víamos era o desacordo em termos de estratégias e táticas ser exposto através das feições de guerra civil que os protestos assumiam, em que a violência era experimentada sem direção.
Diário Liberdade: Houve vários debates entre grupos e organizações da esquerda sobre a participação ou não em atos contra a corrupção, hoje associados à direita. Você acha que essa deva ser uma bandeira na reorganização da esquerda brasileira? Ou a corrupção é apenas um nome para uma agenda outra da direita?
Clarisse Gurgel: Costumo dizer que empresário corrupto é um termo impossível. Pois o empresário só se corromperia se mudasse de prática, em termos de ruptura com seus próprios valores. Então, estaríamos tratando de um empresário que não explorasse, por exemplo. Coisa que, em si, carrega uma impossibilidade pelo antagonismo dos termos. A bandeira de combate à corrupção é muito curiosa, portanto. Ela é a condenação de uma violação, na política, que é a regra, no mercado. Nas relações entre mercadorias, tudo possui valor de troca e, na esteira do que defende o mais clássico dos liberais, Adam Smith, poder é a capacidade que o sujeito tem de adquirir o máximo de quantidade de trabalho alheio.
A abstração do trabalho, por via de uma medida de valor, é o que explica a centralidade do dinheiro como aquela coisa única que possui poder universal de troca entre tudo e todos. Em termos atuais, poder é dinheiro. Mais especificamente, poder é capital: dinheiro que faz dinheiro. Quando vemos parlamentares dispostos a venderem-se, estamos diante de nada mais do que a interseção, inevitável no capitalismo, entre o público e o privado. E aqui escolho os termos cirurgicamente: aquilo que é do Estado com aquilo que é retirado, privado, do trabalho social – a riqueza. Não é sem motivo que a fonte principal da chamada corrupção são os processos de licitação: justamente aquilo que proporciona o reencontro direto da coisa pública com a atividade empresarial.
Este reencontro formal entre aqueles que vivem juntos é o dado relevante para entendermos que, no capitalismo, não existe corrupção. O que existe é a regra da apropriação individual do que se produz coletivamente. Se é um parlamentar que se apropria do dinheiro público ou um empresário que extrai mais-valia, a diferença está apenas na fantasia denominada “honestidade”: daquele que rouba e daquele que rouba honestamente. Neste sentido, podemos dizer que, se a esquerda se dispuser a incorporar em suas bandeiras o combate à corrupção, terá que ter o compromisso de radicalizar suas palavras de ordem, pois o fim do mercado político é impossível sem o fim de toda forma de mercado, em que o que importa é o valor de troca das coisas e das pessoas – o que cada um tem a oferecer em troca – e não a utilidade e o valor espiritual das coisas e pessoas, em suas relações. Assim, aquele que não quiser ser tido por cínico, ao combater a corrupção, deve, ao mesmo tempo, combater a lógica do capital.