O Estado é igual a uma unidade familiar, de modo que, precisa ter um controle rigoroso de suas despesas. Essa máxima está na boca dos banqueiros, das autoridades macroeconômicas, de muitos políticos, dos articulistas da grande imprensa, de alguns magistrados do Supremo Tribunal Federal e do brasileiro comum. A princípio, parece uma ideia interessante: colocar freios no Estado e nos governantes que o administram para evitar dissabores, como o endividamento descontrolado e/ou o financiamento inflacionário do gasto público.
Todavia, seguindo as lições do brilhante e saudoso Celso Furtado, é preciso ter cuidado com os consensos que se impõe a uma sociedade. Nesse sentido, cabe aqui desmistificar a equiparação entre o Estado e uma família, introduzindo uma pitada de heterodoxia nesse tema:
1º) O Estado desempenha um papel crucial do ponto de vista do crescimento da economia, distribuição de renda e bem-estar social. Logo, quando o Estado retira seu time de campo, as consequências para a economia e a sociedade são catastróficas. Em um primeiro momento, a redução do gasto público, desestimula os gastos das empresas e das famílias. Em seguida, em virtude do desaquecimento da economia, decorrente de um menor volume de investimento e consumo, o Estado se deparará com uma queda em sua arrecadação de impostos. É fácil perceber a existência de um círculo vicioso perigosíssimo, que tornará cada vez mais difícil a recuperação da economia.
2º) Por outro lado, quando nos dizem que “não há o que fazer, temos que aceitar alguns sacrifícios”, estão nos escondendo que o ônus do ajuste recairá principalmente sobre os mais pobres, por aqueles que mais dependem dos serviços públicos e recursos recebidos das políticas sociais do Estado. Assumindo a hipótese de que temos de fato que fazer sacrifícios seria razoável que eles fossem assumidos pelos endinheirados do país, por aqueles que estão no andar de cima. É público e notório (muito embora o governo e os formadores de opinião tentem esconder) os excessos nos gastos públicos destinados a matar a fome do capital rentista/especulativo, atrelados à dívida pública (pagamento de juros e amortização) e à política cambial (operações de swaps cambiais). Não nos esqueçamos dos super-salários fura-tetos do setor público.
3º) Colocam no mesmo pacote Estado e família, mas destacam apenas o lado da despesa. Ora, as famílias brasileiras não correm atrás de bicos para aumentar sua renda? Nesse sentido, considerando também a importância das receitas para o equilíbrio das contas públicas e fugindo do receituário ortodoxo, encontraremos propostas que certamente alavancariam a receita do setor público, tais como: i) redução das alíquotas dos impostos indiretos, sobretudo no caso dos produtos de primeira necessidade; ii) aumento das alíquotas dos impostos voltados aos brasileiros de maior poder aquisitivo, especialmente dos tributos atrelados à renda e patrimônio; iii) criação de novos impostos, como o imposto sobre lucros e dividendos e o imposto sobre grandes fortunas; iv) revisão da política de renúncia fiscal (reavaliação dos setores contemplados, estabelecimento de exigência de contrapartidas aos setores e empresas beneficiadas e monitoramento dos setores contemplados).
Ora, não restam dúvidas de que a irresponsabilidade fiscal pode trazer danos às contas do Estado e, consequentemente, à economia e sociedade. Entretanto, a saída de cena proposta pelos que igualam o setor público a uma família é tão ou mais irresponsável do que a gastança descontrolada. Não há registros na história de países que conseguiram recuperar sua economia com políticas de ajustes fiscal. Conforme destacado, há saídas para a crise, no campo heterodoxo. No entanto, a hegemonia ortodoxa (na academia e no governo), o conservadorismo que predomina na cena política brasileira e a manipulação da opinião pública interditam tais propostas e favorecem o estabelecimento de um consenso em torno dessa agenda de terra arrasada. Logo, o consenso ortodoxo que nos é imposto, de fato é reflexo de uma era pouco criativa da sociedade brasileira, mas também evidencia sua repulsa ao diálogo e dissenso.
A aprovação da PEC do teto (55) pelo parlamento tirará o fôlego financeiro do setor público brasileiro, trazendo um grande retrocesso à economia e sociedade. O congelamento dos gastos do governo federal por 20 anos além de não resolver os problemas fiscais do Estado, aprofundará a crise e agravará nossos problemas sociais. Estamos diante de mais um engodo neoliberal, que apequenará o Estado brasileiro não permitindo que ele cumpra seus deveres com a sociedade previstos na Constituição de 1988.