"A Operação Lava Jato já apurou os desvios de corrupção na construção de Belo Monte, na Transposição do Rio São Francisco, na construção de Angra III, na implementação de obras relacionadas à Petrobras – como o Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj). Todas essas obras tiveram incentivos de diversos órgãos governamentais, como o Ministério das Minas e Energia e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), dentre outros. Hoje é de conhecimento público que tudo foi feito de forma ilícita", diz Rogério Rocco, advogado e analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) à IHU On-Line. Segundo ele, esses casos exemplificam as tensões existentes entre as instituições ambientais e os políticos, e o modo como os órgãos ambientais "foram" e têm sido "atropelados para que esses empreendimentos fossem licenciados e autorizados, muitas vezes à revelia das obrigações socioambientais".
Órgãos como Fundação Nacional do Índio (Funai), Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) "são tratados como se fossem meros cartórios para a emissão de papéis legitimadores de um modelo perverso de desenvolvimento, que atende à fúria capitalista de ganhar dinheiro com o menor esforço e com baixo compromisso social e ambiental, associada à cultura da corrupção que impregna grande parte dos detentores de funções de comando governamental", afirma.
Para Rocco, a agenda ambiental não tem sido uma prioridade do Estado brasileiro. "Nas políticas públicas ficam também notórias essas evidências. A presidente Dilma inovou e o presidente Temer copiou a fórmula perversa de desafetar áreas protegidas por medidas provisórias. A Constituição Federal determinou que essa possibilidade só poderia ocorrer por lei. É um escárnio jurídico que o STF não faz questão de corrigir", critica. Além disso, pontua, persistem as tentativas de abolir o licenciamento ambiental para a produção de transgênicos, "para cessar a criação de unidades de conservação, de terras indígenas e de territórios quilombolas, para liberar a mineração em parques nacionais", informa.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, Rogério Rocco também comenta a Carta aberta e manifesto dos servidores do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – Ibama, endereçada ao Ministério do Meio Ambiente em dezembro de 2016, por conta do crescimento de 29% do desmatamento na Amazônia no ano passado. Esse dado, frisa, "representa um revés significativo das políticas públicas de controle da atividade, que se iniciaram de forma concreta com o Plano de Controle e Combate ao Desmatamento da Amazônia, em 2004" e é consequência da "desfiguração do Código Florestal Brasileiro" e "resultado direto das políticas públicas fomentadas pelo governo federal, por governos estaduais e municipais, à revelia dos interesses da sociedade brasileira e dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil para o controle das emissões dos gases estufa".
Rogério Rocco é advogado, professor de Direito Ambiental e analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade ICMBio/MMA. É mestre em Direito da Cidade pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense (UFF). É Coordenador da Pós-Graduação em Direito Ambiental da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ). Foi Coordenador Regional do ICMBio, Superintendente do Ibama/RJ e Secretário de Meio Ambiente de Niterói/RJ. É autor de Estudo de Impacto de Vizinhança – instrumento de garantia do direito às cidades sustentáveis (Lumen Juris, 2009).
Em que contexto e por quais razões foi formulada a carta manifesto divulgada pelas chefias do Ibama?
Há um contexto principal e objetivo, mas não o único: o desmatamento na Amazônia cresceu, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), 29% em 2016, em comparação ao ano anterior. Isso representa um revés significativo das políticas públicas de controle da atividade, que se iniciaram de forma concreta com o Plano de Controle e Combate ao Desmatamento da Amazônia, em 2004. Na ocasião, o desmatamento atingiu patamares na ordem de 28 mil km², mas foi sofrendo quedas sucessivas desde então, com pequenas variações. Em 2012 foi atingido o menor índice de desmatamento desde os anos 80, na faixa de 4,5 mil km², mas a queda foi suavemente interrompida nos anos seguintes, até que chegamos em 2016 com 8 mil km². Ou seja, depois de 10 anos de fortes investimentos no controle, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que tem papel decisivo na atividade, começa a testemunhar a reversão do processo.
É nesse contexto que as chefias resolveram alertar a sociedade de que estamos numa perigosa fase de retrocessos, já que o governo é composto majoritariamente por atores políticos e econômicos que operam ao lado das principais atividades responsáveis por desmatar nossa floresta. Isto é, ou a sociedade volta a se mobilizar nessa agenda, ou esses atores irão protagonizar pelos próximos anos uma profunda derrota às políticas de controle ambiental.
Um dos pontos da carta manifesto menciona justamente esse aumento da taxa de desmatamento da Amazônia em 29% em um ano. A que atribui esse aumento?
Os índices históricos de desmatamento costumam acompanhar os grandes ciclos da economia, haja vista que são econômicas as motivações para o corte raso das florestas, como o comércio de madeira, a expansão das monoculturas e da pecuária, a exploração mineral, a construção de hidrelétricas etc. Portanto, seria uma contradição esse crescimento num ano a que se atribui uma hipotética crise econômica. Por aí, podemos desconfiar do falacioso e insistente discurso que afirma a existência de profunda crise econômica no Brasil.
Consequências do Código Florestal
Mas há um fator objetivo que deve ser reafirmado, tendo em vista que já foi previamente denunciado por cientistas e organizações socioambientais, que foi a desfiguração do Código Florestal Brasileiro, com a aprovação da Lei nº 12.651/12. Essa lei premiou os criminosos que desmataram ilegalmente suas propriedades, deixando de exigir a recomposição de Áreas de Preservação Permanente (APPs) e reservas legais; aboliu a exigência de manutenção de percentuais de florestas nativas em propriedades rurais com até quatro módulos fiscais; e criou uma aberração denominada de área rural consolidada. Com isso, o Estado brasileiro sinalizou que apoia o desmatamento, apesar de políticas setoriais de controle. Quando da aprovação dessa lei, foram feitos inúmeros alertas de que o desmatamento da Amazônia cresceria. E não era preciso ser cientista político ou ambiental para apontar para essa tendência.
Não por acaso, a JBS – maior produtora de carnes do Brasil e uma das maiores do mundo – foi a maior doadora de recursos para campanhas eleitorais em 2014, consolidando a maior bancada temática do Congresso Nacional. Com isso, ela conseguiu unir esquerdas e direitas, progressistas e conservadores, para aprovar o que quiser. Ela detém participação em mandatos desde Ronaldo Caiado (DEM) até Aldo Rebelo (PCdoB) – artífice dos maiores retrocessos na legislação ambiental brasileira, como no caso da revogação do Código Florestal e da aprovação da Lei da Política Nacional de Biossegurança (Lei nº 11.105/05) –, que aboliu o licenciamento ambiental para a produção de transgênicos.
Portanto, o aumento no desmatamento da Amazônia é resultado direto das políticas públicas fomentadas pelo governo federal, por governos estaduais e municipais, à revelia dos interesses da sociedade brasileira e dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil para o controle das emissões dos gases estufa.
O Ibama também alega que nos últimos anos a agenda ambiental não tem sido uma prioridade do governo federal. Quais são as evidências disso e a que atribui essa falta de prioridade na agenda ambiental?
O Brasil é um país bovino. A população de bois (cerca de 210 milhões) é superior à população humana (cerca de 204 milhões). O território ocupado por bois (cerca de 20%) é muito superior ao território ocupado pelas populações urbanas (cerca de 1%). O consumo de água pela sociedade (cerca de 10%) é infinitamente menor que a água consumida pelos processos agropecuários (cerca de 70%). E a bancada dos bois no Congresso Nacional é também muito maior do que a que defende os interesses da sociedade. Apenas com esses números já é possível demonstrar que as evidências estão à vista de quem quiser enxergar.
Abandono de políticas ambientais
Mas nas políticas públicas ficam também notórias essas evidências. A ex-presidente Dilma inovou e o presidente Temer copiou a fórmula perversa de desafetar áreas protegidas por medidas provisórias. A Constituição Federal determinou que essa possibilidade só poderia ocorrer por lei. É um escárnio jurídico que o STF não faz questão de corrigir. Quando se julgarem as ações de declaração de inconstitucionalidade para esta prática, as áreas protegidas suprimidas já estarão alteradas por hidrelétricas. Portanto, não só abandonaram a criação de unidades de conservação, como retroagem quanto às já existentes.
Produção de transgênicos
Outro exemplo, já citado aqui por mim, foi a abolição do licenciamento ambiental para a produção de organismos geneticamente modificados, os chamados transgênicos. Praticamente toda a produção de soja no Brasil já é transgênica e ocupa cerca de 5% do território brasileiro, cinco vezes mais do que as áreas urbanas. Atualmente, cerca de 70% da produção de milho é transgênica. E não para por aí... tem o algodão e outros produtos sendo aprovados e produzidos país afora sem qualquer controle sobre seus efeitos socioambientais.
Tentativa de abolir o licenciamento ambiental
No Congresso Nacional há diversos projetos de lei e de emenda à Constituição que pretendem abolir definitivamente a exigência de licenciamento ambiental e de elaboração de estudo de impacto ambiental (EIA) para uma infinitude de atividades, para cessar a criação de unidades de conservação, de terras indígenas e de territórios quilombolas, para liberar a mineração em parques nacionais, dentre outras iniciativas que contam com a colaboração do Poder Executivo.
Corrupção em órgãos ambientais
Por outro lado, as estruturas de gestão e controle ambiental vêm sofrendo cortes de recursos e de pessoal, como nas unidades de conservação – que perderam servidores terceirizados para o apoio administrativo, para a vigilância patrimonial, contratos de manutenção e abastecimento de veículos, recursos para diárias e passagens etc. Esses cortes comprometem as ações de campo, o que resulta no avanço das atividades ilegais, como o desmatamento.
Ainda no âmbito estrutural, foi cessada a realização de concursos. Desde 2009, o Ministério do Planejamento aprovou a criação de mil novos cargos de analista ambiental e administrativo, assim como de técnico ambiental e administrativo para o Ibama e o ICMBio. Vários desses cargos são resultado da transformação de cargos antigos de servidores que se aposentaram e que vêm se aposentando, eis que há um quadro antigo, oriundo ainda de órgãos preexistentes ao Ibama, que foi criado em 1989. Mesmo assim nenhum concurso se realizou desde 2009. Para agravar, ainda há o fato de que inúmeras nomeações de gestores dos órgãos ambientais ocorrem para atender aos interesses de políticos locais – o que alimenta a corrupção nos órgãos ambientais, como evidenciado ao longo do tempo em operações comandadas pela Polícia Federal.
Que tipo de política seria necessária para garantir o fim do desmatamento?
O Plano de Controle e Combate ao Desmatamento da Amazônia foi a melhor política implementada para reduzir o desmatamento ilegal da Amazônia. E a prova é de que ele conseguiu impor resultados significativos, eis que logrou êxito em estancar um crescimento linear que se estendia desde o início dos anos 90 e que atingiu o ápice exatamente em 2004, quando o plano foi lançado e os índices chegaram a 28 mil km². Como já apontei, a queda foi constante até 2012, com 4,5 mil km². O plano não envolve apenas ações de comando e controle, com a fiscalização em campo. Mas também diversas medidas econômicas e a formação de um quadro com as áreas embargadas para a produção de gado e monoculturas – responsabilizando as grandes redes de comércio desses produtos. Ou seja, há necessidade de fortalecimento institucional dos órgãos de controle, assim como de criação e implementação de instrumentos econômicos.
Não atingiremos o fim do desmatamento de forma global, mas é possível atingir índices razoáveis de controle do desmatamento ilegal. Mas a conjuntura política é mais forte no sentido contrário, com o fomento exatamente das atividades que se sustentam com o corte raso das nossas florestas.
Uma das medidas solicitadas pelo Ibama na carta é o reforço do orçamento para as atividades de fiscalização, que vêm sofrendo redução nos últimos anos. Qual é o orçamento atual destinado a essas atividades e qual seria o orçamento ideal para dar conta das demandas?
Especialmente desde 2013, o orçamento do Ibama vem sofrendo cortes e diminuições. Nesse ano, o orçamento aprovado para o Ibama foi de R$ 325 milhões, mas os cortes foram de quase R$ 40 milhões, finalizando com uma execução de R$ 285 milhões. No ano seguinte, a execução foi de R$ 278 milhões. Em 2015, caiu para R$ 271 milhões e no ano passado caiu mais ainda, chegando a R$ 242 milhões. Ou seja, em apenas três anos o Ibama perdeu R$ 83 milhões, excluídos os recursos relacionados ao pagamento dos servidores.
O orçamento ideal é uma equação variável entre a necessidade de implementação das ações de competência do Ibama e as possibilidades encontradas no quadro orçamentário da União, que efetivamente vem diminuindo. Segundo o documento denominado Avaliações de Desempenho Ambiental Brasil 2015, da Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico (OCDE), o orçamento total do Ministério do Meio Ambiente em 2014 foi de R$ 3,6 bilhões, o que representava 0,15% do orçamento geral da União. É um dos menores orçamentos entre os ministérios, perdendo, talvez, apenas para o Ministério da Cultura. Fazer cortes e contingenciamentos num orçamento tão baixo e inexpressivo terá também uma repercussão muito pequena no controle total de gastos da União. Mas isso geralmente não é levado em conta, o que dificulta a construção de um orçamento ideal.
Quais têm sido os principais impasses envolvendo o Ibama e outros órgãos por conta de licenciamentos e da agenda ambiental em geral?
A Operação Lava Jato já apurou os desvios de corrupção na construção de Belo Monte, na Transposição do Rio São Francisco, na construção de Angra III, na implementação de obras relacionadas à Petrobras – como o Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro – Comperj, no Rio de Janeiro. No sul do país, há alguns anos também se detectou fraude na construção da Hidrelétrica de Barra Grande. Todas essas obras tiveram incentivos de diversos órgãos governamentais, como o Ministério das Minas e Energia e o BNDES, dentre outros. Hoje é de conhecimento público que tudo foi feito de forma ilícita. O Ibama, o ICMBio, assim como a Fundação Nacional do Índio (Funai), o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e outros órgãos estaduais e municipais, foram atropelados para que esses empreendimentos fossem licenciados e autorizados, muitas vezes à revelia das obrigações socioambientais.
Esses são os principais impasses envolvendo o Ibama e outros órgãos que operam as agendas socioambientais. Eles são tratados como se fossem meros cartórios para a emissão de papéis legitimadores de um modelo perverso de desenvolvimento, que atende à fúria capitalista de ganhar dinheiro com o menor esforço e com baixo compromisso social e ambiental, associada à cultura da corrupção que impregna grande parte dos detentores de funções de comando governamental.
Quais foram as repercussões da carta manifesto? Como ela foi recebida pelas instâncias superiores?
Rogério Rocco - Numa sociedade movida por eventos espetacularizados, a repercussão da carta manifesto dos gestores do Ibama foi passageira. É como uma gota no oceano. Lamentavelmente cada um está mais preocupado com o imediato, com o seu dia a dia, olhando para o próprio umbigo. As tragédias ambientais como a que a Vale produziu em Mariana, como a que ocorreu na Região Serrana do Rio de Janeiro em 2011 e outras tantas, estão aumentando de intensidade. E isso é efeito da negligência do poder público e da indiferença da sociedade civil, que ignoram a cobiça e a ambição infinitas do capital.
No âmbito das instâncias ambientais superiores, a carta tem uma repercussão positiva, pois pode atuar como elemento de pressão junto ao governo para evitar maiores cortes orçamentários e estruturais nas áreas ambientais. Mas é um efeito pequeno, pontual e relativo.
Se a sociedade, que é um termômetro para o posicionamento dos dirigentes da República, não se posicionar a respeito, o manifesto em si se reduzirá a um esperneio corporativista que estaria voltado apenas para a manutenção de um status quo institucional, eis que foi elaborado e assinado exclusivamente por servidores públicos. Evidentemente que a intenção não é essa, pois que o manifesto denuncia uma situação concreta que aponta para um cenário futuro bastante perigoso.
O problema é que estamos nos acostumando a trocar a fechadura apenas depois que a porta está arrombada, a chorar o leite derramado, isto é, a agir apenas depois que as tragédias ceifam vidas humanas e diversidades biológicas da fauna e da flora. Aí, poderá ser tarde demais.