86% das mulheres brasileiras sofreram algum tipo de assédio em suas cidades, com atos indesejados, ameaçadores e agressivos praticados por homens com abuso verbal, físico, sexual ou emocional, conforme pesquisa da ActionAid.
A cada 4 minutos uma mulher dá entrada no SUS [Sistema Único de Saúde do Brasil] por ter sofrido violência física. A cada dia 13 mulheres são assassinadas no Brasil. Uma a cada 1 hora e 50min. As mulheres negras são as maiores vítimas.
Não se trata de homens anormais. São homens criados “para rir e se orgulhar de terem uma arma entre as pernas, uma arma nos olhos, na língua, nas mãos”, como diz a escritora Micheliny Verunschk. Para considerar as mulheres um objeto do seu desejo de sexo, de poder, de escárnio. É a “banalidade do mal” de que fala a filósofa Hannah Arendt.
Se não, vejamos.
– O deputado Jair Bolsonaro fala em alto e bom som, na Câmara Federal, que violentaria a deputada Maria do Rosário, “se ela merecesse”. Ao votar pelo impedimento da presidente, homenageia o maior torturador das mulheres presas políticas da ditadura. Mantém seu mandato, impune.
– Um duplo do ator porno conta, em cadeia nacional de televisão, como violentou uma mãe de santo, incentivado pelo riso do apresentador, e não apenas fica impune como é recebido pelo ministro da Educação do governo interino pós golpe.
– O médico Roger Abdelmassih violenta suas pacientes durante anos, é finalmente condenado a 278 anos de prisão por 48 crimes e, então, recebe o benefício de um habeas corpus pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, e foge livremente do país.
– Jovens calouras na faculdade de medicina da USP em São Paulo e Ribeirão Preto – para citar apenas as duas – são vítimas de agressões sexuais por estudantes veteranos. Os casos demoram para vir à tona, sob o argumento de que abalariam a reputação da universidade, segundo a autoridade académica.
– A quase totalidade, 98% dos suspeitos de abuso sexual no metro de São Paulo, em 2016, ficaram impunes.
– Polícias militares do Rio de Janeiro e um delegado da Polícia Federal postam fotos que expõem o rosto da adolescente carioca de 16 anos que sofreu violação por mais de 30 homens, chamando-a de “vadia”, junto a imagens que a comparam a animais. Está na rede pra quem tiver estômago pra ver.
– A campanha de desmoralização da presidente da República que fez parte do golpe espalha nas redes sociais montagem que simula violência sexual contra Dilma Rousseff.
Enquanto isso, tenta-se derrubar a lei 12.845/13, que garante às vítimas de violação atendimento hospitalar, policial e psicológico. Eduardo Cunha (PMDB/RJ) é autor do projeto de lei (PL) 5069/2013, “complementado” por Evandro Gussi (PV/SP), que altera a lei de atendimento do aborto legal no SUS à mulher violada: para que ela prove que “falou a verdade” sobre a violação terá de passar por exame de corpo de delito e fazer um boletim de ocorrência. Vários outros PLs que retiram direitos humanos das mulheres estão em tramitação na Câmara. E o debate de género e combate ao machismo é eliminado das diretrizes do Plano de Educação de vários estados e municípios.
“O estupro [violação] coletivo a uma menina de 16 anos veiculado por seus agressores é a triste e real metáfora para o país tomado de assalto pelas forças retrógradas, misóginas e canalhas representadas por Temer, Bolsonaro, Feliciano, Malafaia, Alexandre Frota e sua súcia”, reafirma Micheliny Verunschk – numa das inúmeras manifestações das mulheres em repúdio à cultura da violação pelo caso da adolescente carioca. Forças que vêm fermentando há décadas no alto de ricos edifícios e nos subterrâneos dos morros, nos presídios infetos e nas plantações do agronegócio em conluio com governantes, deputados, delegados, juristas, velha media corporativa.
Memória
1. Corria a noite de 14 de julho de 1958 em Copacabana, Rio de Janeiro. Aída Jacob Curi tinha 18 anos quando foi levada à força por Ronaldo Castro, 19 anos, e Cássio Murilo, de 17, ao topo do Edifício Rio Nobre, na Avenida Atlântica, e foi violada por eles, ajudados pelo porteiro Antônio Sousa. Revela a perícia que ela foi torturada e lutou contra os agressores por ao menos trinta minutos, até desmaiar. Morreu ao ser atirada do décimo segundo andar, na tentativa de simular suicídio. O corpo de Aída apresentava escoriações e equimoses. No peito, sinais de profundas unhadas. Arranhões nas coxas, ventre, pescoço, abdómen. Rutura interna do lábio superior por soco. Tentativas de estrangulamento. Houve três julgamentos. Ao final Ronaldo Castro foi inocentado da acusação de homicídio e condenado apenas por atentado violento ao pudor e tentativa de violação. Foi solto depois de cumprir oito anos e nove meses. Mais tarde se tornaria empresário em seu estado, o Espírito Santo. O porteiro, Antônio Sousa, também inocentado da acusação de homicídio, desapareceu. Já Cássio Murilo, menor de idade na época do crime, foi encaminhado ao Sistema de Assistência ao Menor (SAM), de onde saiu direto para prestar o serviço militar. Os violadores e assassinos viraram celebridades na época. Tudo que usavam virava moda, dos óculos à jaqueta. O nome de Aída é citado por Rita Lee em “Todas as Mulheres do Mundo”, e por Ângela Rô Rô na canção “Mônica“. (As Mina na História)
2. Araceli Cabrera Crespo tinha 8 anos quando, em 18 de maio de 1973, foi raptada na saída da escola, drogada, violada e assassinada por dois rapazes de famílias influentes do Espírito Santo: Paulo Constanteen Helal e Dante Michelini Filho, o Dantinho, acobertados pelo pai deste, Dante de Brito Michelini. Dias depois, seu corpo foi encontrado carbonizado. Ao contrário da família de Araceli, filha de mãe boliviana e pai espanhol, moradores da periferia de Vitória, os Michelini eram grandes proprietários de terra no estado, e os Helal, ricos comerciantes nos ramos de hotelaria e imobiliário. Eles contrataram doze dos “melhores” advogados de Vitória, que destruíram provas e levantaram suspeitas sobre a mãe da menina. Apesar disso, em 1980 o juiz Hilton Silly sentenciou: 18 anos de reclusão e multa de 18 mil cruzeiros para Paulo Helal e Dantinho; e 5 anos para Dante Michelini. Os acusados recorreram. A sentença foi anulada e, depois de segurar o processo durante 5 anos, o juiz Paulo Copolilo absolveu os acusados por “falta de provas”. O caso, de enorme repercussão, foi tema do livro reportagem Araceli, Meu Amor, de José Louzeiro, segundo o qual houve depois 14 mortes de possíveis testemunhas e pessoas empenhadas em desvendar o crime. O livro foi censurado pela ditadura. A data do desaparecimento de Araceli, 18 de maio, marca o Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes.
3. Conta a jornalista Laura Capriglione, em “As duas faces da justiça”, na Ponte Jornalismo: “O fazendeiro G.B., de 80 anos, foi preso em fevereiro de 2011 quando mantinha relações sexuais com X, uma menina de 13 anos, dependente de álcool e drogas, em uma camionete estacionada no meio de um canavial. Outra menina, Y, de 14 anos, já havia masturbado o homem e também se encontrava dentro do veículo. Pelo serviço, X recebeu 50 reais. Y ficou com 20 reais. A ordem de prisão em flagrante foi dada pela Polícia Militar. Como X era, na ocasião dos factos, menor de 14 anos, a Justiça de Catanduva (384 km de São Paulo) condenou G.B. a oito anos de prisão em regime fechado por violação de vulnerável. Mas o fazendeiro ficou apenas 40 dias detido. Recorreu da condenação e o Tribunal de Justiça de São Paulo reverteu a condenação, que virou absolvição. Isso, apesar de o artigo 217-A, introduzido no Código Penal pela Lei nº 12.015, de 2009, ser claríssimo ao definir o chamado “estupro de vulnerável” como a conjunção carnal ou a prática de outro ato libidinoso com menor de 14 anos. Pena: reclusão, de 8 a 15 anos. (…) Leva a assinatura do relator, desembargador Airton Vieira, o acórdão que absolveu o fazendeiro. Airton Vieira, só para lembrar, foi um dos assessores do ministro Cezar Peluso, do Supremo Tribunal Federal (STF), no caso do “mensalão”. O julgamento do fazendeiro pedófilo teve a participação também dos desembargadores Nuevo Campos e Hermann Herschander. A Ponte obteve a íntegra do acórdão de absolvição. Como o caso correu sob segredo de Justiça, para preservar as meninas, não será mencionado nenhum apelido ou nome ou endereço que eventualmente permita identificá-las.”
“É bem verdade que se trata de menor de 14 anos, mas entendo ser crível e verossímil, diante do que aconteceu, que o réu tenha se enganado quanto à idade real da vítima X, Afinal, partindo-se do pressuposto de que, no presente caso, a vítima X, à época dos fatos, contava com parcos 13 anos, 11 meses e 25 dias de idade, e, levando-se em consideração que era pessoa que se dedicava ao uso de drogas e ingestão excessiva de bebidas alcoólicas, [e que] já manteve relações sexuais com diversos homens, o que significa não ser ela nenhuma jejuna na prática sexual, é que não se pode presumir que o réu tinha conhecimento real da idade da vítima e que tinha o dolo de manter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos”.
4. Para entender a essência da “cultura do estupro”, expressão que tomou de assalto as redes sociais nos últimos dias, é fundamental conhecer a história de Roger Abdelmassih, diz o jornalista Rodrigo Haidar no Justificando. “O arcabouço de proteção erguido em torno do médico, a falta de fiscalização e de ação do Cremesp ao engavetar todas as acusações contra ele e o xadrez da investigação para conseguir provas do cometimento de crimes que, em regra, se resumem à palavra da vítima contra a do acusado, expõem a cruel vulnerabilidade imposta às vítimas e o quanto são precárias as respostas que a sociedade oferece ao problema. Desde as primeiras queixas feitas ao Cremesp, ainda no início da década de 1990, até ser condenado pela juíza Kenarik Boujikian Felippe a 278 anos de prisão por 48 crimes de variados graus, em novembro de 2010, o médico contou com a conivência de um leque de pessoas e instituições só explicável pela cultura do silêncio em relação aos delitos sexuais, por uma espécie de dúvida permanente que paira sobre a palavra das vítimas.”
História
A cultura da mulher como objeto do homem vem de séculos, e no Brasil é herdeira direta do sistema escravocrata – o que faz da mulher negra a sua principal vítima. O procurador de justiça aposentado Roberto Tardelli fala sobre isso no artigo “A cultura do estupro vem de séculos e precisa ser combatida”, no Justificando. “Câmara Cascudo, nosso maior folclorista, creio tenha sido ele, escreveu que a expressão “jogar a negra”, que utilizamos no jogo, por exemplo, tem uma origem perversa: vem dos tempos da escravidão, em que os senhores da fazenda, que ganhassem a terceira partida no baralho, tinham direito à 'negra', isto é, de manter relações sexuais com uma escrava que escolhesse. Em outras palavras, estuprá-la.”
Olhar para nossa cultura de olhos bem abertos é missão inadiável da parcela progressista da sociedade brasileira. Desnaturalizar a desigualdade de género e o lugar subalterno reservado às mulheres, em particular às mulheres negras e às mulheres trans, combater o estigma do feminino omnipresente nos media e na publicidade, nos tribunais, no parlamento, na universidade, nos escritórios, nas redações, nos consultórios, nos transportes, nas ruas, nas casas, nas camas. Na mente e no coração dos muitos homens e algumas mulheres.
A propósito, pela primeira vez vi um número significativo de homens levantar a voz contra a cultura do estupro, que lhes confere tantos privilégios e que eles têm tanta dificuldade de reconhecer. Parece claro, finalmente, que essa é a cultura dos homens que tomaram o poder por um golpe jurídico, parlamentar e mediático, violentando a democracia. Brancos, ricos, heterossexuais e corruptos.
Artigo de Inês Castilho, publicado em outraspalavras.net, revisto para português de Portugal por Carlos Santos