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Não é uma análise do projeto de lei. Na verdade, pretende-se apresentar uma breve referência ao episódio que ficou conhecido como “la noche de los lápices” ou “a noite dos lápis”.
Trata-se de uma série de sequestros promovidos por militares entre a noite de 16 e a madrugada de 17 de setembro de 1976, em La Plata, na Argentina, que tinha por objetivo, por meio da tortura, calar a voz questionadora e genuína da juventude estudantil secundarista.
O discurso oficial que surgiu em defesa dos militares naqueles dias em muito se assemelha com os argumentos atuais dos defensores do projeto “Escola Sem Partido” aqui no Brasil: “acabar com a doutrinação marxista nas escolas”, “evitar a subversão entre os estudantes” e “pôr fim ao terrorismo em defesa da família”.
Como ressalta o historiador Felipe Pigna sobre a "noche de los lápices", pretendia-se, na realidade, com a atuação das forças armadas, “terminar com o alto nível de participação política dos jovens nos centros estudantis e nas associações políticas” [1].
Relacionando esse fato com o nosso contexto atual, não é de estranhar que a proposta “Escola Sem Partido” tenha ganhado força e adeptos após uma série interminável de ocupações promovidas pelos secundaristas em todo Brasil nos últimos meses.
A força do movimento estudantil, fraturado pela ditadura, aos poucos vem se renovando. Organizações integradas pela juventude trabalhadora, secundaristas e universitários, a despeito das dificuldades objetivas, ampliam-se cada vez mais em países de toda a Região, como Chile, Paraguai e Brasil.
Resta-nos, contudo, saber se por aqui os lápis seguirão escrevendo sua história com a devida crítica e autonomia ou se serão destruídos, como querem os defensores do projeto “Escola Sem Partido”.
A referência à “noite dos lápis” serve-nos para demonstrar que um projeto de lei como este da “Escola Sem Partido” representa, pelo menos, 40 anos de retrocesso.
São novas formas de atuação para velhos argumentos e projetos. A fantástica magia conquistada pela democracia burguesa é a destreza, o cuidado e a exatidão com os quais coloca em prática programas que de tão brutais antes exigiam, para sua efetividade, a mobilização de um forte aparato repressivo como a intervenção das forças armadas, mas que hoje realizam-se por meio de uma simples aprovação parlamentar.
Para ilustrar com mais detalhes o que foi La Noche de los Lápices, traduzimos a entrevista concedida pela estudante sequestrada naquela noite de 1976, Emilce Moler, concedida ao jornal Página 12 [2].
Emilce Moler tem 39 anos e vive em Mar del Plata desde que os militares obrigaram-na a deixar La Plata. Ali foi sequestrada em 17 de setembro de 1976 em meio ao episódio que ficou conhecido como La Noche de losLápices. Sobreviveu para relatar o que passou e não arrepender-se do seu passado.
Emilce Moler foi sequestrada na madrugada de 17 de setembro de 1976. Tinha 17 anos e militava na União de Estudantes Secundaristas (UES), associação estudantil de tendência peronista. Ela, Gustavo Calotti – atualmente radicado na França – e outra menina que vive em La Plata são, junto com Pablo Díaz, os sobreviventes da chamada Noche de los Lápices. Emilce tem 39 anos, está casada, é mãe de três filhos e vive em Mar del Plata desde que os militares obrigaram-na a deixar La Plata. “Tínhamos um projeto político”, diz Emilce para esclarecer que os desaparecimentos dos secundaristas de La Plata não ocorreram exclusivamente em razão da luta pelo bilhete de transporte estudantil. Reivindica sua militância e afirma que “a briga por uma sociedade mais justa na qual todos tenham dignidade e trabalho continua absolutamente vigente. E se continuar pedindo justiça é um idealismo, permaneço sendo idealista”.
Por que seu nome não está associado com La Noche de losLápices?
Não foi algo proposital. Fui cuidadosa porque quando a coisa se torna pública é muito difícil de se aguentar ao longo do tempo. Sabia que era necessário ter outros objetivos na vida, mas também foram histórias de desencontros. Falei sobre o tema desde o primeiro momento, mas não estar em La Plata ou Buenos Aires influenciou muitíssimo. No desenrolar destes anos, isso foi se modificando.
Como era sua vida antes do sequestro?
Estava no quinto ano de Belas Artes. Era muito alegre, cheia de vida, com muitos ideais. Na vida rotineira estudava desenho, me dedicava à gravura e me preocupava saber qual curso seguiria.
Você cursou algo relacionado com Arte?
Não, fui para a matemática. A história me modificou muito. Saí aos 19 anos da prisão de Devoto com liberdade assistida e cursei o quinto ano na modalidade livre. Sentia-me bastante velha, queria ter uma independência econômica e estudar um curso de artes significava muita dependência. Além disso, tinha medo, imaginava que poderiam aumentar a vigilância sobre mim caso estudasse artes. Procurei algo que não tivesse nada a ver com a realidade é escolhi matemática.
Quando pôde conectar-se outra vez com a realidade?
Fui dando os passos que deu o país. Em 1982 estava nos últimos anos da faculdade e já estava participando dos incipientes centros de estudantes. Tive o isolamento necessário para proteção, apenas isso. Estive submersa em toda a problemática relativa às Malvinas e lutando pela democracia.
O que você se lembra da noite do sequestro?
Desgraçadamente tudo. Foi entre as 3 e 4 da manhã de 17 de setembro. Chegou um grupo grande de homens fortemente armados em minha casa e renderam meus pais com armas de alto calibre. Procuravam por uma estudante de Bellas Artes. Quando apareci, muito pequena, aparentando ter menos de 17 anos, não quiseram me levar. Estavam prontos para levar a minha irmã mais velha, finalmente, como não havia espaço no carro, deixaram-na. Era um plano deliberado, mas, ao mesmo tempo, havia uma parcela de azar naquilo.
O que aconteceu depois?
Fui encapuzada, atada, meteram-me no carro e me levaram a um lugar que, muito tempo depois, descobri que era o centro clandestino de Arana. Essa lembrança é uma das mais dolorosas que tenho porque durante toda a semana fui torturada e nos momentos em que não me torturavam, escutava como torturavam os demais. Ali, encontrei-me com Gustavo Calotti. Também pude reconhecer os gritos de dor de Horacio Ungaro e compartilhei a cela com Claudia Falcone e María Clara Ciochini, além de outras pessoas. O que posso contar desses momentos é o horror, a situação limite, a degradação como ser humano, como mulher. É indescritível. Depois de uma semana no Arena, me transferiram. Os jovens, que hoje estão desaparecidos, foram levados para outro lugar. Nós, que sobrevivemos, continuamos.
Para onde levaram você?
Para o Grupo de Investigações de Quilmes. Alí não fui torturada fisicamente, mas continuei vendada, amarrada e mantida como desaparecida. Depois, fui para a 3ª Delegacia de Valetín Alsina, em Lanús, onde retiraram minhas vendas e, finalmente, fui desatada. Porém, ainda permanecia ilegal. Em janeiro de 1977, fui legalizada e transferida para a prisão de Devoto, ainda menor de idade. No Arana era como não ter consciência, não sabia o que passava no minuto seguinte em minha vida. Mas quando trancavam as celas era como se eu fosse morrer. Até que recebi as primeiras visitas. Como sempre, resgato a solidariedade dos companheiros. Passei aproximadamente um ano e meio em Devoto até que me deram a liberdade assistida e me deixaram ir embora de La Plata, devia ser muito perigosa. Com minha família, decidimos vir para Mar del Plata.
Voltaria a viver em La Plata?
Seria difícil reconstruir minha vida em La Plata. É uma cidade que me traz muita dor porque em cada rua vejo as imagens dos companheiros que hoje já não estão, que desgraçadamente são muito mais que apenas esses seis jovens que estão desaparecidos, e são ausências que doem muito. Demorei vinte anos para voltar a minha escola.
Seu pai era inspetor de polícia, como conviveu com o sequestro?
Foi duríssimo. Na verdade, não entendia muito bem o que estava passando porque já estava aposentado, todavia, tinha mais noção que minha mãe a respeito do que poderia ocorrer comigo. Nunca foi um policial demasiado convencido, assim que desde o aspecto ideológico não foi tão terrível, mas, como pai, sentiu que não poderia fazer nada, que seu cargo não servia de nada, que depois de uma vida íntegra de trabalho, tinha que pedir pela vida de sua filha sem que alguém o escutasse. Colocou-se no lugar de pai, não de policial, e lutou comigo..., me compreendeu e me apoiou igual que minha mãe, e penso que essa foi uma das chaves para minha salvação.
O que você conta para seus filhos sobre a ditadura?
Tratamos do tema de maneira natural. Além disso, a maioria de nossos amigos viveram esses anos e também o abordam. O mais importante é que não me vejam derrotada, abatida, isso seria o principal triunfo dos militares. Veem-me íntegra, com vontade de seguir falando, lutando e sem medo de participar. Isso é o que trata de transmitir para eles.
O que foi que mais se modificou em você nesses anos?
Não mudei muito, exceto pelos anos e as rugas. Nunca me arrependi daquilo que pensava. Brigar por uma sociedade mais justa, que todos tenham dignidade e trabalho, me parece que continua sendo absolutamente vigente. E se continuar pedindo justiça neste país é um idealismo, então, continuo sendo idealista. Mudei na paixão que dispensava para coisas como estas e me conscientizei de que não vamos ser protagonistas de nenhuma mudança importante. Mas, tudo bem, seremos uma boa retaguarda.
O que você achou do filme La Noche de los Lápices?
Mostra o que significou o desespero dos estudantes de uma maneira bastante fidedigna. É preciso ressaltar que o filme serviu para que aqueles fatos fossem conhecidos. Esse é um mérito indiscutível, mas, é preciso recriá-los com verdades históricas. Acredito que com La Noche de los Lápices foi possível fazer um modelo daquilo que ocorreu em nosso país, que há que recriá-lo com o que foi deixado de lado. Aquilo que eu e outros podemos transmitir não entra em contradição com o que se sabe senão que mostra uma dimensão mais profunda do horror.
La Noche de los Lápices está associada a uma luta pelo bilhete de transporte estudantil secundarista, mas você fala de uma luta política mais ampla.
Não acredito que fui presa e torturada por lutar pelo bilhete de transporte estudantil, durante as passeatas eu estava na última fila. Essa luta foi no ano de 1975 e, além de tudo, não sequestraram os milhares de estudantes que participaram dela. Detiveram apenas um grupo que militava numa organização política. Todos jovens que estão desaparecidos pertenciam à UES, ou seja, havia um projeto político, com pouca idade, mas, finalmente, era um projeto político.
*João Guilherme é estudante de Direito da PUC-SP e coordenador do Grupo de Pesquisa Direito e Marxismo. Catalina Britez é bacharel em Ciência Política e Sociologia pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana.
Notas:
[1]“Lápices que siguen escribiendo”. Cf.: http://www.elhistoriador.com.ar/articulos/dictadura/lapices_que_siguen_escribiendo.php
[2] Trata-se de entrevista concedida em 1998. Cf.:http://www.pagina12.com.ar/1998/98-09/98-09-15/pag02.htm