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Diário Liberdade
Sexta, 09 Dezembro 2016 18:00 Última modificação em Domingo, 18 Dezembro 2016 18:08

A derrota da URSS e o revisionismo

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/ Batalha de ideias / Fonte: O Diário

[José Paulo Gascão] Permanece da maior actualidade a reflexão sobre a estratégia e a táctica dos partidos comunistas, no poder e fora dele. Sobre a sua fidelidade ao marxismo-leninismo, sobre as suas formas de funcionamento interno, sobre o papel e a responsabilidade das suas direcções e dos seus militantes. Sobre a sua capacidade de resistir à multiforme e incessante ofensiva do inimigo de classe. Se devidamente analisada, a já secular história do movimento comunista tem muito a ensinar nos dias de hoje.

Formada durante a II Guerra Mundial, a CIA sucedeu à Agência de Serviços Estratégicos (OSS na sigla em inglês) com o objetivo confessado de coordenar as atividades de espionagem dentro das Forças Armadas dos Estados Unidos.

Porém, mal terminou a guerra, a recém-formada CIA começou «a partir de 1947, a construir um “consórcio” cuja tarefa era vacinar o mundo contra o contágio do comunismo…». Mas os primeiros resultados palpáveis só vieram, a partir de 1950, com a preparação para «…o Congresso pela Liberdade Cultural [que] teve escritórios em 35 países, contou com dezenas de pessoas contratadas, publicou artigos em mais de vinte revistas de prestígio, organizou exposições de arte, contava com o seu próprio serviço de notícias e de artigos de opinião, organizou conferências internacionais ao mais alto nível e recompensou músicos e outros artistas com prémios e atuações públicas».

O objetivo deste enorme investimento foi «… afastar a intelectualidade da Europa ocidental do seu prolongado fascínio pelo marxismo e o comunismo, em benefício de uma forma de ver o mundo mais de acordo com o “conceito americano”» [1].

Poucos anos antes da derrota da URSS, politica e historicamente consumada em agosto de 1991, teve início um período de eufórica histeria reacionária, sem paralelo nos anteriores 70 anos, cujo objetivo era a desmoralização e desmobilização de militantes e partidos comunistas que mantinham com firmeza os princípios de marxismo-leninismo. O sucesso da campanha está à vista, particularmente na Europa capitalista, onde os três maiores partidos – italiano, francês e espanhol – definhavam em movimento acelerado com a escolha do chamado eurocomunismo, que as direções daqueles partidos tinham imposto aos seus militantes, em nome do aperfeiçoamento do caminho para a construção do socialismo, que já apresentavam o comunismo como «horizonte longínquo».

A vitória do capital imperialista sobre a URSS foi também uma vitória económica que teve por base uma desenfreada corrida armamentista, e Jean Salém nota muito justamente que na alturaz «…ninguém ou quase ninguém referiu que um dos objetivos explícitos da “Iniciativa de Defesa Estratégica”, lançada em 1983 pela equipa de Reagan, era “pôr de joelhos a potência soviética”, abalá-la e depois arruiná-la por meio de um lançamento desenfreado da corrida aos armamentos». 

Mas foi principalmente uma vitória ideológica devido ao revisionismo oportunista que se manifestou em crescendo desde meados da década de 50 do século passado, na URSS e nos países europeus que se reclamavam da construção do socialismo, mas também nos partidos comunistas dos países capitalistas, com particular gravidade nos três maiores partidos comunistas da Europa capitalista – italiano (desapareceu), francês e espanhol, hoje reduzidos a inexpressivas organizações.

Se o combate à URSS foi uma preocupação permanente do capital até à consumação da derrota da União Soviética e dos restantes países que se reclamavam da construção do socialismo, é necessário sublinhar que sem os erros, o oportunismo e a revisão de teses centrais do pensamento marxista-leninista, esse objetivo do imperialismo muito dificilmente teria sido atingido.

Foi uma derrota provocada pela ação convergente do imperialismo, dos revisionistas na URSS e nos restantes países que se reclamavam da construção do socialismo e pelas direções de muitos partidos comunistas dos países capitalistas.

Recorrendo a uma poderosíssima campanha de propaganda nos media já globalizados, domesticados e rendidos à onda neoliberal, o imperialismo difundiu com sucesso a ideia da supremacia do capitalismo sobre o socialismo, que a derrota da URSS e do movimento operário e sindical de classe era um facto previsível, ao mesmo tempo que negava o papel de vanguarda da classe operária e da luta de classes no avanço da História, procurando inculcar a ideia da impossibilidade a reversão do caminho.

Esta intensa campanha de propaganda nos media foi acompanhada da edição de obras que reafirmavam teoricamente a supremacia do capitalismo sobre o marxismo-leninismo, de que O Fim da História e o Último Homem, de Francis Fukuyama, funcionário do Departamento de Estado dos EUA, foi apenas a mais propalada. Datar o marxismo-leninismo, dizê-lo ultrapassado, fora do tempo, um tempo que dizem ser de liberdade e empreendedorismo como nunca o sistema capitalista tinha proporcionado.

Foi o início de uma cruzada mundial de «criminalização do ideal comunista, que induziu uma autêntica colonização da consciência histórica dos próprios comunistas» [Salem, Lisboa 2006], que poucos na altura se atreveram contrariar e da qual, apenas com a intensificação da crise estrutural do sistema do capital se começou agora, lentamente, a sair.

O longo caminho para a derrota da URSS

Antes da I Guerra Mundial, a Rússia era um imenso território, atrasado e rural, com cerca de 175 milhões de habitantes, predominantemente rurais, com cerca de 15 milhões de trabalhadores, dos quais 4 milhões eram operários industriais e dos caminhos-de-ferro, e cerca de 56% dos trabalhadores industriais estavam concentrados em indústrias com mais de 500 operários. Foi nesta Rússia atrasada, faminta e devastada por uma longa guerra que o POSDR (b) dirigiu a primeira revolução proletária vitoriosa da História.

Quem ler, mesmo que apressadamente, as atas do Comité Central do Partido Operário Social-Democrata Russo (b) saído do VI Congresso entre agosto de 1917 e 24 de fevereiro de 1918 compreenderá porque só podia ser aquele partido, e não um qualquer outro, a dirigir a primeira revolução proletária vitoriosa da História. E compreende também, ao ler as frontais e ardentes discussões no Comité Central, por que razão não teve Lenine nenhum cargo individual, nem no partido nem no governo. Foi membro de coletivos partidários e comissário do Povo, nunca foi presidente, coordenador ou outro qualquer cargo individual. Impôs-se sempre pela força das suas ideias e nunca impôs a suas ideias pela força, razões que lhe granjearam o ascendente natural que ganhou interpares.

O prematuro desaparecimento de Lenine, em 21 de janeiro de 1924, foi uma dura perda para a Rússia, para o partido e para o movimento revolucionário mundial.

Apesar da falta de Lenine, dos desvios, erros e crimes que se verificaram nos 21 anos que medeiam entre o XIII Congresso (23-31 de maio de 1924) e o fim da Segunda Guerra Mundial (1945), de o seu imenso território ter sido arrasado, dos mais de 20 milhões de mortos, a URSS surge, sob a direção do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), como a segunda potência mundial e o país que maior e decisivo contributo deu para a vitória aliada sobre o nazi-fascismo.

Se tivermos em conta que no XVIII Congresso (março de 1939), o PCUS tinha 1.588.000 membros e 888.814 candidatos a membros do partido e que durante a II Guerra Mundial o PCUS perdeu 3 milhões de militantes, mas que no XIX Congresso (5 a 14 de outubro de 1952) era já de 6.013.259 o número de militantes e 868.886 os candidatos a membros do Partido, ficamos com uma ideia do contributo do PCUS para a vitória na II Guerra Mundial, mas também de como o PCUS se debilitou ideologicamente, como ficou mais exposto e vulnerável a ataques externos e internos.

O XX Congresso da Partido Comunista da URSS (PCUS), que tão profundas e negativas consequências teve no PCUS e no movimento comunista internacional, não foi o alfa e o ómega de uma séria e profunda autocrítica, por parte dos antigos companheiros de Estaline (1878-1953) na direção do PCUS e da URSS.

Embora seja apresentado como o Congresso da desestalinização, não foi da reposição da democracia interna do partido, nem da correta reposição do centralismo democrático ou do reforço do caminho para a Associação Livre de Trabalhadores que o XX Congresso tratou. E não tratou de nenhum destes temas apesar de o PCUS ter estado 5 anos sem reunir o Comité Central e 13 anos e meio sem reunir o Congresso (21 de março de 1939 a 5 de outubro de 1952), de o sistema do capital permanecer na sociedade soviética, embora sem apropriação individual, e das principais responsabilidades da direção das empresas continuar entregue a delegados do Estado ou do Partido.

O que verdadeiramente caraterizou o XX Congresso foi a aprovação da utopia que o imperialismo aceitaria a «coexistência pacífica» com os países socialistas. Foi a revisão da conceção marxista-leninista de Estado (uma «questão central de cada revolução» como nós portugueses bem sabemos) e a URSS deixou de ser um Estado de operários e camponeses, para passar a ser um «Estado de todo o povo», o que pressupunha a inexistência de classes, o que era evidente não ser verdade.

O XX Congresso exerceu, naturalmente, uma nefasta influência no movimento comunista internacional e, saber o que o inimigo pensa é, pelo caráter antagónico das posições, uma forma correta de iluminar a armadilha que se esconde numa cuidada e vistosa apresentação.

E à luz deste ensinamento temos que concluir que, seguramente, não foi por acaso que em 11 de julho de 1956, 5 meses após o XX Congresso do PCUS, o secretário de Estado de Eisenhower, John Foster Dulles declarou que «… as forças da liberdade que agora atuam atrás da «cortina de ferro», são irresistíveis e podem modificar a cena internacional até 1965. A campanha anti-Estaline e o seu programa liberalizador provocaram uma reação em cadeia, que a longo prazo não será possível parar» [2].

O revisionismo crescente

É inegável a profunda crise porque passa o movimento comunista internacional em que, em nome da independência do partido e da especificidade da sua situação nacional, uma boa parte dos partidos comunistas defende ser da competência e autonomia de cada partido definir a orientação adequada para o seu país. O problema, como é evidente, não está na aceitação deste princípio que, como qualquer evidência, não carece de explicação.

O problema é quando essa independência e autonomia são usadas para contrariar e abandonar princípios fundamentais do marxismo-leninismo e da independência de classe em relação à ideologia burguesa.

A questão não é nova e, se procurarmos bem, ela vem desde muito antes do XX Congresso do PCUS.

Na verdade, pouco depois da vitória das forças aliadas regulares e da resistência sobre o nazi-fascismo, em 18 de novembro de 1946, em entrevista com o jornal The Times, o Secretário-geral do PCF, e Vice-presidente do Conselho de Ministros, Maurice Thorez, dizia:

«O progresso da democracia no mundo – apesar de raras exceções, que confirmam a regra – permite divisar outros caminhos na marcha para o socialismo, além do seguido pelos comunistas russos. (…) É possível tomar «outros caminhos, além do seguido pelos comunistas russos». (…) É ao povo francês que cabe encontrar «a sua via para mais democracia, progresso e justiça social». E mais à frente acrescentava que «o Partido operário francês que nos propomos criar com a fusão dos partidos comunista e socialista será o guia da nossa democracia nova e popular» [3].

Já com Waldeck Rochet como Secretário-geral (1964-1972), o Comité Central do Partido Comunista Francês, em reunião realizada nos dias 5 e 6 de Dezembro de 1968 aprova o documento «Por uma democracia avançada por uma França Socialista» que substitui programaticamente o Programa do Partido aprovado anteriormente.

Foi a primeira e bem estruturada peça teórica de um longo processo reformista, cujo objetivo era a chegada do partido ao governo através das estruturas da democracia burguesa sem destruir o aparelho de Estado que servia o capital monopolista. Desde logo conhecido como o «Manifesto Champigny», nele se defende «a substituição do poder gaulista dos monopólios por uma democracia política e económica avançada, que abra a via do socialismo». Tudo isto sem uma única palavra para a necessidade de destruir o Estado burguês e criar um novo Estado.

Se no «Manifesto de Champigny», em 1968, se lançavam em França algumas das bases teóricas do que mais tarde veio a chamar-se eurocomunismo, em Itália, onde as votações no PCI chegaram a ultrapassar os 30% depois da formulação da «democracia progressiva» no pós-guerra, sucedeu o período de «aggiornamento» para se passar à tentativa de um «compromisso histórico» de gestão do capitalismo com a Democracia Cristã, num quadro de imutabilidade do aparelho de Estado dominado pelo grande capital monopolista, onde a máfia detinha uma posição não desdenhável. Logo no seu início ficou claro o que se pretendia com esta deriva ideológica:

«Democracia progressiva significa profunda alteração das relações sociais, ou seja, das relações de produção. É o princípio da propriedade que está em causa; não se colocam hoje questões de classe, não se fala hoje de alianças de classe; hoje fala-se da fraternidade do povo, luta-se por todo o povo; fora com a clique capitalista, fora com a clique monopolista e da grande indústria. É o povo quem deve estar no comando, são o camponês e o pequeno proprietário de terra quem deve receber os lucros do seu trabalho, são o proletário e o pequeno proprietário industrial quem deve tomar o lugar do monopolista».

O «Memorando de Yalta», escrito por Palmiro Togliatti em 1964: «… uma reflexão mais profunda sobre o tema da possibilidade de uma via pacífica de acesso ao socialismo leva-nos a precisar o que é que nós entendemos por democracia num Estado burguês, como se podem alargar os limites da liberdade e das instituições democráticas e quais são as formas mais eficazes de participação das massas operárias e trabalhadoras na vida económica e política. Surge assim a questão da possibilidade de conquistar posições de poder, por parte das classes trabalhadoras, no âmbito de um Estado que não mudou a sua natureza de Estado burguês e, portanto, a de se é possível a luta por uma progressiva transformação, a partir do interior dessa natureza»

Nas suas férias em Yalta onde morreu em agosto de 1964, Togliatti escrevia o texto inacabado a que deram o título «Memorando sobre questões do movimento operário internacional e a sua unidade», um documento carregado de taticismos e abandono de princípios fundamentais do marxismo-leninismo ou, como nele diz, «… uma reflexão mais profunda sobre o tema da possibilidade de uma via pacífica de acesso ao socialismo…»

Dele respigamos esta citação, um repositório condensado de abandono de princípios fundamentais do marxismo-leninismo:

«Na generalidade, para a elaboração da nossa política, nós partimos e sempre estivemos convencidos que se deve partir das posições do XX Congresso [do PCUS]. Também estas posições, no entanto, precisam hoje de ser estudadas e desenvolvidas. Por exemplo, uma reflexão mais profunda sobre a possibilidade de uma via pacífica de passagem ao socialismo leva-nos a esclarecer o que entendemos por democracia num Estado burguês, como se podem alargar os limites da liberdade e das instituições democráticas, e quais são as formas mais eficazes de participação das massas operárias e trabalhadores na vida económica e política».

«Surge assim a questão da possibilidade de conquista de posições de poder pelas classes trabalhadoras no âmbito de um Estado que não mudou a sua natureza de Estado burguês e assim, a possibilidade de lutar por uma transformação progressiva dessa natureza a partir de dentro. Em países onde o movimento comunista se tornou forte como o nosso (e a França), esta é a questão de fundo que hoje surge na luta política. Isso comporta, naturalmente, uma radicalização dessa luta e disso dependem as futuras perspetivas».

A citação é longa, mas necessária pela clareza colocada na renúncia a princípios fundamentais do marxismo-leninismo.

Em Espanha, à semelhança da «via italiana para o socialismo», Santiago Carrillo elabora a «política de reconciliação nacional» que, mais tarde, conduziu à assinatura pelo PCE do vergonhoso «Pacto de Moncloa», o reconhecimento pelo PCE da vontade suserana de Franco de restaurar a monarquia e escolher o rei.

***

Há quatro décadas eram os três maiores partidos da Europa capitalista, o PCE que nos últimos anos de clandestinidade dizia vender, clandestinamente, 200.000 exemplares do Mundo Obrero, hoje dilui-se numa Esquerda Unida cada vez mais inexpressiva; o PCF renunciou a símbolos do Partido e arrasta-se numa coligação de vários pequenos partidos e o PCI desapareceu, depois de uma penosa agonia em que até mudou de nome. Como foi possível?

Agora que começámos a sair da situação de «criminalização do ideal comunista, que induziu uma autêntica colonização da consciência histórica dos próprios comunistas», é natural que nos interroguemos: Como foi possível?

A responsabilidade é sempre atribuída aos dirigentes e nunca falamos dos milhares de delegados que aprovaram.

No caso do XX Congresso, se hoje há notícia de que houve alguns dirigentes que tentaram opor-se às decisões propostas, mesmo publicamente no decorrer do Congresso, nada sabemos dos milhares de militantes que aprovaram as propostas e dos delegados que as votaram. Não há notícia de significativos votos contra.

E não havia naqueles milhares de delegados, trabalhadores, operários, intelectuais que compreendessem o rumo que se propunha e procurassem contrariar e impedir as decisões?
Não serão tão ou mais responsáveis os que não quiseram sair da sua zona de conforto e fingiram que não compreendiam o que se propunha?

Notas:

[1] Frances Stonor Saunders, Who Paid the Piper? The Cia and the Cultural Cold War, editado originalmente por Granta Books, Reino Unido, 1999 e em castelhano, La CIA y la Guerra Fria Cultural, Editorial Debate, Madrid 2001.

[2] Archiv der Gegenwart [Arquivos da atualidade], citado por Kurt Gossweiller. John Foster Dulles era irmão de Allen Dulles, diretor da CIA desde a sua criação até ser demitido por John Kennedy, em 1961, após a derrota da invasão de Cuba na zona da Baía dos Porcos.

[3] Stéphane Sirot: Paris, 2000.

Lisboa, 27 de Novembro de 2016.

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