Publicado em 1998, identifica lucidamente não apenas o neoliberalismo mas também a sua previsível evolução em termos que a realidade actual confirma por inteiro. O autor não utiliza essa linguagem, mas identifica certeiramente o seu carácter de classe (“o programa neoliberal deriva o seu poder social do poder político e económico daqueles cujos interesses expressa”) e a sua construção na base de um idealismo reaccionário (“um sistema económico que se conforma na sua descrição em teoria pura, que é uma espécie de máquina lógica que se apresenta como uma cadeia de restrições que regulam os agentes económicos”).
Como pretende o discurso dominante, o mundo económico é uma ordem pura e perfeita, que implacavelmente desenvolve a lógica das suas consequências previsíveis e tenta reprimir todas as violações mediante as sanções que inflige, automaticamente — ou não — através das suas extensões armadas, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) e as políticas que impõem: a redução dos custos laborais, redução da despesa pública e tornar o trabalho mais flexível. Tem razão o discurso dominante? E o que aconteceria se na realidade esta ordem económica não fosse mais que a instrumentalização de uma utopia — a utopia do neoliberalismo — transformada assim num problema político? Um problema que, com a ajuda da teoria económica que proclama, lograva conceber-se como uma descrição científica da realidade?
Esta teoria tutelar é pura ficção matemática. Fundou-se desde o começo numa abstracção formidável. Pois, em nome da concepção estreita e estrita da racionalidade como racionalidade individual, marca as condições económicas e sociais das orientações racionais e as estruturas económicas e sociais que condicionam a sua aplicação.
Para dar a medida desta omissão, basta pensar precisamente no sistema educativo. A educação nunca é tomada em conta como tal numa época em que joga um papel determinante na produção de bens e serviços assim como na produção dos próprios produtores. Desta espécie de pecado original inscrito no mito walrasiano ( ) da «teoria pura», advém todas as deficiências e faltas da disciplina económica e a abstenção fatal com que se junta à oposição arbitrária que induz, mediante a sua mesma existência, entre uma lógica propriamente económica, baseada na competência e na eficiência, e a lógica social, que está sujeita ao domínio da justiça.
Dito isto, esta «teoria» des-socializada e des-historizada nas suas raízes tem, hoje mais do que nunca, os meios de comprovar-se a si mesma e de tornar-se em si própria empiricamente verificável. Com efeito, o discurso neoliberal não é apenas mais um discurso. É sim um «discurso forte» — tal como o discurso psiquiátrico o é num manicómio, na análise de Erving Goffman ( ). É tão forte e difícil de combater só porque tem a seu lado todas as forças das relações de forças, um mundo que contribui para ser o que é. Isto leva-o muito notavelmente a orientar as decisões económicas dos que dominam as relações económicas. Assim, acrescenta a sua própria força simbólica a estas relações de forças. Em nome deste programa científico, transformado num plano de acção política, está em desenvolvimento um imenso projecto político, embora a sua condição como tal seja negada porque surge como puramente negativa. Este projecto propõe-se criar as condições sob as quais a «teoria» pode realizar-se e funcionar: um programa de destruição metódica dos colectivos.
O movimento para a utopia neoliberal de um mercado puro e perfeito é possível mediante a política de desregulação financeira e consegue-se mediante a acção transformadora e, devemos dizer, destrutiva de todas as medidas políticas (das quais a mais recente é o Acordo Multilateral de Investimentos, feito para proteger as corporações estrangeiras e seus investimentos nos estados nacionais) que levam a questionar toda e qualquer estrutura que possa servir de obstáculo à lógica do mercado puro: a nação, cujo espaço de manobra decresce continuamente; as associações laborais, por exemplo através da individualização dos salários e das carreiras como uma função das competências individuais com a consequente atomização dos trabalhadores, os colectivos para a defesa dos direitos dos trabalhadores, sindicatos, associações, cooperativas; incluindo a família, que perde parte do seu controle do consumo através da constituição de mercados por grupos de idade.
O programa neoliberal deriva o seu poder social do poder político e económico daqueles cujos interesses expressa: accionistas, operadores financeiros, industriais, políticos conservadores e sociais-democratas que foram transformados nos subprodutores tranquilizantes do laissez faire, altos funcionários financeiros decididos a impor políticas que procuram a sua própria extinção pois, ao contrário dos gerentes de empresas, não correm nenhum perigo de ter que eventualmente pagar as consequências. O neoliberalismo tende a favorecer como um todo a separação da economia das realidades sociais e portanto a construção, na realidade, de um sistema económico que se conforma na sua descrição em teoria pura, que é uma espécie de máquina lógica que se apresenta como uma cadeia de restrições que regulam os agentes económicos.
A globalização dos mercados financeiros, quando se unem com o progresso da tecnologia da informação, assegura uma mobilidade sem precedentes do capital. Dá aos investidores preocupados com a rentabilidade a curto prazo dos seus investimentos, a possibilidade de comparar permanentemente a rentabilidade das maiores corporações e consequentemente penalizar as derrotas relativas dessas firmas. Sujeitas a este desafio permanente, as corporações têm que ajustar-se cada vez mais depressa às exigências dos mercados, sob pena de perder a confiança nos mercados, como dizem para apoiar os seus accionistas. Estes últimos ansiosos por obter lucros a curto prazo, são cada vez mais capazes de impor a sua vontade aos gerentes, usando comités financeiros para estabelecer as regras sob as quais os gerentes operam e para formatar as suas políticas de recrutamento, emprego e salários.
Assim se estabelece o reino absoluto da flexibilidade, com empregados com contratos a prazo fixo ou temporário e repetidas reestruturações corporativas e estabelecendo, dentro da mesma firma, a concorrência entre divisões autónomas assim como entre equipas forçadas a executar múltiplas funções. Finalmente, esta concorrência estende-se aos próprios indivíduos, através da individualização da relação de salário; estabelecimento de objectivos, de rendimento individual, avaliação do rendimento individual, avaliação permanente, aumentos salariais individuais, ou a concessão de bónus em função da competência e do mérito individual, carreiras individualizadas, estratégias de «delegação de responsabilidade» tendentes a assegurar a auto-exploração do pessoal, como assalariados, em relações de forte dependência hierárquica, que são ao mesmo tempo responsabilizados pelas suas vendas, os seus produtos, a sua sucursal, a sua loja, etc., como se fossem contratados independentes. Esta pressão para o autocontrole aumenta o «compromisso» dos trabalhadores de acordo com técnicas de «gerência participativa» consideravelmente mais além do nível de gerência. Todas elas são técnicas de domínio racional que impõem o sobre-compromisso no trabalho (e não só entre gerentes) e no trabalho em emergência e sob condições de alto stress. E convergem para o enfraquecimento ou abolição dos níveis e solidariedade colectiva ( )
Deste modo surge um mundo darwiniano — é a luta de todos contra todos, a todos os níveis da hierarquia, que encontra apoio através de todos os que se aferram ao seu posto e organização sob condições de insegurança, sofrimento e stress. Sem dúvida, o estabelecimento prático deste mundo de luta não triunfaria totalmente sem a cumplicidade de acordos precários, que produzem insegurança e da existência de um exército de reserva de empregados domesticados por estes processos sociais que tornam precária a sua situação, assim como pela ameaça permanente de desemprego. Este exército de reserva existe em todos os níveis da hierarquia, incluindo nos níveis mais altos, especialmente entre os gerentes. A fundação definitiva de toda esta ordem económica colocada sob o signo da liberdade é com efeito a violência estrutural do desemprego, da insegurança da estabilidade laboral e a ameaça de despedimento que esta implica. A condição de funcionamento «harmónico» do modelo microeconómico individualista é um fenómeno maciço, a existência de um exército de reserva de desempregados.
A violência estrutural pesa também no que se chama o contrato laboral (sabiamente racionalizado e transformado em irreal pela «teoria dos contratos»). O discurso organizacional nunca teve tanta confiança, cooperação, lealdade e cultura organizacional numa era em que a adesão à organização se obtém a cada momento pela eliminação de todas as garantias temporais (três quartas partes dos empregos têm duração fixa, a proporção dos empregados temporais continua a aumentar, o emprego à vontade» e o direito de despedir um individuo tendem a libertar-se de qualquer restrição).
Assim, vemos como a utopia neoliberal tende a transformar-se na realidade numa espécie de máquina infernal, cuja necessidade se impõe até sobre os governantes. Como o marxismo numa época anterior, com o que este aspecto tem muito em comum, esta utopia evoca a crença poderosa — a fé do livre comercio — não só entre os que vivem dela, como dos financistas, dos donos e gerentes de grandes corporações, etc., mas também entre aqueles que como altos funcionários governamentais e políticos, aceitam a sua justificação vivendo dela. Eles santificam o poder dos mercados em nome da eficiência económica, que requer a eliminação de barreiras administrativas e políticas capazes de obstruir os donos do capital na sua busca da maximização do lucro individual, que se transformou num modelo de racionalidade. Querem bancos centrais independentes. E pregam a subordinação dos estados nacionais aos requisitos da liberdade económica para os mercados, a proibição dos défices e a inflação, a privatização geral dos serviços públicos e a redução das despesas públicas e sociais.
Os economistas podem não compartilhar necessariamente os interesses económicos e sociais dos devotos verdadeiros e podem ter diversos estados psíquicos individuais em relação aos efeitos económicos e sociais da utopia, que dissimulam a sua capa de razão matemática. Mas têm interesses específicos suficientes no campo da ciência económica para contribuir decisivamente para a produção e reprodução da devoção pela utopia neoliberal. Separados das realidades do mundo económico e social pela sua existência e sobretudo pela sua formação intelectual, na maior parte das vezes abstracta, livresca e teórica, estão particularmente inclinados a confundir as casas da lógica com a lógica das casas.
Estes economistas confiam em modelos que quase nunca têm oportunidades de submeter à verificação experimental e são levados a desprezar os resultados de outras ciências históricas, em que não reconhecem a pureza e transparência cristalina dos seus jogos matemáticos e cuja necessidade real e profunda complexidade com frequência são incapazes de compreender. Ainda assim algumas das suas consequências horrorizam-nos (podem ligar-se a um partido socialista e dar conselhos instruídos aos seus representantes na estrutura do poder), esta utopia não pode molestá-los porque, com o risco de poucas falhas, imputadas ao que às vezes se chama «bolhas especulativas», tendem a dar realidade à utopia ultralógica (ultralógica como certas formas de loucura) a que consagram as suas vidas.
E no entanto o mundo está aí, com os efeitos imediatos visíveis da implementação da grande utopia neoliberal: não só a pobreza de um segmento cada vez maior das sociedades economicamente mais avançadas, o crescimento extraordinário das diferenças de ingressos, o desaparecimento progressivo de universos autónomos de produção cultural, tais como o cinema, a produção editorial, etc. através da intrusão de valores comerciais, mas também e sobretudo através de duas grandes tendências. Primeiro, a destruição de todas as instituições colectivas capazes de contrariar os efeitos da máquina infernal, primariamente as do Estado, repositório de todos os valores universais associados à ideia do reino do público. Segundo a imposição em todas as partes, nas altas esferas da economia e do Estado tanto como no coração das corporações, desta espécie de darwinismo moral que, com o culto do vencedor, educado nas altas matemáticas e em salto de grande altura (bungee jumping) institui a luta de todos contra todos e o cinismo como a norma de todas as acções e condutas.
Pode esperar-se que a extraordinária massa de sofrimento produzida por este género de regime político-económico possa servir algum dia como ponto de partida de um movimento capaz de parar a corrida para o abismo? Estamos certamente perante um paradoxo extraordinário. Os obstáculos encontrados no caminho para a realização da nova ordem do indivíduo solitário mas livre podem imputar-se hoje a rigidez e a vestígios. Toda a intervenção directa e consciente de qualquer espécie, pelo menos no que diz respeito ao Estado, é desacreditada antecipadamente e assim condenada a desaparecer em benefício de um mecanismo puro e anónimo: o mercado, cuja natureza como local onde se exercem os interesses é esquecido. Mas na realidade o que evita que a ordem social se dissolva no caos, apesar do crescente volume de populações em perigo, é a continuidade ou sobrevivência das próprias instituições e representantes da velha ordem que está em processo de desmantelamento e o trabalho de todas as categorias de trabalhadores sociais, assim como todas as formas de solidariedade social e familiar. Ou se não...
A transição para o «liberalismo» tem lugar de um modo imperceptível, como a deriva continental, escondendo da vista os seus efeitos. As suas consequências mais terríveis dão-se a longo prazo. Estes efeitos escondem-se, paradoxalmente, pela resistência a que esta transição opõem actualmente os que defendem a velha ordem, alimentando-se dos recursos que continham, nas velhas solidariedades, nas reservas do capital social que protegem uma porção inteira da actual ordem social de cair no absurdo. Este capital social está condenado a fenecer — embora não a curto prazo — se não for renovado e reproduzido.
Mas estas forças de «conservação», que é demasiado fácil tratar como conservadoras, são também, de outro ponto de vista, forças da resistência ao estabelecimento da nova ordem e podem transformar-se em forças subversivas. Mas se há motivo para abrigar alguma esperança, é que todas as forças que actualmente existem, tanto nas instituições do Estado como nas orientações dos actores sociais (principalmente os indivíduos e grupos mais ligados a essas instituições, os que possuem uma tradição de serviço publico e civil), que, sob a aparência de defender simplesmente uma ordem que desaparece com os seus «privilégios» correspondentes (acusação imediata) serão capazes de resistir ao desafio só trabalhando para inventar e construir uma nova ordem social. Uma que não tenha como única lei a busca de interesses egoístas e a paixão individual pelo lucro e que crie espaços para os colectivos orientados para a procura racional de fins colectivamente conseguidos e colectivamente rectificados.
Como poderíamos não reservar um espaço especial nesses colectivos, associações, uniões e partidos ao Estado: o Estado nação, ou, ainda melhor, o Estado supranacional — um Estado europeu, a caminho de um Estado mundial — capaz de controlar efectivamente e sobrecarregar com impostos os lucros obtidos nos mercados financeiros e, sobretudo, conter o impacto destrutivo que estes têm sobre o mercado laboral. Isso pode conseguir-se com o auxílio das confederações sindicais, organizando a elaboração e defesa do interesse público. Queiramos ou não o interesse público nunca emergirá, embora à custa de uns quantos erros matemáticos, da visão dos contabilistas (num período anterior poderíamos ter dito, dos «comerciantes») que o novo sistema de crenças apresenta como a suprema forma de realização humana.
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Auguste Wairas (1800-1866), economista francês, autor De la nature
de la richesse et de l’origine de la valeur [da Natureza da Riqueza e da Origem do valor (1848) Foi uma dos primeiros que tentaram aplicar as matemáticas à investigação económica.
Erving Goffman, 1961, Asylums: Essays on the social situation of
mental patients and Other inmates (Manicómios: ensaios sobre a situação dos pacientes e outros reclusos) Nova Iorque, Aldine de Gruyter.
Ver os dois números dedicados a «Nouvelles formes de domination dans le travail» [Novas formas de dominação no trabalho»] Actas da pesquisa em ciências sociais n.o 114, Setembro de 1996, e 115, Dezembro de 1996, principalmente a introdução por Gabrielle Balazs e Michel Pialoux. «Crise du travail e crise du politique (crise do trabalho e crise da politica n.o 114, p. 3, 4
Originalmente publicado em “Le Monde”, Dezembro 1998
Tradução: Manuela Antunes