Ler Gógol tem sido uma experiência muito foda. Não se pode dizer que o autor tenha defendido as posições políticas mais avançadas do seu tempo. Místico e representante da tendência “eslavófila” na intelectualidade russa (que queria afastar as influências ocidentais) ele nunca se colocou diretamente contra o reacionário regime do czarismo.
Isso não impediu, porém, que fosse taxado de liberal e que boa parte dos seus textos fossem censurados.
Existe uma tensão explícita em sua obra. Um espírito crítico, atormentado com a situação que o circunda mas que é freado em vários momentos por concepções conservadoras.
Essa contradição me pareceu de forma mais clara em “Almas Mortas”, sua obra mais conhecida (e nunca terminada).
Sua primeira parte lança um enredo cativante: um burocrata que percorre os vilarejos comprando títulos de servos mortos para enriquecer hipotecando-os junto ao Estado.
Gógol não tirou essa ideia da cartola, foi “sugerida por Púschkin (outro escritor russo, seu amigo) após a leitura de uma nota jornalística” . Isso é, era um golpe que aconteceu realmente no Império Russo.
Gógol dispara um humor ácido. Uma acidez que corrói a aparência ilustre e sagrada das classes dominantes e do setores sociais que eram seus pilares: a burocracia do Estado, a polícia e o exército. A corrupção generalizada, a degradação moral e o afastamento destes grupos das classes populares. Tudo isso ganha vida em suas personagens.
Isso vai desaparecendo gradativamente na segunda parte do livro, escrito algum tempo depois. As descrições se tornam mornas, os anti-heróis começam a se tornar heróis e tudo parece se corrigir e seguir um caminho “moral”.
Mas algo além chama a atenção. Nas linhas de Gógol se expressa não só uma luta interna (crítica/conservação) mas também as transformações econômicas da Rússia na primeira metade do século XIX, mais precisamente: o poder crescente de uma lógica mercantil, dos comerciantes e homens de negócio e o enfrentamento/adaptação dessa tendência à estrutura feudal da economia e sua mentalidade específica.
O principal choque moral desse romance gogoliano reside especificamente nisso. Na primeira parte da obra, Tchitchikov, o comprador de almas mortas, não está preocupado em ser realmente um senhor de terras, ter sua leva de servos, sua aldeia etc. Não tem vergonha nenhuma em sair barganhando com os senhores os títulos de servos mortos. Todos aqueles que ele encontra ficam desconcertados com suas propostas. Ele inventa uma história aqui e outra acolá para disfarçar, mas no fundo, ele pensa e age friamente, de maneira calculista, como um verdadeiro representante do capital comercial.
O encaminhamento da segunda parte da obra nos revela algo ainda mais interessante. Tchitchikov, começa a se “endireitar”, isso é, com a soma que ele calcula adquirir com a hipoteca das almas mortas e com a ajuda de outro aristocrata, ele planeja se tornar um verdadeiro senhor, adquirir uma propriedade e servos de carne e osso.
Esse movimento, na minha visão, é não só uma guinada “conservadora” do autor, mas expressa também, por meio de uma construção literária, os limites da estrutura de classes na Rússia naquele momento para uma possível transformação do capital comercial em capital industrial.
Com a grande massa da mão de obra presa a terra, o capital - se quisesse ganhar mais segurança e penetrar no reino da produção - não podia fazer nada mais do que reproduzir nas mesmas bases o padrão de acumulação vigente. Isso significava, concretamente, que boa parte dos homens de negócios viam-se impelidos a se tornarem também aristocratas.
Essa tendência perdurou durante todo o século XIX e foi constatada depois por Lenin e Trotski, que demonstraram os mil e um laços que ligavam a burguesia russa à aristocracia e a sua incapacidade de liderar qualquer processo revolucionário contra o czarismo.
Já em “O Capote”, Gógol muda de cenário. Suas personagens agora perambulam por Petersburgo, centro comercial, militar e burocrático do Império. Aqui, o poder das relações monetárias, que “rompe o véu sagrado de todas as tradições” aparece de forma mais drástica.
A personagem central, Akaki Akakievitch, é um pobre funcionário tratado com desprezo por todos aqueles que o rodeiam e que vive em um quarto que mais parece uma caverna. Akaki participa de uma trágica jornada em busca de um capote novo, para se proteger do frio e (involuntariamente) desfrutar de outros prazeres sociais.
Para além da crítica afiada à arrogância aristocrática da burocracia e ao estado de miséria dos trabalhadores urbanos, nos deparamos com um conto que expressa uma Petersburgo onde o valor de troca já se disseminou por quase todos os poros da estrutura social: a empreitada de Akaki pode ser vista como uma tentativa desesperada de humanização, concentrada na obtenção de uma simples mercadoria.
Em Gógol, portanto, podemos ver não só as mazelas do feudalismo russo (como a maioria dos seus comentadores costuma ressaltar), mas também, o desenvolvimento contraditório das relações mercantis, em que o poder do dinheiro e do “mundo das coisas” já demonstra sua faceta mais cruel.
Fica o convite!