Mas há um lado que ficou escondido ao longo dos anos, distante dos olhos da imensa maioria das pessoas: foram anos de punições, medo e até terror no interior da Igreja; dirigido contra bispos, padres, freiras e leigos ligados à Teologia da Libertação ou simplesmente adeptos do Concílio Vaticano II. O objetivo: liquidar a Teologia da Libertação, o espírito da primavera do Concílio Vaticano II e realizar o que João Paulo afirmou como prioridade de seu papado, no discurso inaugural: restaurar “a grande disciplina” (leia aqui a mensagem Urbi et Orbi de 17 de outubro de 1978, no dia seguinte à eleição do cardeal Wojtyła como Papa).
Numa breve série de três artigos aqui no Caminho Pra Casa você lerá: 1) uma visão panorâmica do governo de João Paulo II; 2) depois, uma lista inédita que, longe de ser exaustiva, apresenta quase 200 ações repressivas de João Paulo II que semearam medo e silêncio na Igreja; 3) finalmente, o arcabouço doutrinal/institucional desenhado por João Paulo II e seu braço direito, o cardeal Joseph Ratzinger, que seria seu sucessor, com o objetivo de consolidar a visão que o Papa Francisco hoje qualifica de restauracionista e inviabilizar uma nova primavera –que finalmente chegou com a eleição de Jorge Mario Bergoglio em 2013 .
Foi um tempo longo, da “grande disciplina”, expressão que o teólogo brasileiro João Batista Libânio (1932-2014) tomou do discurso de João Paulo II e consagrou como definidora do pontificado. O teólogo belga e brasileiro por ternura José Comblin (1923-2011) qualificou o tempo de Wojtyła de “noite escura”. O maior teólogo do século XX, Karl Rahner, vítima de uma campanha de um ataques agressivos pelo Vaticano menos de um ano depois de sua morte, em 1984, cunhou outro termo para o tempo da restauração conservadora: “Igreja invernal” –um inverno longo, frio, de chumbo.
Para que se tenha uma ideia do que foram os 26 anos do Papa polonês: o principal organismo de relacionamento do Vaticano com a Igreja universal durante o período foi Congregação para a Doutrina da Fé, sucessora Sacra Congregação da Inquisição Universal e da Congregação do Santo Ofício. Não por coincidência, esteve à frente da polícia vaticana o cardeal Joseph Ratzinger, braço direito de João Paulo e seu sucessor. O outro “martelo” de João Paulo foi o cardeal Bernardin Gantin, prefeito da Congregação dos Bispos, que se encarregou de ameaçar e punir bispos e conferências episcopais ao redor do planeta.
Houve de tudo ao longo dos anos da grande disciplina na Igreja surgida paradoxalmente na esteira de Jesus sob o signo do amor: censuras, silêncios obrigatórios, renúncias compulsórias, repreensões públicas humilhantes, interrogatórios com base em tortura psicológica, acobertamento de crimes e até omissão cúmplice diante de um sem número de assassinatos de leigos, freiras, padres e bispos, na América Latina.
João Paulo II assumiu o pontificado obcecado pela ideia de ser protagonista na derrocada dos regimes do socialismo real no Leste Europeu e, muito especialmente, na sua Polônia. Para isso, estabeleceu uma sólida aliança com Margareth Tatcher, que se tornou primeira-ministra do Reino Unido poucos meses depois de sua eleição e, de maneira muito especial, com Ronald Reagan, eleito presidente dos Estados Unidos dois anos depois de sua posse –com ele, a relação evoluiu para amizade.
Pode parecer inacreditável, mas João Paulo II recebeu agentes da CIA mais de 15 vezes no Vaticano para troca de informações, inicialmente sobre o Leste Europeu e particularmente sobre a Polônia. Mais tarde, com a decisão do Papa de combater sem tréguas a Teologia da Libertação na América Latina, o Vaticano passou a se utilizar dos informes da CIA sobre leigos e clérigos católicos que se opunham aos regimes ditatoriais e defendiam os pobres na região.
Ato contínuo seguiram-se punições e repreensões públicas de João Paulo II à Teologia da Libertação e a teólogos, teólogas, padres e bispos a ela vinculados. Dois exemplos: foram amplamente divulgadas as cenas da humilhante censura públicas de Wojtyła ao padre Ernesto Cardenal (veja o vídeo abaixo), ajoelhado a seus pés em Manágua, em 1983 –no ano seguinte, ele e os padres Fernando Cardenal (seu irmão), Miguel D’Escoto e Edgard Parrares foram suspensos por tempo indeterminado do exercício do sacerdócio, pena que só foi revogada em 2014 pelo Papa Francisco; antes disso, o arcebispo de El Salvador, dom Oscar Romero estivera em 1979 com João Paulo II no Vaticano e fora tratado de maneira grosseira pelo Papa, que o repreendeu duramente por sua caminhada com os pobres, ordenando que ele se submetesse ao governo genocida de seu país –a mensagem que chegou aos bispos reacionários salvadorenhos e, deles, aos militares.
Estes e centenas de outros fatos como a amistosa visita ao sanguinário Augusto Pinochet no Chile em 1987 foram corretamente interpretados pelos governos militares da América Latina e seus serviços de segurança entre o final dos anos 70 e as décadas seguintes: os leigos e clérigos que caminhassem com os pobres e de alguma maneira vinculados à Teologia da Libertação estariam por sua conta e risco, sem qualquer apoio do Vaticano –ao contrário, sofriam hostilidade aberta de João Paulo II e seus subordinados diretos. Resultado: ações repressivas de todo o tipo, desde exílios a prisões, torturas e mortes. O caso mais emblemático foi o de Romero. Abandonado pelo Vaticano em 1979, foi assassinado pelos militares enquanto celebrava missa em San Salvador em 24 de março de 1980. Nem a morte livrou o arcebispo de El Salvador da perseguição vaticana: iniciou-se uma virulenta campanha de difamação de dom Oscar Romero pela Cúria romana, conforme o Vaticano reconheceu recentemente (aqui).
Ao mesmo tempo em que o clero foi colocado de joelhos diante do Vaticano, os teólogos e teólogas foram tratados como inimigos pela ação combinada de Wojtyła/Ratzinger –cerca de 150 deles foram interrogados de maneira inquisitorial por Ratzinger ou em outras instâncias doutrinárias do Vaticano, advertidos na maioria dos casos punidos, depostos de suas cátedras em universidades, demitidos de cargos em publicações católicas, proibidos de publicar livros, proferir palestras, entre outras punições.
Não houve qualquer traço de compaixão com aqueles que, afinal, pertenciam à mesma Igreja. O padre e teólogo Bernard Häring (1912-1998), muito querido por seus pares, já velho e gravemente doente, com um câncer na garganta, foi perseguido, vigiado, investigado por oito anos e levado a longos interrogatórios e julgamento nas salas da ex-Inquisição. Em sua autobiografia, o teólogo alemão afirmou que nem os tribunais da Alemanha nazista foram tão duros quanto os do Vaticano (aqui).
O cerco aos teólogos chegou ao ponto de o Vaticano proibir que eles estivessem presentes na qualidade de assessores dos bispos durante a conferência do episcopado latino-americano de 1979, a Conferência de Puebla: quase 50 deles viajaram à cidade mexicana a pedido de vários bispos, abrigando-se em apartamentos na cidade e reunindo-se com os religiosos de maneira clandestina.
No Brasil, o terror abalou a Igreja local profundamente. Os principais líderes do episcopado foram atacados, como dom Helder Câmara, dom Paulo Evaristo Arns, dom Pedro Casaldáliga, dom Ivo Lorscheiter, entre outros. A CNBB foi manietada. As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e os conselhos diocesanos e paroquiais, instâncias de uma Igreja circular no formato da relação de Jesus com seus amigos, desarticuladas . As brutais punições a frei Leonardo Boff foram escolhidas como símbolo para atemorizar quem ousasse afrontar a restauração romana. Em 1984, ele foi condenado pela Congregação para a Doutrina da Fé a um ano de “silêncio obsequioso”, sendo proibido de escrever, lecionar, dar palestras ou sequer entrevistas. Os cardeais Arns e Lorscheiter, que acompanharam Boff em seu interrogatório no Vaticano, foram abertamente hostilizados por Ratzinger. O moto das punições a Boff: seu livro Igreja, Carisma e Poder (1981) –não sem uma ponta de ironia amarga, as teses do livro foram assumidas e radicalizadas pelo Papa Francisco, mais de 30 anos depois.
O corolário doutrinal dos anos de chumbo foi o sínodo dos bispos de 1985, convocado por João Paulo II e conduzido com mão de ferro por Ratzinger com o objetivo de revogar os aspectos centrais do Concílio Vaticano II, apesar das seguidas frases laudatórias ao encontro de 20 antes, e restaurar a perspectiva fechada do Concílio Vaticano I (1869-70). O conceito basilar de Igreja como Povo de Deus foi, na prática, revogado. Os outros dois documentos que completaram a arquitetura restauracionista foram o Código de Direito Canônico (1983), que judicializou por completo as relações no interior da Igreja, e o Catecismo da Igreja Católica (1992) que mais uma vez, como na Idade Média, tentou transformar o cristianismo numa religião de manual, baseado numa visão de “pode-não pode”.
Na América Latina, a doutrina vestiu as armas da guerra declarada. Primeiro, com o violento ataque de João Paulo II à Teologia da Libertação e sua ordem unida dirigida aos bispos, na abertura da Conferência de Puebla; depois, em 1984, com a Instrução sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação, da Congregação para a Doutrina da Fé, assinada por Ratzinger, que condenou-a em sua totalidade como uma perigosa subversão, ao escrever que “a nova interpretação atinge assim todo o conjunto do mistério cristão”. Finalmente, na exortação apostólica depois do Sínodo das Américas, a Ecclesia in America, de 1999, João Paulo II retomou as formulações piedosas dos séculos XVII, XVIII e XIX sobre os pobres, lançou ao mar opção preferencial pelos pobres dos Evangelhos e reafirmada pelo Concílio Vaticano II e buscou alinhar a Igreja da região aos interesses do sistema.
Um dos resultados mais dramáticos do governo monárquico dos “terroristas da fé”, como os qualificou Häring , foi o acobertamentos a todo tipo de abusos e crimes, como é usual nos regimes ditatoriais:
1) Durante 30 anos houve sucessivos escândalos financeiros do Banco do Vaticano (o Instituto para as Obras de Religião – IOR), com casos desde lavagem de dinheiro a investimentos na indústria armamentista sem que qualquer medida saneadora fosse adotada.
2) A Opus Dei, um dos pilares da ditadura franquista na Espanha, foi transformada em prelazia pessoal do Papa João Paulo II, em 1982, o que lhe deu direito de atuar no mundo inteiro, sem a licença do bispo local.
3) O padre mexicano Marcial Maciel foi o grande “amigo do peito” de Wojtyła. Fundador dos ultraconservadores Legionários de Cristo e Regnum Christi, tinha uma vida dupla, com pregações moralistas conservadoras, ao estilo dos cardeais que se opõem a Francisco hoje, enquanto era casado com duas mulheres, teve vários filhos, casos sem conta de abusos sexuais de menores e envolvimento com traficantes de drogas, além de ter plagiado suas principais obras, entre elas o livro de cabeceira dos Legionários, Saltério de Meus Dias. Nunca perdeu a proteção e privilégios junto a João Paulo II, apesar de o Papa ter recebido por décadas denúncias sem número contra Maciel. Morreu sem qualquer punição em 2008.
4) Wojtyła acobertou conscientemente os milhares de casos de pedofilia e todo tipo de abusos contra crianças, jovens e mulheres –sua ação está fartamente documentada. O auge foi em 2001, quando os escândalos e a revelação das sequelas sobre as vítimas, de traumas a suicídios, havia se tornado uma enxurrada. Ratzinger, como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, emitiu e enviou a todos os bispos a Epistula de delictis gravioribus na qual reduzia os crimes de pedofilia a delitos de cunho religioso contra a eucaristia e o sacramento da penitência, qualificando-os de meros “delitos contra os costumes”, “contra o sexto mandamento do Decálogo cometido por um clérigo com um menor de 18 anos”. A tentativa de minimizar a gravidade dos milhares de crimes de abusos pode ser mensurada pela referência ao sexto dos Dez Mandamentos: “Guardar castidade nas palavras e nas obras”. Ainda mais: os crimes assumiram a condição de “Secretum Pontificium” –todo o acolhimento foi reservado aos criminosos, toda a hostilidade às vítimas, conforme se testemunhou ao longo dos últimos anos, especialmente depois de o Papa Francisco ter decidido enfrentar a situação, apesar da resistência da Cúria romana e da hierarquia.
Foi devastador o impacto dos anos de chumbo e degradação sobre a base da formação eclesial, os seminários e as casas de formação de religiosos. A Teologia da Libertação e, em verdade, todo o estudo teológico foram varridos ocuparam seu lugar disciplinas sobre legislação, carreira, vestes, festas e poderes. Os efeitos estendem-se até hoje: “(…) nos seminários, nos centros de estudos teológicos, há medo, muito medo”, escreveu recentemente o teólogo espanhol José María Castillo, ele mesmo punido por Ratzinger em 1988.
Se na base da formação eclesial imperou o medo, no alto a tônica foi a exigência de rendição completa: o processo de nomeação de bispos e cardeais passou a ser conduzido a partir da fidelidade canina dos clérigos ao poder avassalador de Roma. Buscou-se garantir a eternização da restauração com nomeação em massa de cardeais eleitores do sucessor de João Paulo II: foram 231 cardeais em 9 consistórios, um número sem precedentes na história da Igreja, garantindo um colégio eleitoral de 120 homens todos de sua escolha. O resultado é conhecido: com a morte de Wojtyła, elegeu-se seu braço direito, Ratzinger, em 2005.
Rapidamente correu-se a canonizar o Papa, o que aconteceu em apenas nove anos, em 2014, quando é usual que tais processos demandem décadas -isso apesar de haver oposição explícita de segmentos da Igreja à canonização. Tratava-se de, ao declarar Wojtyła santo, de colocar uma pedra sobre seu pontificado, para bloquear as investigações e avaliações -quem, dentro da Igreja, terá coragem de se levantar contra um santo?
Os 35 anos de Wojtyła/Ratzinger (1978-2013), deixaram a Igreja aos frangalhos, a ponto de um colégio de cardeais nomeado integralmente por ambos, de perfil conservador, ter se dado conta que a crise chegara ao limite, ameaçando a própria existência da instituição e decidido eleger em 2013 o argentino Jorge Mario Bergoglio como novo Papa: Francisco. Depois de 26 anos de João Paulo II e mais nove de Bento XVI, a muitos a primavera parecia impossível. Mas aconteceu.
No próximo artigo da série, você lerá uma inédita e impressionante lista de mais de 200 atos que estabeleceram o terror na Igreja sob João Paulo II.
[Mauro Lopes]
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Referências bibliográficas
Há uma ampla bibliografia sobre o pontificado de João Paulo II, caso você queira aprofundar-se no assunto. Separei algumas indicações.
O livro que se tornou uma referência global sobre o papado de Wojtyła foi o do teólogo brasileiro João Batista Libânio (1932-2011):
A grande disciplina, João Batista Libânio. São Paulo: Loyola, 1983
Outras sugestões:
Cenários da Igreja, João Batista Libânio. São Paulo: Loyola, 2ª Edição, 1999
A Igreja do Brasil – de João XXII a João Paulo II, de Medellín a Santo Domingo, José Oscar Beozzo. Petrópolis: Editora Vozes, 1994
Da Esperança à Utopia: Testemunho de uma vida, dom Paulo Evaristo Arns. Rio de Janeiro: Sextante. 2001.
Igreja, Carisma e Poder, Leonardo Boff. Petrópolis: Editora Vozes, 1981
O caso Leonardo Boff. São Paulo: Centro de Pastoral Vergueiro, 1986
O Povo de Deus, José Comblin. São Paulo: Paulus, 2002
Um novo amanhecer na Igreja?, José Comblin. Petrópolis: Editora Vozes, 2002
Teologia da libertação, Teologia neoconservadora e teologia liberal, José Comblin. Petrópolis: Editora Vozes, 1985
A Igreja tem Salvação?, Hans Küng. São Paulo: Paulus, 2012
A autoridade da verdade, J. González Faus. São Paulo: Loyola, 1998
Guerra dos Deuses: Religião e política na América Latina, Michael Löwy. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2000
Diálogos nas Sombras: Bispos e Miltares, tortura e justiça social na ditadura, Kenneth P. Serbin, São Paulo: Companhia das Letras. 2001.
Sobre as relações entre João Paulo II, Ronald Reagan, Margareth Tatcher e o uso de informações da CIA
Sua Santidade, Carl Berstein e Marco Politi. Rio: Editora Objetiva, 996
O Presidente, o Papa e a Primeira-Ministra, John O’Sullivan. Lisboa: Alethêia Editores, 2007
O Vaticano e o Governo Reagan: convergências na América Central, Ana Maria Ezcurra. São Paulo: Editora Hucitec, 1984