De acordo com a comunidade arqueológica internacional, esta foi uma das maiores descobertas do século.
Contudo, coincidência ou não, o aristocrata e patrocinador da expedição, Lorde Carnavon, um dos primeiros a conhecer o sarcófago do faraó que viveu há mais de três milênios, faleceu 6 meses depois do encontro com a múmia, após a infecção de uma picada de mosquito que obteve ainda na expedição. Após Carnavon, outras mortes misteriosas se seguiram aos que entraram em contato com a tumba, como os dois ajudantes de Carter e outros duas pessoas que também se aproximaram do artefato arqueológico. Pronto, as bases reais estavam dadas para o que ficou conhecido como “A maldição da múmia de Tutancâmon”.
Como toda boa história rende um filme, não tardou muito para que o “desconhecido” e “misterioso” caso fosse exibido nas telas do cinema. Em 1932, a Universal Studios que já estava produzindo clássicos do terror (Drácula, com Bela Lugosi e Frankenstein, com Boris Karloff, ambos de 1931), lançou o primeiro filme “A Múmia” (The Mummy), dirigido por Karl Freund e estrelado pelo experiente Boris Karloff, um longa em preto e branco de 72 minutos que conta a história de Inhontep, um sacerdote do Egito Antigo que fora mumificado vivo e ressuscitado acidentalmente por arqueólogos. Agora, o monstro de trapos procura por sua amada, Ankhesenamon, supostamente encarnada em uma bela jovem interpretada pela atriz Zita Johann.
Desde então, muitas películas foram produzidas em torno da história da maldição egípcia: “A Mão da Múmia” (The Mummy’s Hand, 1940), “A Tumba da Múmia” (The Mummy’s Tomb, 1942), “O Fantasma da Múmia” (The Mummy’s Ghost, 1944) e “A Praga da Múmia” (The Mummy Curse, 1944), “A Múmia” (The Mummy, 1959), “A Mortalha da Múmia” (The Mummy’s Shroud, 1967), “A Lenda da Múmia” (The Legend of the Mummy, 1997), “A Maldição da Múmia” (Bram Stoker’s Legend of the Mummy 2, 1999) e diversos outras, além do intercurso em outras produções, como o divertido “Deu a Louca nos Monstros” (The Monster Squad, 1987). Até mesmo uma produção nacional se aventurou sobre o tema: “O Segredo da Múmia” (1982, dirigido por Ivan Cardoso), com a restrição de idade para 18 anos em função das cenas de nudez e de sexo explícito característicos dos filmes brasileiros desse período.
Em 1999, a história original é refilmada em tons mais cômicos e com um orçamento nada modesto de 80 milhões de dólares, “A Múmia” protagonizado por Brendan Frase e Rachel Weisz, diferente do original de 1932, agora está em cores e com a ajuda de efeitos especiais. Sob a direção de Stephen Sommers e atuação de Arnold Vosloo no papel do monstro, o filme chegou a ser indicado ao Oscar de “Melhor Som” e lhe rendeu a bagatela de quase 416 milhões de dólares, o que garantiu o projeto de uma trilogia: “O Retorno da Múmia” (The Mummy Returns, de 2001), com a participação digitalmente horrenda de Dwayne Johnson e “A Múmia: Tumba do Imperador Dragão” (The Mummy: Tomb of the Dragon Emperor, de 2008), com Jet Li no papel do vilão; além disso, aproveitando o sucesso, a Universal também produziu uma série animada com 26 episódios com os mesmos personagens (The Mummy: the Animated Series).
Em “A Múmia” (2017), dirigido por Alex Kurtzman (roteirista famoso de filmes como “Missão Impossível 3”, “Watchmen” e “Transformers: a Vingança dos Derrotados”, entre outros), existe o mesmo enredo básico das histórias anteriores, com a supremacia dos efeitos digitais e um maior incremento da velocidade do filme com as cenas de Tom Cruise correndo, saltando e lutando contra os mortos meio vivos, o que o tendencia mais para um filme do gênero de ação do que um terror propriamente dito. A diferença na inovação do enredo é a múmia ser representada pelo gênero feminino e o mistério que envolve o personagem do Dr. Henry Jekyll, representado por Russell Crowe, que lidera uma organização clandestina chamada Prodigium.
O projeto em torno da Prodigium trata-se da criação do Dark Universe, que seria reconstruir os personagens clássicos do terror: Drácula, Lobisomen, Frankstein, Homem-Invisível, O Fantasma da Ópera e talvez outros; e criar um Universo de monstros em que eles interajam entre si e em uma única saga, provavelmente liderada por Dr. Henry Jekyll, o famoso doutor de “O Médico e o Monstro”, tal como os heróis da Marvel que se encontram nos filmes dos Vingadores. Neste sentido, a “Múmia” foi o ponto de partida de um projeto audacioso e que pode render bastantes lucros para a Universal, dada a modinha dos filmes de super-heróis. Não por acaso, o orçamento deste filme foi de 125 milhões de dólares (45 milhões a mais que o filme de 1999).
Ademais, o enredo repete os clichês dos blockbusters hollywoodianos, com cenas de explosões, tiros e aviões caindo, contrabalançadas com diálogos superficiais e pitadas de humor. Alguns buracos no enredo chegam a ser grotescas, como um avião do tipo Hércules decolando em meio a uma tempestade de areia sem necessidade alguma.
Contudo, o que chamou mais atenção foram as minúcias dos papeis desempenhados pelos homens e mulheres no enredo, não pelos papeis em si, mas pelo contexto de naturalização destas relações. Já mencionamos que uma importante inovação desta película em relação às múmias anteriores, foi trazer uma mulher para este personagem, contudo, longe de problematizar a questão da mulher, o filme trouxe o reforço de sua função na sociedade patriarcal moderna.
Nick Morton (Tom Cruise) é o protagonista, um soldado do Exército norte-americano que aproveita a guerra contra o Iraque para roubar artefatos valiosos e vendê-los no “mercado negro” (expressão racista usada no filme). Jenny Halsey (Anabelle Wallis) é uma doutora em arqueologia que aparentemente entrou na trama simplesmente por ter sido seduzida por Nick, no qual estava mais interessado em furtar um mapa do que na bela loira de olhos verdes. O clichê do herói masculino salvando a jovem bela e indefesa se repetiu várias vezes, até mesmo com um caráter de altruísmo, o que descaracterizaria o seu próprio personagem – um ladrão e aproveitador.
Mas a relação entre gêneros não para por aí, a princesa Ahmanet (Sofia Boutella), ressuscitada na forma de múmia, constantemente está em busca de Nick para formar um par com ele, tal como a doutora Jenny tenta encontrar nele a pureza de seu coração. Nick é assim disputado por duas mulheres, em uma ele foi “o escolhido” para se tornar um deus-vivo ao lado dela (tentador isso!) e na outra ele encontrará a paz e o amor de uma relação que não seja fruto de uma maldição antiga (igualmente tentador!). O “coração” de Nick chega a balançar para um e outro lado e, para desfazer a imagem de egoísta o qual fora inicialmente apresentado ao público, opta por um tanto estranho “auto-sacrifício” (do tipo que pode ser entendido como uma atitude movida pelo egoísmo, afinal de contas, quem não gostaria de adquirir poderes e imortalidade de um “deus-vivo”?).
Além disso, tem o Dr. Henry Jekyll (Crowe) que é um homem branco que chefia uma organização poderosa. Henry, se já não bastasse ser o patrão da doutora Jenny, é tão poderoso em recursos que é capaz de conter até mesmo Ahmanet, submetendo-a a tal ponto que faz lembrar das escravas negras do Brasil Colonial, em que a posição de imobilização com o tronco inclinado a frente incutia corporalmente “a ideia” de subserviência às negras rebeldes. O tom imponente de sua presença e a segurança de sua fala transmitem o papel de um rico e abastado senhor, pretensamente conhecedor e acima do “bem” e do “mal”, ainda que o segundo não escape da aparência do primeiro, como qualquer rico burguês com boas intenções.
De igual modo, também não por acaso, o contraste naturalizado entre a representação do “mal” pelos tons negros da princesa Ahmanet e a idealização do “bem” pela redenção através da branca, loira e olhos verdes da doutora Jenny. Curioso como até mesmo a iluminação das cenas se alternam quando a atriz branca encena com o sol, o dia e a claridade e a “não-branca” tomam foco com as sombras e o tom cinzento escuro, ainda que em um mesmo ambiente. A cena do ritual de Ahmnet quando faz o pacto com Seth é perceptível que seu corpo se modifica, para além das tatuagens e contorções, também se tornando mais “enegrecido”.
Isto é o que um filme disposto a lucratividade e com pouca preocupação em relação à história egípcia e a ciência arqueológica é capaz de fazer. Uma semiótica e um enredo que “naturalizam” os papeis sociais entre homens e mulheres, entre negras e brancos, em um contexto de enfrentamento mundial dos trabalhadores negros com as políticas e declarações do atual presidente Donald Trump, além da discriminação explícita deste racista falastrão às etnias não-brancas, como os mulçumanos da região do Oriente Médio.
Sobre a “maldição da múmia de Tutancâmon” da vida real, descobriu-se depois que o responsável pelas mortes fora um fungo microscópico de nome oficial Auspegillus niger. Escondido nas paredes da tumba, o organismo se alimentou das tintas e do gesso, proliferando sem parar por três mil anos de umidade presa. Sobre as mensagens de maldições encontradas nas tumbas, apenas para afugentar os ladrões e proteger as posses dos faraós que eram enterrados juntos com ele, pois acreditava-se que seus objetos e riquezas passariam para o outro plano.
O misticismo é possível até quando a ciência avança. Descobriu-se recentemente que uma adaga enterrada com o famoso faraó possui um metal que não é da Terra. A hipótese possível é que o metal adveio de um meteorito que fora encontrado naqueles tempos, contudo, não há uma “confirmação” desta teoria. Parece que a história real sobre as múmias é mais intrigante que “A Múmia” (2017) de Hollywood. Mas afinal de contas, o que esperar de um filme estrelado por Tom Cruise? Nada mais além do que correr para salvar a mocinha e por tabela, a humanidade da destruição.