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Diário Liberdade
Terça, 24 Outubro 2017 16:33 Última modificação em Domingo, 29 Outubro 2017 02:08

Homenagem à Catalunha

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País: Paísos Cataláns / Direitos nacionais e imperialismo / Fonte: Jornal Mudar de Vida

[António Louçã] Com este título, George Orwell evocou em páginas cintilantes a sua participação na milícia do POUM durante a guerra civil espanhola.

 A Catalunha de que falava era diferente da que vemos hoje: a Catalunha proletária, que em 18 de Julho de 1936 cercou as tropas golpistas, fuzilou os generais conjurados, ocupou e colocou em autogestão as fábricas abandonadas pelos patrões. E era também a Barcelona que, nas jornadas de Maio de 1937, se encheu de barricadas, contra a tentativa policial de retomar o controlo da central telefónica.

Hoje, a Catalunha volta a ser um exemplo, não tanto por um independentismo burguês que em todo o século XX conduziu a becos sem saída, mas pela luta de massas que bateu o pé à prepotência madrilena. Além de exemplo, a Catalunha é um catalisador de soluções potenciais para alguns dos mais intrincados problemas do nosso tempo.

Rajoy: ontem contra a autodeterminação, hoje contra a autonomia

Os espanholistas em versão light afirmam habitualmente que a Catalunha tem autonomia, deve continuar a tê-la, e deve contribuir com a sua prosperidade económica para o desenvolvimento de outras nacionalidades ou regiões do Estado espanhol. Comparam a reivindicação independentista, tal como a entende e subscreve alguma burguesia catalã, com a extrema-direita milanesa e as suas pretensões condensadas há alguns anos no discurso da Liga Norte, contra a unidade italiana.
Para esses espanholistas light, apoiar a autodeterminação catalã é indigno de alguém que lute pelo socialismo. Isto porque, argumentam ainda, o socialismo é por princípio centralizador dos recursos, solidário e nivelador na sua distribuição.

O problema é que não estamos a falar de socialismo nem de transição para o socialismo, nem de um governo que, de perto ou de longe, adopte algum desses princípios centralizadores, solidários e niveladores. Estamos a falar do governo de Rajoy, rebento tardio de um franquismo que só sabia governar empunhando a cachaporra e o garrote vil. Nenhuma das nações ou das regiões mais pobres da península poderá alguma vez contar com uma equilibrada gestão de recursos vinda de um governo com genealogia e tiques franquistas. Falar em tal equilíbrio na presente situação política equivale a acreditar na neutralidade arbitral do Governo Rajoy, para proteger as regiões pobres contra a avareza das regiões ricas. Equivale, portanto, a dar a esse governo um voto de confiança como guardião das expectativas e promessas autonómicas.

E a dificuldade não se resolve afirmando que todos os Estados reagem da mesma forma às veleidades separatistas que ameacem desagregá-los. Todos se opõem de algum modo a essas veleidades, é certo – mas nem sempre da mesma forma. O governo britânico arqui-reaccionário de Cameron opôs-se ao independentismo escocês batendo-se por um voto contra ele no referendo. Mas Rajoy não pôde impedir que lhe saíssem por todos os poros os reflexos franquistas, e opôs-se ao independentismo enviando a Guardia Civil para espancar homens e mulheres, jovens, adultos e idosos que apenas queriam votar.

Na linha dessa repressão brutal, ataca agora os responsáveis dos “mossos” e faz deles, com excepção do País Basco, os primeiros presos políticos na Espanha pós-franquista. No momento de escrever estas linhas, encaminha-se mesmo para dissolver a Generalitat, para prender Puigdemont, para colocar no seu lugar algum Miguel de Vasconcelos catalão e para suspender a autonomia catalã.

O acordo que proclama o PSOE, de ter obtido garantias de uma reforma constitucional, é uma farsa que procura mascarar este golpe antiautonómico de Rajoy. Pedro Sánchez trata de fazer passar a imagem de uma reforma constitucional que satisfará muitas das pretensões catalãs, alargando “ainda mais” a autonomia. Mas de que serviria uma reforma constitucional com direitos autonómicos no papel e com tropas estrangeiras a ocuparem as ruas de Barcelona? E de que serviria uma reforma constitucional em que o axioma monárquico é por definição intocável e em que a forma republicana destruída pelos putschistas e genocidas de 1936 está por definição no índex das ideias impronunciáveis? E de que serve propor, como faz “Podemos”, um diálogo nem carne nem peixe, que evite a independência mas também a intervenção autoritária do centralismo castelhano?

A Santa Aliança de espanholistas e europeístas

Nas páginas do espanholista El Pais, o ex-ministro alemão Joschka Fischer diz que a autodeterminação catalã é um cavalo de Tróia, destinado a destruir “por dentro” a União Europeia. Falta-lhe apenas apontar o dedo ao “Estado Islâmico”.

Trata-se, em todo o caso, de um procedimento recorrente, este da amálgama entre os movimentos independentistas europeus e o terrorismo islâmico. Em tempos foi usado por José Maria Aznar, outro franquista recauchutado, que logo desde as primeiras horas soube da autoria dos atentados de 11 de Março de 2004 pela Al Qaeda, mas ainda assim se pôs a telefonar aos directores de todos os jornais para convencê-los a dizerem que tinha sido a ETA. Pensava, desse modo, dar ao eleitorado o empurrão decisivo de histeria securitária, para chegar à maioria absoluta nas eleições iminentes.

Hoje, só nos faltava Joshka Fischer a fazer a mesma operação em sentido inverso, e a insinuar que um autêntico movimento de autodeterminação catalã obedece a propósitos obscuros, de minar a Europa “por dentro”.

De qualquer modo, o coro de apoiantes europeus de Rajoy é muito variado, a começar pelo presidente da União Europeia, Jean-Claude Juncker e a acabar no Governo português. Este declarou que “a questão catalã é do foro interno de Espanha”, devendo ser “considerada no quadro do respeito pela Constituição e pelas leis espanholas”.

Uma coisa têm em comum quase todos estes apoiantes europeus de Rajoy: nenhum deles levantou a sua voz contra a independência do Kosovo. E Joshka Fischer foi mesmo um dos protagonistas da política europeia para bombardear e desmembrar a ex-Jugoslávia.

Não há fronteiras eternas

Tal como não eram eternas as fronteiras da Jugoslávia, ou as da Checoslováquia, ou as da URSS, também não o são as do Estado espanhol. O “aqui d’el-rei” contra a violação do direito internacional pressupõe a definição de um momento zero, em que o direito anterior fosse cancelado e os pactos, acordos, tratados, convenções aprovadas daí em diante ficassem, para todo o sempre, escritos na pedra.

Se o Estado espanhol, como o seu monarca e como todos, fosse de “direito divino”, intocável para qualquer amputação territorial, as suas fronteiras não seriam, mesmo assim, eternas, porque imediatamente a independência portuguesa ganharia o estatuto de absurdo histórico.

Ao contrário do que sugere uma apreciação formal do direito internacional em determinado momento, a consolidação de qualquer Estado multinacional não dissipa o perigo de novas disputas territoriais, antes o torna mais agudo. Foi precisamente no momento em que o “bando nacional” ganhava a guerra civil com ajuda portuguesa, e portanto parecia seguro das suas fronteiras, que a Falange espanhola se lançou na sua mais enérgica propaganda anexionista, visando absorver Portugal e que Franco mandou elaborar um plano de operações preciso para a ocupação do país vizinho. A relação de forças favorável não tranquiliza os nacionalismos opressores – excita-os e encoraja-os.

Coloca-se naturalmente a questão de saber quem tem legitimidade para reivindicar revisões de fronteiras. A aspiração das nações a constituírem o seu próprio Estado é geralmente reconhecida. Mas há também quem afirme que já passou o tempo histórico de constituir Estados-nação. Se a burguesia catalã não pôde ou não soube constituir em tempo útil um Estado-nação como o de Portugal, azar dela.

A ser válido, esse argumento seria utilizável contra todas as reivindicações de independência desde há mais de um século, hoje contra o Curdistão, ontem contra Timor-Leste. Mas trata-se, precisamente, de um argumento falacioso, que abstrai das condições do devir histórico.

Na verdade, o argumento deveria ser virado do avesso. Várias outras burguesias, que não as de Espanha, souberam criar nações que servissem de base ao seu desenvolvimento. Em França, a diversidade regional, cultural e linguística foi ultrapassada com métodos revolucionários jacobinos, que criaram uma nação na ponta da espingarda. Em Itália, Garibaldi não teve um sucesso tão completo, mas soube ao menos combater o factor de divisão que eram as intrigas papistas e aristocráticas. Na Alemanha, a unificação da língua escrita vinha do tempo de Lutero, mas não houve pelo meio uma verdadeira revolução vitoriosa. O autoritarismo bismarckiano levou a cabo uma unificação hegemonizada pela Prússia, com limitações que a derrota da revolução de 1848 permite explicar.

Em Espanha, Franco impôs tanto ou mais que os jacobinos na ponta da espingarda e sufocou as pequenas nações ibéricas com um punho mais férreo que o de Bismarck. Mas falhou no propósito de construção nacional que em França ou na Alemanha obtivera sucessos de grau variável. Venceu, mas não convenceu. Para além da violência unificadora, nada tinha a oferecer aos povos basco, galego, catalão. A arquitectura autonómica da actual Constituição espanhola é a confissão do fracasso franquista e, ao mesmo tempo, a tentativa desesperada de largar alguns anéis para salvar os dedos.

Se a burguesia catalã chega tarde à independência, o Estado espanhol chega tarde à unificação. Mais do que um sonho separatista, a Catalunha reclama o fim das soluções impostas de forma autoritária e despótica. Hoje, uma unidade verdadeira, num patamar mais elevado, pressupõe a ruptura com esses engendros estatais resultantes de uma pré-história sangrenta da humanidade. A Catalunha que quer separar-se é a mais elevada expressão das tendências unificadoras que só podem encontrar a sua expressão no socialismo.

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