E segundo um bem conhecido analista e conselheiro econômico sírio que tem contatos muito próximos do governo da Síria, a entrevista explosiva está sendo vista como "admissão em alto nível, feita publicamente, da colusão e da coordenação entre quatro países para desestabilizar um estado independente [e que inclui] possível apoio à Nusra/al-Qaeda." Importante a considerar, "essa admissão ajudará a comprovar o que Damasco vê como ataque à sua soberania e segurança nacional. Ela servirá de base a processo legal em busca de reparações."
Com a guerra na Síria entrando na fase de conclusão, parece que novas fontes começam a falar quase que semanalmente, sob a forma de testemunho dos mais altos funcionários envolvidos na operação para desestabilizar a Síria, e também sob a forma de e-mails e documentos oficiais que vazam e que detalham as operações clandestinas para mudar o regime da Síria do presidente Assad. Por mais que muitos desses documentos ajudem a confirmar o que já sabiam há muito tempo todos os que nunca aceitaram a propaganda simplória que domina os veículos da mídia-empresa em todo o mundo, muitos detalhes continuam a se encaixar, o que dará a historiadores futuros quadro muito mais claro da verdadeira natureza dessa guerra.
Esse processo de esclarecimento está sendo acelerado – como já previsto – pela luta interna cada vez mais furiosa entre Arábia Saudita e Qatar, ex-aliados no Conselho de Cooperação do Golfo, com cada lado acusando o outro de financiar os terroristas do Estado Islâmico e da al-Qaeda (ambos dizem a verdade, por irônico que pareça). Cada dia mais o mundo assiste a mais e mais lavagem de roupa suja na praça, ao mesmo tempo em que o CCG implode, depois de anos durante os quais praticamente todas as monarquias do golfo financiaram movimentos de jihadistas em pontos como Síria, Iraque e Líbia.
Desde 2013 The Intercept (+WaPo?) esconde documentos da Agência de Segurança Nacional dos EUA [ing. NSA] que mostram os sauditas ordenando ataques de 'rebeldes' contra Damasco. Afinal divulgaram. https://theintercept.com/2017/
Dessa vez, o alto funcionário do Qatar é ninguém menos que o ex-primeiro-ministro Hamad bin Jassim bin Jaber al-Thani, que supervisionou as operações na Síria como representante do Qatar até 2013, também como ministro de Relações Exteriores,nessa foto de 2010. (Só para lembrar, o comitê da Copa do Mundo de 2022 no Qatar doou $500 mil dólares à Fundação Clinton em 2014).
Numa entrevista à TV do Qatar na 4ª-feira (28/10), bin Jaber al-Thani revelou que seu país, ao lado de Arábia Saudita, Turquia e os EUA sempre enviaram armas a jihadistas, desde "o primeiro momento" quando os eventos começaram (em 2011).
Al-Thani até descreveu a operação clandestina como "caçar a presa" – referindo-se ao presidente Assad e seus apoiadores –, e "presa", como ele agora admite, que não se deixou apanhar – (dado que Assad continua no poder; Al-Thani usou uma palavra do dialeto do Golfo, "al-sayda", que designa caçar animais ou presas, por esporte). Embora Thani tenha negadoacusações críveis e bem fundamentadas de apoio ao ISIS, as palavras do ex-primeiro-ministro implicam apoio direto do Golfo e dos EUA à al-Qaeda na Síria (também chamada Frente al-Nusra) desde os primeiros anos da guerra, e chega até a dizer que o Qatar tem "documentação completa" e registros que provam que a guerra foi planejada para fazer a mudança de regime.
Nos termos da tradução de Zero Hedge, al-Thani disse, ao reconhecer que nações do Golfo armavam jihadistas na Síria com aprovação e apoio de EUA e Turquia:
"Não quero entrar em detalhes, mas temos documentação completa [ing. full documents] sobre nós termos ficado encarregados [na Síria]."
Disse que ambos, o rei Abdullah da Arábia Saudita (que reinou até morrer em 2015) e os EUA, puseram o Qatar num papel de comando das operações clandestinas para fazer aquela guerra 'por procuração'.
Os comentários do ex-primeiro-ministro, por reveladores que sejam, tinham o objetivo principal de servir como defesa e desculpa para o apoio que o Qatar deu ao terrorismo, e como crítica aos EUA e à Arábia Saudita por, na essência, terem deixado o Qatar sozinho "para carregar a mudança", no que tenha a ver com a guerra (hoje perdida) contra Assad. Al-Thani explicou que o Qatar continuou a financiar terroristas armados na Síria, mesmo depois de outros países já terem interrompido o apoio em grande escala – motivo pelo qual está denunciando EUA e sauditas, que inicialmente "estavam conosco na mesma trincheira."
Em entrevista anterior à TV norte-americana, que passou quase sem ser noticiada, al-Thani já dissera a Charlie Rose, o qual lhe perguntou sobre acusações ao Qatar por apoiar o terrorismo: "Todos cometeram erros na Síria, inclusive nosso país." E disse que desde o começo da guerra na Síria "todos nós trabalhamos em duas salas de operações: uma na Jordânia, uma na Turquia."
Abaixo reproduzimos o trecho crucial da entrevista da 4ª-feira, com tradução [ing.] e legendas de @Walid970721. Zero Hedge revisou e validou a tradução. Como o tradutor original reconheceu e confirma, al-Thani não diz "lady" mas "presa" ["al-sayda"] –, no trecho em que fala de Assad e dos sírios estarem sendo "caçados" por outros países.
Adiante, a transcrição do trecho [ing., aqui retraduzido ao português]:
"Quando os eventos começaram, no início, na Síria, fui à Arábia Saudita e encontrei-me com o rei Abdullah. Fiz isso por expressas instruções de Sua Alteza o príncipe, meu pai. Ele [Abdullah] disse "estamos com você. Prossiga com esse plano e nós nos coordenaremos, mas vocês têm de se encarregar." Não quero entrar em detalhes, mas temos documentação completa [ing. full documents] sobre nós ficarmos encarregados [na Síria] e tudo que foi mandado [à Síria] foi também para a Turquia e foi feito em coordenação com as forças dos EUA e tudo foi distribuído via turcos e forças dos EUA. E nós e todos os demais estávamos envolvidos, o pessoal militar. Houve erros e apoiamos a facção errada (...). Talvez tenha havidoalgum relacionamento com Nusra, é possível, mas pessoalmente não sei sobre isso (...) Estávamos disputando a presa["al-sayda"] e agora a presa salvou-se, mas continuamos em guerra (...) e agora Bashar continua lá. Vocês [EUA e Arábia Saudita] estiveram conosco na mesma trincheira (...) Não tenho objeção alguma a alguém mudar de posição, se descobriu que estava errado. Mas pelo menos informe seu parceiro (...), que diga, por exemplo, deixem Bashar [al-Assad], ou façam isso ou aquilo. Mas a situação que foi criada não permitirá qualquer avanço no Conselho de Cooperação do Golfo, nem progresso algum em coisa nenhuma, se continuarmos a guerrear abertamente."
Como hoje já é bem sabido, a CIA esteve diretamente envolvida no comando dos esforços para 'mudar o regime' na Síria com parceiros do Golfo, como vazou e também já foi confirmado por documentos da inteligência dos EUA. O governo dos EUA sabia na hora e 'ao vivo' que todo o armamento avançado que o Golfo e o Ocidente estavam fornecendo estava chegando diretamente à al-Qaeda e ao ISIS, por mais que houvesse 'declarações' oficiais de que só rebeldes "moderados" estivessem sendo armados. Por exemplo, memorando da inteligência que vazou, de 2014, endereçado a Hillary Clinton, reconhecia o apoio de qataris e sauditas ao ISIS.
Naquele e-mail lia-se, sem qualquer ambiguidade e em termos muito diretos que:
"os governos de Qatar e Arábia Saudita estão fornecendo apoio clandestino, financeiro e logístico, ao ISIL e a outros grupos sunitas radicais na região."
Além disso, na véspera da entrevista do primeiro-ministro al-Thani, The Intercept divulgou um novo documento top-secret da Agência de Segurança Nacional dos EUA [ing. NSA] desenterrado dos arquivos de inteligência vazados e distribuídos por Edward Snowden, que mostra com espantosa clareza que a oposição armada na Síria estava sob comando direto de governos estrangeiros desde os primeiros anos de uma guerra que até agora já custou meio milhão de vidas.
O documento da Agência de Segurança Nacional dos EUA [ing. NSA] recém vazado confirma que um ataque de rebeldes armados em 2013 com foguetes terra-terra avançados lançados contra áreas civis de Damasco, inclusive sobre o Aeroporto Internacional de Damasco, foi diretamente armado e comandado pela Arábia Saudita, com pleno conhecimento prévio da inteligência dos EUA. Como o ex-primeiro-ministro do Qatar agora confirma, os dois governos, dos sauditas e dos EUA, naquele mesmo momento, mantinham especialistas em "salas de operações" com a tarefa de coordenar ataques criminosos como esse, contra o aeroporto de Damasco em 2013.
Já não resta qualquer dúvida sobre o que se passava, e menos dúvidas haverá doravante também sobre outros eventos, à medida que mais e mais documentação, tão válida, clara e precisa quanto terrível, continue e pingar, gota a gota, ao longo dos próximos meses e anos. No mínimo, a guerra diplomática que prossegue entre qataris e sauditas trará mais e mais informação, com os dois lados interessados em transferir responsabilidades por apoiarem terroristas. E como já se vê nessa recente entrevista divulgada pela TV do Qatar, os EUA não serão poupados nessa temporada, que apenas começa, de velhos aliados, agora em campos opostos, forçados a lavar sua roupa suja em plena praça.