Quantas páginas de livros nas bibliotecas do mundo inteiro apagaram e silenciaram o papel das mulheres na história? É um dado imensurável. Na maioria das vezes conseguimos encontrar biografias de grandes personalidades femininas onde o destaque principal é sua vida amorosa. Já as paixões sociais, agarradas a ferro e fogo por milhões de mulheres ao longo da história em nome da sobrevivência, mas também de um novo mundo, permanecem apagadas e escondidas. Querem que comecemos do zero.
"Impedir que as novas gerações conheçam a história de luta das antigas gerações é também uma forma de nos dividir. Não à toa, quando se trata das mulheres rebeldes, combativas, indomáveis, o esforço para apagá-las é ainda maior."
A classe dominante sabe o poder de transformação que pode ter a inspiração nas histórias subversivas da força das mulheres. Por isso, a segunda edição brasileira de Lutadoras – Histórias de mulheres que fizeram história é um grito feminino direto do motor da história: a luta de classes.
A nova publicação da Coleção Mulher das Edições ISKRA foi antecedida, nos últimos anos, por publicações de grande relevância no estudo teórico sobre a luta contra a opressão às mulheres. Com Pão e Rosas – Identidade de gênero e antagonismo de classe no capitalismo, a autora Andrea D’Atri entrelaça as questões relativas à opressão e à exploração ao longo da história, demonstrando que o capitalismo e o patriarcado se combinam de forma poderosa para manter a dominação de classe e todas as formas de opressão. Com A precarização tem rosto de mulher, abordamos as lutas operárias de trabalhadoras terceirizadas no Brasil na batalha contra o trabalho precário, o racismo e a superexploração capitalista. Dois temas fundamentais para compreender a luta das mulheres inserida na luta de classes.
Mas, afinal, quem são essas mulheres apagadas pela história? Em Lutadoras – Histórias de mulheres que fizeram história contamos a história daquelas pioneiras que abriram espaço a novas gerações de mulheres que nelas puderam se inspirar. No capítulo Pioneiras, falamos de Flora Tristán, uma das mulheres mais importantes para a história do socialismo e do feminismo. Flora se antecipou seis anos à potente ideia do Manifesto do Partido Comunista de Karl Marx e Friederich Engels, quando escreveu, em sua obra União Operária, sobre a necessidade da classe trabalhadora se unir, superando as fragmentações nacionais, lutando por construir uma organização única no mundo inteiro.
Ainda neste capítulo, falamos sobre a incendiária Louise Michel, combatente da Comuna de Paris, que, na sua cerimônia de graduação como professora, negou-se a jurar lealdade ao Império Napoleônico, o que lhe obrigou a fundar uma escola livre para exercer sua profissão. O jornal oficial da Comuna de Paris descreveu sua ação: "nas fileiras do batalhão 61, combatia uma mulher enérgica; matou vários militares e guardiões da ordem". Era Louise. Combatia nas trincheiras, mas também fazia poesia. Sobre a Comuna, profetizou: "Quando a multidão hoje muda, ruja como o oceano, disposta a morrer, a Comuna surgirá".
"Alguns dias antes de os operários franceses proclamarem a Comuna de Paris, nascia na Polônia Rosa Luxemburgo, mulher que viria a ser a maior de todas as dirigentes revolucionárias da história, a quem dedicaremos mais algumas linhas neste prólogo."
Rosa sem dúvida condensou a força das mulheres em lutas políticas de vida ou morte na social-democracia alemã contra a burocratização do partido. No capítulo Internacionalistas, resgatamos a sua história, peça fundamental no desenvolvimento de Clara Zetkin, que também compõe este capítulo, uma das mais emblemáticas figuras na organização das mulheres trabalhadoras da III Internacional. A amizade entre ambas era baseada em duríssimas críticas políticas que serviam como combustível para a superação do papel de cada uma no partido e na luta de classes. Esta segunda edição também conta com novo artigo sobre Sylvia Pankhurst, que quando pequena tomava chá com Louise Michel e foi uma sufragista que enfrentou sua própria mãe contra a linha conciliadora de importante ala do movimento feminista, defendendo claramente uma perspectiva de classe contra a guerra imperialista.
Mergulhamos, então, na América Latina profunda conhecendo a história de algumas Rebeldes, como anuncia o terceiro capítulo. Do começo da organização da classe operária chilena no século passado, uma operária tipógrafa de Valparaíso é expulsa pelo crime de falar em um ato do 1º de maio, recordando os operários de Chicago que lutavam pela redução da jornada de trabalho. Era Carmela Jeria, que fundou o primeiro jornal operário feminista no Chile, onde dizia: "deve, pois, a mulher formar parte na violenta luta entre capital e trabalho". No México da Revolução de 1910, das grandes greves de Rio Blanco e Cananea, surge Lucrecia Toriz, operária têxtil que encabeçou o combate à repressão patronal que resultou na morte de dezenas de operários.
Um pouco mais ao norte, vamos conhecer a história das Combativas, no quarto capítulo de Lutadoras – Histórias de mulheres que fizeram história. Nas lutas operárias nos Estados Unidos do começo do século XX, brilharam Marvel Scholl, Clara Dunne e Genora Johnson Dollinger. Na greve dos caminhoneiros de Minneapolis, em 1934, Marvel e Clara encabeçaram os comitês de apoio à greve enfrentando todo tipo de conservadorismo. Genora foi parte da ala esquerda do Partido Socialista americano, protagonista na grande greve da General Motors, onde uma das cláusulas apresentadas pelos trotskistas para participar do Sindicato era "ser respeitoso no trabalho e na ação em relação a qualquer mulher". Apelidada de "Joana D’Arc da classe operária", Genora se negou e declarou: "Não sou uma heroína, sou militante revolucionária".
"Nesta segunda edição, contamos a história de Lucy Parsons, nascida no Texas mas de origem mexicana e africana, atuando na causa dos operários de Chicago contra as extenuantes jornadas de trabalho e considerada pela polícia de Chicago mais perigosa que mil manifestantes."
Também contamos a história de Rosa Parks, a mulher que não levantou do banco de ônibus para os brancos, nome diretamente associado ao movimento pelos direitos civis após a II Guerra Mundial nos Estados Unidos e símbolo da luta negra em todo o mundo. Para ela era necessário "acabar com todas as formas de opressão contra os fracos e oprimidos".
O quinto capítulo nos brinda com a história das Vermelhas, mulheres que aos 101 anos da Revolução Russa precisam ser conhecidas pelas novas gerações. Contamos a história de Natalia Sedova, bolchevique que, ao lado de Leon Trotski, enfrentou toda a violência stalinista como parte da Oposição de Esquerda. Alexandra Kollontai, uma das principais dirigentes do Partido Bolchevique, cujo papel na organização das mulheres trabalhadoras em numerosas greves foi decisivo e que, com muita personalidade, divergia, polemizava e, quando necessário, ficava em minoria junto aos grandes dirigentes da Revolução como Lenin. Também contamos com novo artigo sobre Larissa Reisner, que foi comissária do Exército Vermelho e, segundo Trotski, "se elevou como um meteoro incendiário sobre o exército e a revolução".
"Ainda no capítulo Vermelhas, apresentamos aos leitores e leitoras a história de Chen Bilan, mostrando a grande personalidade que, da insurreição operária de Shangai ao exílio na Oposição de Esquerda, mostrou-se como "um dos melhores tipos de bolcheviques"."
ambém retratamos Mika Etchebéhère, nascida na Argentina, que combateu na Revolução Espanhola comandando milícias do Partido Operário de Unificação Marxista (POUM) contra a ditadura de Franco.
Chegando ao final deste nosso mergulho pela história das mulheres, vamos conhecer as Indomáveis. Nadehzda Joffe foi uma destas, sobrevivendo a 30 anos de prisão. Como dizia Leon Trotski: "Tudo o que se inclina diante dos fatos consumados é incapaz de preparar o futuro". Não era o caso de Nadehzda. Da Hungria, resgatamos, então, a história de Edith Bone, que durante a Revolução Russa tinha apenas 11 anos e nos anos 1950 vai sofrer a perseguição stalinista em dezenas de prisões. E, por fim, Patrícia Galvão, mais conhecida como Pagu, que despertou para a política junto ao PCB, terminando expulsa acusada de "trotskismo".
São muitas lutadoras, mas estas são apenas algumas inseridas na história da luta de classes, cujo fermento feminino sempre foi e será decisivo. A ideia de que os que mais sofrem com o velho são os que mais lutam pelo novo passa de forma decidida pela situação das mulheres negras em um país como o Brasil, onde o racismo é estrutural.
"É por isso que nesta edição de Lutadoras – Histórias de mulheres que fizeram história apresentamos um resgate de duas importantes rebeliões de escravos: a Revolta dos Malês e o Quilombo dos Palmares, onde destacamos a história de mulheres quilombolas como Dandara, Luiza Mahin e Aqualtune, que inspiram a história de luta do povo negro brasileiro."
Para fazer jus a uma edição brasileira deste livro, também apresentamos um recorte da organização feminina da classe operária no ascenso das décadas de 1970 e 1980 no Brasil, quando o gigante se levantou contra a ditadura e, apesar de suas direções, mostrou a força da classe. Neste processo, foram muitas as mulheres de Contagem a Osasco, de todo o ABC paulista, que nas comissões de fábricas e nos piquetes mostravam a sua força. Hoje, mais do que nunca, tirar lições deste processo é fundamental para reordenar nossos combates contra o golpismo e os capitalistas em uma perspectiva que não seja de conciliação de classes como a que apresenta o PT.
E para continuar falando de mulheres lutadoras, é preciso dizer que as autoras deste livro são militantes marxistas revolucionárias. Dedicam sua vida a diminuir a distância entre as experiências do passado e a nossa luta cotidiana. Condensamos isso tudo em lições da história, na construção de um partido revolucionário, porque enxergamos que a luta das mulheres é indissociável da luta de classes. Somente aos patrões e capitalistas interessa esta separação; a nós não.
É por isso que resgatar o papel revolucionário das mulheres na história também nos abre uma reflexão sobre a luta das mulheres hoje e o grande fenômeno que temos visto nos últimos anos, com o 8 de março fazendo a terra tremer em todo o mundo através de marchas massivas e greves nos locais de trabalho com as mulheres trabalhadoras à frente. O peso do patriarcado e a capacidade do capitalismo em se utilizar do machismo para melhorar seus mecanismos de dominação sempre coloca a luta das mulheres em uma encruzilhada. Da necessária constatação de que é fundamental lutar contra a opressão às mulheres à conclusão de que esta luta só será efetiva se for contra o Estado capitalista há décadas de controvérsias entre o movimento feminista.
O fato é que o capitalismo, que vive suas próprias crises, também busca formas de se apropriar e retirar o conteúdo subversivo e radical de nossas lutas, da nossa resistência ao longo da história. É o que vimos com parte do movimento feminista da conhecida segunda onda a partir das décadas de 1960 e 1970, que passaram da insubordinação à institucionalização, acompanhando o processo neoliberal e sua agenda que exaltava os novos sujeitos sociais: os movimentos, e não classe operária. Como já foi dito, a eles interessa nos dividir em sujeitos separados por gênero, raça, sexualidade ou em vários tipos de movimentos, aos quais podem conceder uma ou outra conquista fruto de nossa luta para, em seguida, retirá-las quando as condições lhes favorecerem.
E a cada ano a luta das mulheres ressurge, mas o debate de estratégias nem sempre é o centro. A serviço do quê isso está? De que comecemos do zero ou de que esta sociedade se mantenha como está com um capitalismo mais “feminista”, mais “antirracista” e LGBT.
"É possível que um sistema baseado na exploração de uma pequena classe de parasitas sobre a grande massa de trabalhadores assalariados do mundo inteiro atenda às demandas dos setores oprimidos? É o que tentam nos fazer crer."
Do ponto de vista ideológico, a ofensiva neoliberal, que significou uma derrota moral da classe trabalhadora cada vez mais fragmentada e com seus direitos atacados, e o que chamamos de restauração burguesa (quando predominou a visão stalinista de derrota da revolução a nível internacional) foram momentos que contribuíram para construir um espírito de época que exaltava o consumo e o individualismo, bem como uma espera passiva por ampliação de direitos, retirando qualquer papel revolucionário ou de sujeito social dos setores oprimidos e da própria classe trabalhadora.
É como se a nossa condição de vítimas da sociedade capitalista e das opressões que existem tivesse que, necessariamente, nos colocar em posição de impotência e resignação, onde a luta se converte em expectativa daquilo que o Estado capitalista poderia nos conceder, sempre esperando que façam algo por nós. Deturpa-se a ideia verdadeira de que para as mulheres tudo é duplamente mais difícil por conta da opressão para impor uma condição de subordinação na sua própria luta, o que pode beneficiar somente os capitalistas, que não querem que as mulheres sejam sujeito da história.
O fenômeno de luta das mulheres que percorre o mundo é eletrizante, com greves, piquetes e paralisações, assim como a força da luta LGBT e antirracista. Conduzir essas lutas a uma luta contra o Estado capitalista é uma questão estratégica.
"Por isso, queremos um feminismo para ecoar a voz das milhões de mulheres e meninas que compõem, ainda hoje, 70% da população pobre de todo o mundo e que são, justamente, as maiores vítimas da violência estatal. Para enfrentar esse Estado poderoso, precisamos da força das mulheres, da força da nossa classe."
Portanto, ao contrário do que eles querem, não somos vítimas impotentes; somos insurretas, insubordinadas como estas mulheres que conhecemos na história. Este é o sentido mais poderoso de Lutadoras – Histórias de mulheres que fizeram história: resgatar um feminismo incendiário, onde a opressão cotidiana é transformada em ódio de classe e combustível para o despertar de centenas e milhares de grandes personalidades femininas da história.
"Neste caminho, é Rosa Luxemburgo nosso maior exemplo. Porque sempre quis afetar as pessoas como uma trovoada, em suas próprias palavras. Uniu o grande papel de abraçar a causa dos oprimidos e explorados de todo o mundo com a fundamental tarefa de batalhar pelo caminho revolucionário neste processo, enfrentando todo tipo de revisão e capitulação."
Para isso, como mulher dirigente, defendia suas ideias polemizando com os grandes dirigentes internacionais e enfrentando todo tipo de preconceitos e dificuldades, mesmo dentro dos partidos de esquerda. Encarava essas situações como consequências de uma luta política encarniçada, na qual nunca abaixou a cabeça. É a maior prova de que, sem luta de ideias, sem luta política, mas também sem paixão, nada de grandioso pode ser feito na história. Foi por isso que Rosa Luxemburgo, com suas posições políticas inflamou corações e mentes.
É nessas mulheres socialistas e revolucionárias que a autora que vos escreve se inspira cotidianamente, bem como nos grandes dirigentes da história da classe operária internacional que mantiveram viva a necessidade de "abrir espaço às mulheres trabalhadoras". Essa inspiração é parte constitutiva da agrupação de mulheres Pão e Rosas, impulsionada pelo Movimento Revolucionário de Trabalhadores (MRT) e independentes, que em seu nome sintetiza a luta pelo comunismo, pelo pão e pelas rosas, pela vida plena. Da história destas mulheres podemos entender que temos um grande papel na história, que não aceitaremos o papel passivo que eles querem, não aceitaremos esvaziar a nossa luta de seu conteúdo radical e subversivo, revolucionário e ao lado dos trabalhadores. Abraçar a luta revolucionária, a luta pelo comunismo é certamente a única vida que vale a pena ser vivida nesta ordem social que é o capitalismo, que converteu o mundo em uma suja prisão. Então, falar sobre essas lutadoras é também um convite a cada trabalhadora e jovem estudante, a cada mulher que se aproxima das ideias do marxismo revolucionário a se tornar também uma lutadora pelo comunismo.
"Se da leitura deste livro se multiplicarem as forças femininas em defesa da classe operária e da revolução socialista, um grande objetivo desta publicação terá se cumprido."
Quando as fraquezas da vida cotidiana vierem, as dificuldades de ser mulher no capitalismo, ainda mais para a mulher negra e indígena, quando tudo isso vier, lembremos, das entranhas da Comuna de Paris, do grito de Louise Michel: "Cuidado com as mulheres quando se sentem enojadas de tudo o que as rodeia e se levantam contra o velho mundo. Nesse dia nascerá o novo mundo".
Diana Assunção
São Paulo, abril de 2018