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Diário Liberdade
Sexta, 13 Julho 2018 08:33 Última modificação em Sábado, 28 Julho 2018 01:43

Entrevista com o ministro da Defesa da Rússia, General Sergei Shoigu (1ª parte) Destaque

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País: Rússia / Direitos nacionais e imperialismo / Fonte: Il Giornale

[Tradução do Coletivo Vila Vudu] Alessandra Benignetti, entrevistadora (AB): Sr. Ministro, tensões entre Rússia e EUA estão aumentando e gerando preocupações: estamos no limiar de uma nova Guerra Fria?

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General Shoigu*: Frequentemente se ouve dos EUA que a crise nas relações bilaterais teria sido provocada por ações supostamente agressivas, da Rússia, na arena internacional. Mas estamos firmemente convencidos de que as tensões nas nossas relações foram artificialmente infladas dessa vez por aquelas elites norte-americanas  que creem que o mundo divide-se em uma parte 'norte-americana' e uma parte 'errada'.

Os EUA, em anos recentes, várias vezes quebraram acordos importantes, vigentes, que formavam a espinha dorsal da segurança global. Apesar do que foi prometido à liderança soviética, durante a reunificação da Alemanha, Washington iniciou a expansão da OTAN para o leste, diretamente rumo às nossas fronteiras.

Por mais de 25 anos os norte-americanos fizeram de tudo para nos enganar, insistindo em que nada prometeram, até que recentemente, arquivos da Agência de Segurança Nacional dos EUA, cujo período de sigilo obrigatório chegou ao fim, e onde se guardavam documentos daquele período, vieram a público. E o ocidente teve de reconhecer o que dizíamos, ali confirmado, literalmente, com as pessoas identificadas claramente.

Por causa da expansão da OTAN em direção ao Oriente, e com a inclusão na OTAN de países da Europa Oriental – Polônia, Hungria, a República Tcheca, Eslováquia e Romênia, o acordo assinado em 1990 entre a Organização do Tratado de Varsóvia e a OTAN, o chamado Tratado sobre Forças Armadas Convencionais na Europa, que limitava a presença de armamento em áreas de contato entre os dois blocos, perdeu de facto todo o significado, para a Rússia.

Em 2002, sob o pretexto de um "perigo" fictício de algum ataque de mísseis iranianos ou da Coreia do Norte, Washington retirou-se unilateralmente do Tratado dos Mísseis Antimísseis, e começou a instalar radares e armas antimísseis junto às nossas fronteiras.

Eu, como presidente da Sociedade Geográfica Russa, por muito tempo pensei em presentear os colegas norte-americanos com um globo terrestre, de modo que pudéssemos olhar ao mesmo tempo para o mesmo globo, enquanto eles nos explicassem por que os 'adversários dos EUA' designados por eles, estão localizados no Oriente Médio e Leste da Ásia, ao mesmo tempo em que todas as bases militares dos EUA estão distribuídas sobre as fronteiras com a Rússia. Por quê? Será que esperam que nós os defendamos?

Os EUA estão hoje se preparando para se retirar do Tratado para Forças Nucleares de Alcance Intermediário [ing. Intermediate-Range Nuclear Forces Treaty, INF]. A razão disso seriam supostas violações dos termos do tratado, que a Rússia teria cometido.

AB: Que tipo de violações?

General Shoigu: Só se ouvem boatos e acusações sem fundamento sempre contra nós. Mas não há fatos. Só conversas e 'declarações'.

Repetidas vezes temos dito, e publicamente, em todos os grandes fóruns internacionais, que quem viola diretamente o Tratado INFsão os EUA. Os EUA, não nós, implantaram um escudo de mísseis na Europa, o sistema norte-americano MK-41 de lançamento vertical, que pode ser usado para disparar mísseis cruzadores Tomahawk. O raio de destruição desses mísseis cobre quase toda a parte europeia do território russo.

Em 2007, na Conferência de Segurança de Munique, o presidente Vladimir Putin da Rússia lembrou aos líderes dos EUA e de outros países ocidentais que é dever deles respeitar os interesses nacionais da Rússia e trabalhar para construir relações iguais e abertas. Infelizmente poucos no ocidente quiseram ouvi-lo.

AB: Na sua avaliação, o que está acontecendo?

General Shoigu: A Rússia de hoje, sua recuperação, é vista não como recuperação de um aliado, mas como uma ameaça à dominação norte-americana. Estamos sendo acusados por planos agressivos contra o ocidente, quando o ocidente só cuida de implantar cada vez mais forças militares junto às nossas fronteiras.

Dentre muitos exemplos desses movimentos inamistosos, está uma decisão, tomada pela OTAN em junho, de estabelecer novos comandos responsáveis pela proteção da comunicação por mar e pelo deslocamento operacional de soldados dos EUA para a Europa. Há também aumento no contingente da OTAN nos estados do Báltico, na Romênia, Bulgária e Polônia, de 2.000 para 15 mil soldados, com possibilidade de rápido aumento para 60 mil soldados com blindados. A começar em 2020, a OTAN tem planos para manter 30 batalhões, 30 esquadrões aéreos e 30 naves de combate em estado de prontidão permanente, para atuarem em 30 dias nas fronteiras da Rússia.

Tudo isso acontece diretamente sobre as fronteiras ocidentais da Rússia. Ao mesmo tempo, os norte-americanos violam repetidas vezes a lei internacional, usando força militar em várias regiões do mundo, sob o pretexto de que estariam protegendo os próprios interesses.

Aconteceu em abril desse ano na Síria, quando, em território de estado livre e soberano, os EUA, com apoio de Grã-Bretanha e França efetuaram ataque massivo com mísseis. Ali aconteceu grave violação da lei internacional por ação de três membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU sob pretexto forjado, fictício. E não foi apenas uma vez: é uma clara tendência.

AB: Uma tendência?

General Shoigu: Sim, estamos falando da velha estratégia neocolonial que os EUA já testaram no Iraque e na Líbia. Consiste de apoiar qualquer grupo e qualquer ideologia, até as mais bárbaras, cuja atividade possa ser usada para enfraquecer governos legítimos. Depois de montar essa rede de apoio, os EUA encenam ataques nos quais dizem que teriam sido usadas armas de destruição em massa; ou organizam desastres humanitários. Nos estágios finais dessa estratégia, usam força militar para criar "caos administrável" – graças ao qual se criam condições para que as empresas transnacionais surrupiem qualquer valor que haja no país atacado e canalizá-lo para a economia norte-americana.

A Rússia, que prega cooperação igual e para mútuo benefício dos parceiros, dentro do conceito de mundo multipolar, sempre será obstáculo para que esse tipo de "estratégia" seja posta em prática.

AB: Há linhas vermelhas que não podem de modo algum ser transgredidas?

General Shoigu: Nesse sentido, nossa doutrina militar é muito clara, e a essência dela é prevenir qualquer conflito. Nossas abordagens oficiais, quanto ao uso de força militar, são muito claras e absolutamente transparentes e expostas.

Ser general de exército não me impede de crer firmemente que todas as questões podem e devem ser resolvidas sem recorrer a força militar.

Repetidas vezes convidei o comando do Pentágono para discutirmos os problemas que há no campo da segurança regional e global, inclusive a luta contra o terrorismo. Mas os norte-americanos não estão preparados para esse tipo de diálogo, embora, não tenho dúvidas, seja do mais alto interesse não só do povo na Rússia e nos EUA, mas também do povo de todo o mundo.

Nesse momento, só há um canal de comunicação entre nossos estados-maiores, que é usado em negociações, inclusive no nível dos comandantes de estado-maior, e orientado em primeiro lugar para impedir que as atividades militares de Rússia e EUA convertam-se em conflito militar entre nossas duas potências nucleares.

AB: Mas seu país está sendo acusado de levar a efeito "guerras híbridas" contra o ocidente.

General Shoigu: Na Rússia se diz que o ladrão grita 'pega o ladrão!' mais alto que os outros. A expressão "ações híbridas" aplica-se a várias formas de pressão usadas por um estado contra outro, mas sem uso aberto de força militar. Essas "guerras" existem e são conhecidas desde a antiguidade e muito ajudaram a Grã-Bretanha a derrotar o Império Otomano no começo do século passado. Quem não conhece as aventuras de Lawrence da Arábia?

Hoje, "guerras híbridas" incluem controlar a mídia, aplicar sanções econômicas, servir-se de hackers no ciberespaço, financiar e até armar agitadores locais em vários pontos do mundo e, também, treinamento e infiltração de unidades especiais e de especialistas treinados para praticar atos de terrorismo, sabotagem e para produzir eventos que desviem a atenção de um ou outro ponto, para outro.

Essa lista pode ser aumentada, mas um detalhe é o mais importante. Para a implementação bem-sucedida, hoje, de ações de guerra híbrida, é imprescindível que haja mídia global e onipresente; é preciso ter pleno controle sobre as tecnologias de informação e de telecomunicação, é preciso controlar os sistemas financeiros globais, e conhecer os métodos e meios para infiltrar agentes de forças especiais do país atacante, nos países atacados.

AB: Que outros países, além de EUA e Reino Unido têm esse tipo de capacidades?

General Shoigu: São métodos que foram testados com sucesso por Londres e Washington na invasão do Iraque em 1991, imediatamente depois do fim da "guerra fria".

É detalhe importante, porque essas tecnologias existiam quando havia a União Soviética e mundo bipolar, mas não havia, então, condições de oportunidade. E, vale lembrar, o presidente dos EUA no momento da Guerra do Golfo era ninguém menos que George H. W. Bush [pai], ex-diretor da CIA.

Desde os anos 1990s, esses métodos foram usados ativamente pelos EUA na Iugoslávia, que já não existe; na Líbia, na República da Chechênia [russa] e, mais recentemente, na Síria. Todos os sinais de "guerra híbrida" eram visíveis na Ucrânia antes da rebelião armada em fevereiro de 2014; os países europeus tiveram participação passiva naquelas "ações híbridas".

Hoje, todos fingem que esqueceram como, na véspera do golpe [em Kiev], três ministros de Relações Exteriores (de Alemanha, França e Polônia) garantiram pessoalmente ao legítimo presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovych, que a crise seria resolvida por via pacífica, se ele não impusesse estado de emergência e retirasse de Kiev todas as unidades da segurança nacional. Mas imediatamente depois de cumprida essa parte do acordo, militantes nacionalistas, armados e treinados com dinheiro norte-americano e europeu, encenaram um golpe de estado. E a Europa imediatamente reconheceu os golpistas como poder legítimo.

Imediatamente depois de uma tentativa malsucedida para repetir o mesmo roteiro também na Crimeia, começaram a aparecer na mídia britânica e na mídia norte-americana acusações de que a Rússia teria sido autora de ações híbridas.

AB: É mesmo?

General Shoigu: Aconteceu apenas que nós não demos aos nossos colegas de além-mar qualquer oportunidade para repetir a receita na Crimeia. Ali, bem diferente de qualquer golpe, foi realizado um plebiscito, no qual residentes votaram livremente e – importante lembrar –, na presença de centenas de representantes da mesma mídia norte-americana, votaram a favor de a Crimeia separar-se da Ucrânia e ser reintegrada à Rússia. Muito diferente disso, depois do desmembramento da Iugoslávia por efeito da intervenção da OTAN, o Kosovo foi declarado independente sem consulta à população e imediatamente reconhecido como nação independente por Washington e pela Europa, depois de simples votação parlamentar. A independência do Kosovo foi feita sem qualquer atenção à opinião dos sérvios que viviam no Kosovo e à Constituição da Iugoslávia.

AB: A questão da Síria será central durante a reunião entre os presidentes Vladimir Putin e Donald Trump. Qual sua avaliação da estratégia dos EUA no conflito sírio?

General Shoigu: Dado que políticos e especialistas norte-americanos também pedem que o governo dos EUA esclareça sua estratégia para a Síria, vê-se que os russos não somos os únicos que não a compreendemos.

Em anos recentes, enquanto prossegue essa guerra – que é ilegal, do ponto de vista da lei internacional e também nos termos da Constituição dos EUA –, as explicações oficiais para a presença na Síria do contingente militar norte-americano mudaram várias vezes.

Gostaria de lembrar que, inicialmente, tratava-se de derrotar o ISIL; depois, de impedir que o ISIL reemergisse; agora falam da necessidade de preservar a presença militar dos EUA na Síria, para conter uma suposta influência do Irã.

Assim sendo, é muito difícil resistir à impressão de que o principal objetivo dos EUA na Síria é impedir que a situação seja estabilizada, para assim prolongar o conflito e atacar a integridade territorial do país criando enclaves junto às fronteiras da Síria, não controlados pelo governo central.

Nas áreas controladas pelos EUA durante anos, os norte-americanos treinaram militantes que, hoje, estão em combate ativo contra o Exército Árabe Sírio e continuam a receber armas e munição.

Além disso, também é importante lembrar que durante a luta da coalizão internacional comandada pelos EUA contra o ISIL, o território controlado pelos terroristas só fez aumentar. Só continuaram a existir civilização e governo secular em uns poucos bolsões: em Damasco, na província de Latakia e em parte de Deir ez-Zor.

Ao mesmo tempo, por mais que em anos recentes só falem de objetivos 'nobres' e de 'boa' vontade, os EUA não aplicaram um centavo de ajuda que realmente desse assistência a civis sírios devastados por longos anos de guerra. O mesmo se aplica à ex-capital do ISIL, Raqqa, já livre de EUA e coalizão, e onde munição e morteiros deixados para trás pela "coalizão internacional", depois de bombardeios massivos, ainda matam residentes locais. Toda a semana dúzias de pessoas ainda são mortas, inclusive crianças.

Por outro lado, não há registro de nenhum incidente que envolva civis depois das operações das tropas sírias para libertar várias regiões e localidades. O serviço de remoção de minas foi completado, as pessoas receberam comida e materiais de construção necessários para retomar a vida de tempos de paz, o mais rapidamente possível.

Se há alguma base para as ações de nossos contrapartes norte-americanos na Síria, é contraditória demais para que se possa falar de "estratégia".

AB: Outro obstáculo à estabilização da Síria é a rivalidade entre Irã e Israel…

General Shoigu: O Irã, como a Turquia, é, historicamente, um dos principais atores na região, com papel chave na estabilização da situação na República Árabe Síria.

Como você sabe, o Irã, com Rússia e Turquia, é um dos avalistas do processo de Astana que visa a construir um acordo para pôr fim ao conflito na Síria.

Quanto às tensões entre Irã e Israel ou outros países, nossa posição é que estamos comprometidos a resolver possíveis diferenças e contradições mediante o diálogo, não mediante força militar e violações da lei internacional.

O uso de força militar, por qualquer dos campos ativos na Síria, levaria inevitavelmente a uma escalada das tensões em todo o Oriente Médio. Quanto a isso, estamos comprometidos com encontrar solução pacífica e diplomática para quaisquer diferenças que haja. E esperamos que os dois campos consigam mostrar moderação.

AB: Não lhe parece que a possibilidade de Damasco receber os sistemas S-300 representa um fator adicional de risco?

General Shoigu: Gostaria de deixar registrado que o sistema S-300 é um complexo de armas exclusivamente defensivas. Não vejo como poderia ameaça a segurança nacional de alguém.

Esse sistema de mísseis antiaéreos só pode ser ameaça para veículos aéreos que ataquem. Além do mais, a decisão de fornecer esse modelo de armas ao exército de qualquer estado estrangeiro é tomada a partir de uma manifestação de interesse, um pedido adequado, que até agora não recebemos.

É portanto prematuro falar sobre esse ponto, especificamente. A pedido de alguns de nossos parceiros ocidentais, e também de Israel, há alguns anos, ainda não entregamos esses complexos de armas à Síria. Hoje, depois de a Síria ter sido agredida por EUA, Grã-Bretanha e França – agressão que mostrou a necessidade, para os sírios, de contarem com defesa aérea moderna –, estamos prontos a reconsiderar toda a questão.

AB: Da guerra na Síria, à guerra comercial. Se o nível das relações com Washington chegou ao ponto mais baixo de todos os tempos, as relações com a China fortalecem-se cada dia mais... 

General Shoigu: Claro, a tensão nas relações internacionais contribuiu para fortalecer as relações sino-russas, que são baseadas em respeito e confiança mútuos. Rússia e China mantêm relações amistosas e estratégicas de longo prazo, e a cooperação está crescendo em muitas áreas, inclusive mediante agências militares, o que atende a interesses dos dois estados. [Continua]

Sergey Kuzhugetovich Shoigu, 62 anos, é general de Exército e desde 2012 é ministro da Defesa da Rússia. É nascido na remota República da Tuva, na Sibéria, cuja população é praticante de um xamanismo animista e do budismo tibetano – o que várias vezes gerou comentários venenosos no 'ocidente'.

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