Recentemente, o secretário de Estado assistente dos EUA para Europa e Eurásia, Wess Mitchell, em depoimento no Senado revelou tolamente as verdadeiras razões das atuais campanhas e sanções de Washington e Londres contra a Rússia. Nada tiveram a ver com alegações fake [forjadas] de suposta intervenção em eleições nos EUA; nada tiveram a ver tampouco com o envenenamento fake [forjado] dos russos Skripals. As causas são mais fundamentais e nos levam a um momento antes da 1ª Guerra Mundial, há mais de um século.
Em depoimento à Comissão de Relações Exteriores do Senado, dia 21 de agosto, Wess Mitchell – sucessor de Victoria Nuland, apresentou relato extraordinariamente claro e verificável da estratégia geopolítica dos EUA para a Rússia. Parece que foi um pouco claro DEMAIS, além do que 'o poder' nos EUA aprecia, porque o depoimento original foi rapidamente substituído, no website do Departamento de Estado, por versão devidamente 'desinfetada'.
Censurado!
Na fala de abertura diante dos membros da Comissão do Senado, Mitchell declarou:
"O ponto de partida da Estratégia de Segurança Nacional é o reconhecimento de que os EUA entraram em período de competição entre grandes potências, e que as antigas políticas dos EUA nem dão conta satisfatoriamente do escopo dessa tendência emergente, nem estão adequadamente equipadas para terem sucesso na competição."
E continuou com a seguinte extraordinária confissão:
"Ao contrário dos pressupostos otimistas de governos anteriores, Rússia e China são concorrentes sérios que estão construindo o equipamento material e ideológico com o qual contestar a primazia e a liderança dos EUA no século 21. Permanece entre os mais altos interesses da segurança nacional dos EUA impedir que potências hostis dominem a massa terrestre eurasiana. O objetivo central da política exterior do governo é preparar nossa nação para confrontar esse desafio mediante o fortalecimento dos fundamentos militares, econômicos e políticos dopoder norte-americano."
Na versão depois desinfetada pelo Departamento de Estado, o trecho original "Permanece entre os mais altos interesses da segurança nacional dos EUA impedir que potências hostis dominem a massa terrestre eurasiana"; e a frase "O objetivo central da política exterior do governo é preparar nossa nação para confrontar esse desafio mediante o fortalecimento dos fundamentos militares, econômicos e políticos do poder norte-americano" foram misteriosamente apagados.
Mas, porque foi depoimento formal ao Senado, a versão no Senado permaneceu inalterada (ou, pelo menos, lá estava, inalterada, dia 7/9/2018). O Departamento de Estado deixou-se apanhar com a mão na cumbuca.
Se paramos para refletir sobre o significado por trás das palavras de Wess Mitchell, é nu e cru totalmente ilegal pelos termos da Carta da ONU, embora, sim, Washington atualmente pareça ter esquecido completamente aquele documento solene. Mitchell diz que a prioridade da segurança nacional dos EUA é "impedir que potências hostis dominem a massa terrestre eurasiana." Está falando, bem claramente, de potências hostis aos esforços de Washington e da OTAN para dominar a Eurásia, incansáveis desde o colapso da União Soviética, há mais de um quarto de século.
Mas, calma! Antes, Mitchell cita duas potências dominantes que, combinadas, diz ele, são o atual principal inimigo do controle global pelos EUA. Mitchell diz claramente que "Rússia e China são concorrentes sérios que estão construindo o equipamento material e ideológico com o qual contestar a primazia e a liderança dos EUA". Mas... os EUA controlarem a Eurásia significa então os EUA controlarem Rússia, China e arredores. "Eurásia" é a terra deles.
A fala de Wess Mitchell no Senado é uma espécie de reformatação obscena da Doutrina Monroe do Século 19 norte-americano: a Eurásia é nossa; e "potências hostis" como China ou Rússia que tentem interferir dentro do espaço soberano delas tornam-se, por isso, o "inimigo" de facto. Daí a formulação "Rússia e China são concorrentes sérios que estão construindo o equipamento material e ideológico". Deve-se talvez ver aí uma suposta justificativa para a política deWashington, de preparar resposta militar? As duas nações estão em movimento cheio de energia, apesar da incansável guerra econômica que o ocidente faz contra ambas, na direção de construírem a própria infraestrutura econômica independente de qualquer controle pela OTAN. É compreensível. Mas Mitchell confessou, pode-se dizer, que haveria aí, aos olhos de Washington, um Casus Belli [motivo para guerra].
Para compreender a extensão da leviandade geoestratégica que o secretário de Estado assistente para Europa e Eurásia dos EUA cometeu, com sua sentença tola e descuidada, e por que o Departamento de Estado teve de correr para apagar aquelas frases, é útil uma rápida passada de olhos pela doutrina geopolítica anglo-norte-americana. Aqui, é essencial discutir a visão de mundo do padrinho da geopolítica, o geógrafo britânico Sir Halford Mackinder. Em 1904, em discurso perante a Royal Geographical Society em Londres, Mackinder, firme defensor do Império, apresentou o que, para muitos é um dos documentos mais influentes na política exterior mundial, dos passados 200 últimos anos, desde a Batalha de Waterloo. A palestra, bem curta, foi intitulada "O pivô geográfico da história" [ing. "The Geographical Pivot of History"].
Rússia e pivô eurasiano
Mackinder dividiu o mundo entre duas potências geográficas primárias: uma potência do Mar e uma potência da Terra. Do lado dominante estava o que chamou de "anel de bases" unindo as potências marítimas Grã-Bretanha, EUA, Canadá, África do Sul, Austrália e Japão, dominando os mares do mundo e o poder comercial. Esse anel de potências dominantes sobre os mares era inalcançável por qualquer ameaça que viesse das potências terrestres da Eurásia, ou "Euro-Ásia" como foi denominado o vasto continente. Adiante, Mackinder observou que, se o Império Russo conseguisse expandir-se sobre as terras da Eurásia e novamente obter acesso aos vastos recursos daquela área, para construir uma frota (naval), "o império do mundo apareceria à vista [para os russos]". Mackinder acrescentou que "Pode acontecer, se a Alemanha vier a se aliar à Rússia."
Desde aquela conferência profética de Mackinder, em 1904, em Londres, o mundo conheceu duas guerras mundiais, dirigidas basicamente ao objetivo de quebrar a nação alemã e a ameaça geopolítica que representaria contra a dominação anglo-norte-americana global; e dirigidas também à meta de destruir qualquer possibilidade de algum dia vir a surgir, por via pacífica, uma Eurásia russa-alemã que, na visão de Mackinder e de estrategistas geopolíticos britânicos, passaria a buscar o "império mundial".
As duas guerras mundiais conseguiram efetivamente sabotar o projeto de "cobrir toda a Eurásia com ferrovias". Até, claro, 2013, quando (1) a China pela primeira vez falou de cobrir a Eurásia com uma rede de ferrovias para trens de alta velocidade e correspondente infraestrutura, incluindo oleogasodutos para transporte de energia e portos de águas profundas; e (2) a Rússia uniu-se ao esforço dos chineses.
O golpe de estado orquestrado por Washington na Ucrânia, em fevereiro de 2014 teve o objetivo explícito de cavar uma fenda profunda e sangrenta entre Rússia e Alemanha. Naquele momento, a Ucrânia era o principal gasoduto de abastecimento que ligava o parque industrial alemão e o gás russo. As exportações alemãs, todas, de ferramentas a automóveis, ajudavam a construir a economia russa então em rápida recuperação, e estavam alterando o equilíbrio geoestratégico de poder – a favor de uma Eurásia centrada em Alemanha-Rússia, e em detrimento de Washington.
Numa entrevista em janeiro de 2015 depois do que se considera "o mais escandaloso golpe na história" – o golpe dos EUA na Ucrânia –, o fundador de Stratfor, George Friedman, estudioso das ideias de Mackinder, declarou que "a aliança potencialmente mais perigosa, da perspectiva dos EUA, seria uma aliança entre Rússia e Alemanha. Seria uma aliança da tecnologia e do capital alemães, com os recursos humanos e naturais da Rússia."
Medidas desesperadas
Nessa altura, Washington está bastante desesperada e tenta por todos os modos meter novamente dentro da garrafa o gênio que o tresloucado golpe de estado na Ucrânia, em 2014, deixou que escapasse. Aquele golpe forçou a Rússia a tratar ainda mais seriamente suas alianças estratégicas potenciais na Eurásia; catalisou a cooperação Rússia-China hoje florescente; e também catalisou o engajamento dos russos com seus estados vizinhos eurasianos chaves, já reunidos na Organização de Cooperação de Xangai.
A antecessora de Wess Mitchell no cargo, Victoria Nuland, imortalizada pela húbris e pela arrogância, foi gravada 'informando' ao embaixador dos EUA em Kiev que, para os EUA, "Foda-se a União Europeia", com o que fez sua fama na Eurásia. Com isso, Nuland expôs, no sentido de "entregou", todo o jogo de Washington. Não se trata de parceria diplomática inspirada em princípios. Tudo só tem a ver com o império e o poder.
Agora, é a vez de Wess Mitchell admitir que a política estratégica dos EUA é "impedir que a Eurásia seja dominada por potências hostis". Foi como 'informar' a Rússia e China – se ainda lhes restasse qualquer dúvida – que a guerra só tem a ver com uma disputa geopolítica de vida e morte, para resolver quem dominará a Eurásia: se seus cidadãos legítimos que lá habitam, girando em torno de China e Rússia; ou de algum eixo imperialista anglo-norte-americano que já esteve ativo por trás de duas guerras mundiais durante todo o século 20.
Tudo isso, porque Obama & Hillary erraram a mão no tal "reset" russo, concebido para arrastar a Rússia para a rede da OTAN. Por causa desses erros, Washington autocondenou-se a uma guerra em dois fronts – contra China e contra Rússia – que os EUA não estão preparados para vencer.