Numa revelação sensacional citando "fontes de inteligência", o antigo ministro australiano dos Negócios Estrangeiros Alexander Downer escreveu no jornal Financial Review de domingo que o jornalista saudita Jamal Khashoggi, o qual foi assassinado dia 2 de Outubro na Turquia, estava longe de ser um "liberal de bom coração" mas era, sim, um experiente agente de inteligência e um simpatizante da Fraternidade Muçulmana que trabalhava pela mudança de regime no seu país.
Downer escreveu: "Para aumentar a complexidade da narrativa, a Fraternidade é apoiada pelo presidente turco Recep Tayyp Erdogan e os qataris... De modo que Jamal Khashoggi – um antigo agente da inteligência saudita, um homem que estava próximo da Fraternidade Muçulmana (FM) e era um oponente jurado do programa de reforma de MBS (o príncipe herdeiro saudita) – estava em vias de estabelecer um centro para promover a ideologia da FM. Ele estava a montá-lo na Turquia com dinheiro do Qatar. Os sauditas queriam travá-lo. Em Setembro ofereceram-lhe US$9 milhões para retornar à Arábia Saudita e viver ali livremente. Eles queriam-no fora do jogo. Khashoggi recusou e o resto você sabe. Os sauditas mataram-no".
O que até o momento estava no âmago da dedução intuitiva torna-se agora facto real. A revelação de Downer transforma completamente a narrativa acerca da morte de Khashoggi e está destinada a ter enormes consequências.
Assumindo que as "fontes de inteligência" de Downer fossem australianas, deve ser considerado que a Austrália é membro da altamente privilegiada aliança de inteligência de cinco países, a Five Eyes, juntamente com os EUA, Canadá, Reino Unido e Nova Zelândia. As agências Five Eyes são obrigadas a partilhar espontaneamente toda a inteligência, incluindo inteligência primária (e mesmo técnicas relativas à aquisição de tal inteligência).
Basta dizer que está fora de questão que a inteligência do projeto da Fraternidade Muçulmana para a mudança de regime na Arábia Saudita envolvendo Khashoggi, Turquia e Qatar também não estivesse disponível para a CIA e o MI6. A Arábia Saudita é uma aliada chave dos EUA e, no entanto, iremos nós acreditar que a CIA e o MI6 simplesmente ficaram inertes diante de inteligência tão sensível?
Isto equivale a dizer que explode uma proposta irresistível: a CIA e o MI6 estavam a apoiar de modo encoberto o projecto de Khashoggi para a mudança de regime na Arábia Saudita.
Na verdade, é óbvio que os comentadores dos media americanos conhecidos por terem laços estreitos com o establishment da inteligência dos EUA ficaram raivosos logo que transpirou na noite de 2 de Outubro que Khashoggi entrara no Consulado Saudita em Istambul no princípio do dia e deixara de sair do edifício.
A histeria desencadeada desde o primeiro dia acerca do incidente, de uma forma tão sustentada, é sem precedentes. O príncipe saudita Turki al-Faisal – filho de um antigo rei e primo do príncipe herdeiro, ex-chefe de inteligência saudita e embaixador tanto nos Estados Unidos como na Grã-Bretanha, bem como associado de Khashoggi – recentemente perguntou com indignação por que tinha de haver tamanho barulho.
Turki, com sarcasmo mordaz, disse que "pessoas com telhados de vidro não deveria lançar pedras. Países que torturaram e encarceram pessoas inocentes" e "iniciaram uma guerra que matou muitos milhares ... baseada em informação falsificada, deveriam ser humildes ao olhar para outros", disse ele, numa clara referência à política de contra-terrorismo e à invasão do Iraque.
A conclusão é que a raiva explosiva e a fúria do "Estado Profundo" na América quanto à morte de Khashoggi só podem ser compreendidas com a informação de Downer – a saber, que Khashoggi era um "activo" inestimável do establishment de inteligência dos EUA e os sauditas simplesmente o eliminaram.
Agora, se o "Estado Profundo" estava a promover Khashoggi, o presidente Donald Trump ou não sabia disso ou foi deliberadamente mantido no escuro. A questão é que até hoje Trump parece estar em isolamento esplêndido na sua aversão a punir o regime saudita pelo assassinato de Khashoggi.
Trump é abertamente evasivo, embora neste fim de semana o presidente turco, Erdogan, tenha publicado um artigo no jornal Washington Post alegando que a liderança saudita "nos mais altos níveis" estava envolvida no assassinato de Khashoggi.
Naturalmente, não é a primeira vez na história política dos EUA que o "Estado Profundo" actuou por trás, nas costas de um presidente em exercício. Contudo, Trump é diferente de Dwight Eisenhower ou John Kennedy. E ele acredita firmemente que nada deveria ser feito para desestabilizar a Arábia Saudita.
Nestas circunstâncias, o dado de inteligência de Downer funcionará muito bem para Trump se ele quiser sacudir e afastar a pressão do "Estado Profundo", o qual tem tentado actos de força contra o regime saudita.
Juntamente com o facto de que o lobby israelense também se intrometeu no caso Khashoggi argumentando contra qualquer acção dos EUA contra o príncipe herdeiro saudita Mohammed bin Salman, amigo de Israel. Assim, as probabilidades são fortemente favoráveis à política de Trump de "não ouvir o mal, não ver o mal, não falar do mal" no regime saudita.
Contudo, o establishment de inteligência dos EUA está a sofrer com a humilhação infligida pelo regime saudita e é improvável que recue envergonhado. A alta probabilidade é que ele travará guerra por outros meios – até que a democracia islâmica prevaleça na Arábia Saudita.
Bruce Riedel, perito em Médio Oriente da Brookings Institution, que actuou durante três décadas na CIA, disse na semana passada à revista New Yorker: Não há saída política (no caso Khashoggi), excepto através da violência". É uma observação sinistra por parte de alguém que foi operacional de inteligência durante muitos anos e que conhece a Arábia Saudita como a palma da mão.
A reportagem do New Yorker, de Dexter Filkins, vencedor do Prêmio Pulitzer e aclamado autor com longa experiência em reportagens em pontos quentes do Médio Oriente, conclui: "Mesmo se – especialmente se – MBS se ativer à sua posição, parece provável que a família real saudita e a Arábia Saudita em geral estejam a entrar num período perigoso".