Para o conseguir, contribuiu para a campanha eleitoral de Donald Trump, investiu largos milhões de dólares na economia militar dos EUA e até adaptou aos interesses de Washington o fornecimento de petróleo da OPEP ao mercado mundial. Achará que o presidente dos EUA tem um “preço” ou é homem de mão seu?
Mas, por que é que o principal país islâmico-sunita do mundo, a Indonésia, mantém boas relações com a República Islâmica xiita do Irão enquanto o RAS sonha com transformá-lo num monte de cinzas?
1. Passam quatorze séculos sobre a invasão dos árabes procedentes das actuais terras da Arábia Saudita a um império persa exausto e decadente. Nem as bolas de cristal do seu rei dos reis o avisaram do devastador ataque que destruiria o único espaço em torno do Irão que este não conquistara (por ser deserto), nem do Ouro Negro que se escondia debaixo das suas areias. Durante os dois séculos de domínio árabe sobre o Irão, ocorreram numerosos movimentos populares e políticos para expulsar os ocupantes do poder. Embora o tenham conseguido, e um Irão cristão, mitríaco, budista e zoroástrico tenha sido islamizado, ele recusou a arabizar-se, mantendo a sua língua, a sua cultura e as suas tradições milenares, os derrotados atreveram-se a iranizar o islão: criaram o xiismo, marcada por alguns elementos da mitologia persa, como os 12 apóstolos de Ormuz e a vinda de um Salvador quando o mundo chegar ao fim. Assim, em 1501, o xiismo sai da clandestinidade para se converter na religião oficial do Estado, derrubando o sunismo (”tradicionalismo”). Será por decreto-lei das mãos do guerreiro azerbaijão Ismael I (1487-1524), fundador da dinastia Safávidas «Os Suflos».
O objectivo de Ismael I, filho da princesa Marta (neta da grega Teodora), ao fundir duas identidades, - a “iraniedade” e o “xiismo” - foi levantar uma rígida fronteira com o principal inimigo do Irão: os “turcos-sunitas “do Império Otomano (os árabes encontravam-se sob domínio turco). Ser iraniano-xiita era e é uma identidade única, que não se encontra em outro Estado. O desejo de derrotar os otomanos foi tal que o monarca Shah Abbas I Safavidas (1571 - 1629) procurou aliança na Europa cristã: enviou uma delegação à corte de Filipe III, para negociar um possível pacto. A viagem teve uma curiosa anedota: um dos membros da comitiva, Uruch Beg, apelidado de “Don Juan da Pérsia” foi assassinado em Valladolid, por razões desconhecidas.
Eis outro dado acerca de até que ponto a religião é um instrumento de poder, e os povos não escolhem o seu credo: em 1736, Nader Shah (1688 -1747), o rei do Irão suspendeu o xiismo como religião oficial do Estado, e declarou-o além disso uma escola mais do sunismo; pretendia pacificar as relações com o vizinho otomano, embora tivesse que recuar, devido à resistência do alto clero xiita, que não estava disposto a sacrificar o seu estatuto e os seus interesses mesmo por uma causa suprema.
A batalha entre essas duas identidades incompatíveis teve sua máxima manifestação durante o reinado de Reza Pahlavi (1925-1941). O seu golpe de Estado coincide com o início da formação da RAS. A ditadura Pan-Iranista Pahlavi é modernizadora, sem-laica e anti-árabe, e no centro das suas reformas capitalistas está uma visceral luta contra a casta clerical, considerada na milenar literatura persa de símbolo de corrupção moral, hipocrisia e prepotência. Os castigos cruéis deste rei aos opositores - sobretudo os comunistas e intelectuais progressistas – atingiram também os clérigos islâmicos: são submetidos a “khal-e lebas” ( “despojados da sotaina”) e ser-lhes-á cortada em público a barba e o bigode (símbolos de masculinidade). Aquele rei desmantelou os tribunais religiosos, reformou o Lei de Família, abriu universidades, promoveu o cinema, teatro, música, embora a joia da sua coroa tenha sido proibir em 1935 o véu como passo decisivo da transição social da Idade Média ao século XX, permitindo que as mulheres entrassem no mercado de trabalho nos centros académicos, artísticos e científicos. Mudar o nome de Pérsia para o de Irão, “a Terra dos Arianos”, na Sociedade das Nações foi a culminação de seu desejo de recuperar a “grandeza” do Irão pré-islâmico.
Na RAS, o processo político é o inverso: nasce como resultado da aliança entre a tribo Al Saud e a escola fundamentalista wahhabi. Não haverá um “estado” com as suas instituições, mas uma empresa privada pertencente a uma família de recorte feudal, cuja ambição não irá além de aumentar o peso do ouro das suas propriedades.
Nesta época, as relações entre os dois países são tensas. Os ataques aos peregrinos iranianos em Meca pelos sauditas (que consideram o xiismo uma heresia) e até mesmo a decapitação de um deles, farão com que Teerão encerre a embaixada da Arábia em Teerão e proíba os crentes iranianos de viajar para a cidade santa.
O protagonismo dos EUA na região, após a Segunda Guerra Mundial, forçará Mohammad Reza Pahlavi e o rei Faisal a aproximarem-se: estarão unidos pela luta anticomunista e criarão instituições islâmicas globais, como a Organização do Congresso Mundial Islâmico, a Liga Mundial dos Muçulmanos e da Organização da Conferência Islâmica. O número de mesquitas no Irão dispara na década de 1970 como uma barreira para conter o aumento da simpatia dos jovens em relação aos postulados da esquerda.
Richard Nixon converterá o Irão e o RAS em “Twin Pillars” (Duplo Pilar) dos interesses dos EUA na região mais rica em petróleo do mundo. O Xá estará encarregado de fazer de “Gendarme do Golfo Pérsico”: assim recupera para o Irão as três ilhas da Grande Tomb, Pequeno Tomb e Abu Musa, que tinham sido ocupadas pela Grã-Bretanha no século XIX e cedeu aos Emiratos Árabes em 1968, e a pedido dos britânicos enviará em 1973 o exército iraniano para Omã, para esmagar a guerrilha marxistas de Dhofar, que sonhava com um segundo país árabe socialista (o primeiro foi o Iémen do Sul). A amizade dos sultões de Omã com o Irão perdura até hoje.
Impacto múltiplo sobre Riade da queda do Xá
2. A queda do “Último Imperador” do Irão em 1979, e especialmente o fim da monarquia milenar mais poderosa da região, provocará pânico em Riyadh, que teme o seu efeito borboleta. Na região, as repúblicas iam ganhando terreno às monarquias caducas: antes do Irão, Afeganistão (1973), Líbia (1969), Iémen (1962), Iraque (1958) e Egipto (1952) derrubaram os seus reis.
3. Que o sistema político do Irão, ao contrário de outras repúblicas semisseculares do “mundo islâmico”, se proclamasse “islâmico” colocava um novo desafio a Riade: pela primeira vez terá um competidor. O aiatola Khomeini não era nenhum “republicano”. A sua proposta inicial era estabelecer um okumat-e eslami “Estado Islâmico”, um califado religioso semelhante ao governo de Maomé. Foi a pressão de milhões de iranianos que exigiam uma república, para poder eleger e mudar o chefe de Estado, que forçou o aiatola a colocar o adjectivo de “república” uma criatura sem precedentes na história: um califado dirigido por um clérigo todo poderoso e não eleito que gerirá Welayat-e Faghih, a “tutela do jurista islâmico”, com capacidade legal para suspender o parlamento e o presidente “eleito” (que deve ser do sexo masculino, xiita, e fiel ao Tutor) e num sistema com base na Sharia xiita, em que os habitantes do país terão direitos diferentes em resultado do seu sexo, nacionalidade, religião e fidelidade ao “Tutor” que, por razões desconhecidas, é apelidado “Líder espiritual” pela imprensa ocidental.
4. Que Khomeini apresentasse o novo estado como uma república “islâmica”; mas não “xiita” e acusasse os sauditas de “adulterar o Islão”, de serem “peões de Israel e dos EUA”, “infiéis” ou “corruptos e criminosos”, arrebatou o monopólio que os Saud reivindicavam sobre os “muçulmanos Sunitas “do mundo, que são cerca de 80% da comunidade.
5. Uma comparação rápida entre o RAS e a RI transmitia a ideia de que o Islão iraniano permite a arte, eleições, ou certas liberdades para as mulheres, sem ter em conta a história do próprio país (que teve até ministras antes da RI), apresentando a teocracia saudita como um sistema menos desenvolvido do que o xiita. Sendo o Irão um país mais avançado do que o RAS, os seus fundamentalistas também o são.
6. A carga “social” da revolução iraniana, recolhida por Khomeini que inicialmente, e sob a grande influência da esquerda iraniana, prometeu justiça aos “deserdados,” introduzindo o factor “luta de classes” na comunidade religiosa, que costuma dar prioridade à fé do crente em função da sua conta bancária. Pelo caminho, descobrir-se-á que o aiatola se referia à “igualdade dos muçulmanos perante Deus”, insistindo em que “a propriedade é sagrada no Islão”; e para dissipar dúvidas, em resposta aos trabalhadores que pediam uma vida decente, sentenciou: “preocupar-se com o estômago (ou seja, com a economia) é coisa de animais”. No final, não houve teologia xiita da libertação, confirmando o princípio de que a justiça social só é possível em um sistema socialista de produção e distribuição justa dos recursos, e apenas sob a direcção das forças de esquerda.
7. O aumento da influência da RI na região colocará em xeque os sauditas, que além disso têm fiéis ao xiismo no seu próprio país, e que ainda por cima habitam a região mais petrolífera do país.
8. A intenção da RI de desenvolver um programa nuclear. Em 2002, o Conselho de Segurança da ONU impõe duras sanções contra o Irão.
A partir da RI, as batalhas na região, que tinham matriz nacional (árabe-israelita, iraniano-árabe etc.), passarão pela primeira por linhas religiosas xiitas-sunitas, dividindo ainda mais os trabalhadores da região face aos seus inimigos. A Palestina foi a primeira vítima dessa nova situação. A Organização para a Libertação da Palestina perderá sua força: além de lutar contra a ocupação israelita tem de se proteger dos ataques de grupos religiosos patrocinados pela RI e pelo RAS.
A resposta de Riadh ao desafio da RI
• Financiar a guerra de Saddam Hussein contra o Irão entre 1980-1988.
• Fundar o Conselho de Cooperação do Golfo em 1981 como sistema de segurança “anti-xiita” e promover com os EUA uma “NATO sunita”.
• Consolidar seu controlo sobre o preço do petróleo e a OPEP.
• Impedir, juntamente com a Turquia e Israel, que no Iraque os iranianos pudessem aproveitar o “erro” de Bush de implementar um governo xiita depois de derrubar o sunita Saddam Hussein. É a primeira vez que o Irão obtém uma influência de envergadura num país árabe.
• Enviar milhares de “jihadistas” para a Síria, para derrubar Bashar al-Assad, o único aliado da RI na região.
• Planear em 2009 o desenvolvimento de um programa nuclear, enquanto “ajuda” o Paquistão a manter a sua bomba atómica.
• Pedir aos governos de Bush e Obama que bombardeiem o Irão.
• Patrocinar a campanha eleitoral de Trump em troca de que este rompa o acordo nuclear dos EUA assinado em 2015, apesar de beneficiar a Arábia (e Israel), já que o levantamento das sanções económicas ao Irão foi o último golpe nas esperanças dos sauditas numa ação bélica de Washington contra o Irão. O acordo permitia que Teerã normalizasse seu relacionamento com o mundo, aumentasse os seus mercados e também a sua área de influência em detrimento dos seus concorrentes regionais, justamente quando a Arábia sofria um déficit orçamentário de 87.000 milhões de dólares e tomava em consideração vender a ARAMCO, a sua empresa estatal. de petróleo e gás.
Segundo o FMI, o país árabe pode ficar sem activos financeiros em poucos anos. Para Riyadh, que se converteu no primeiro comprador de armas no mundo, era urgente fazer desaparecer o Irão enquanto potência. E para isso começou a pagar milhões de euros à imprensa e ao “Google” para apagar o adjectivo “Pérsico” ao golfo com esse nome desde antes do aparecimento da Arábia, quando a Grécia antiga o chamava de “Limen Persikos”. Daí “a Guerra do Golfo”, de um golfo sem nome e localização geográfica.
E estas não são as únicas ameaças de que Riad se dá conta:
• Os extremistas sunitas acusam-no de ser pouco islâmico permitir que nas terras sagradas do Islão, por exemplo, piscinas mistas na base militar dos EUA.
• Os sectores liberais “sunitas” – como o jornalista Jamal Khashoggi, as mulheres feministas e jovens seculares, como blogger Raif Badawi ou o poeta palestiniano Ashraf Fayadh, acusados de apostasia.
• E os próprios EUA, que ameaçaram eliminá-la em duas semanas.
Passa um século sobre o Tratado Sykes-Picote, que repartiu o Médio Oriente entre as superpotências da época, França e Grã-Bretanha. Os EUA procuram agora uma nova arquitectura geopolítica que garanta os seus interesses de longo prazo nesta estratégica região do mundo, e a Arábia Saudita não é mais do que uma ferramenta nas suas mãos para executar esse projeto.
Este conflito entre as duas teocracias ocorre no Estreito de Ormuz, e no solo de países terceiros como Iraque, Síria, Líbano e Afeganistão: trata-se de um jogo de soma zero, e não apenas devido à incompatibilidade dos seus interesses, mas também pelo seu olhar metafísico que distorce a realidade que os rodeia.