Contava como a águia, o urso e o dragão, no início do século XXI, tinham tirado as suas luvas (de pele) e se envolveram no que acabou por ser a Guerra Fria 2.0.
Quando nos aproximamos do fim da segunda década deste século já incandescente, talvez seja proveitoso atualizar aquela fábula. Com o devido respeito a Jean de la Fontaine , desculpem-me enquanto volto a beijar o céu [1] (deserto).
Longe vão os dias em que um urso frustrado se ofereceu várias vezes para cooperar com a águia e os seus lacaios numa questão escaldante: os mísseis nucleares.
O urso argumentou reiteradas vezes que a colocação de mísseis de interceção e de radares naquela terra de cegos que guiavam cegos – a Europa – era uma ameaça. A águia contra-argumentou repetidas vezes que aquilo era para nos proteger daqueles patifes persas.
Agora, a águia – afirmando que o dragão está a ter uma vida fácil – rasgou todos os tratados em vigor e está apostada em colocar mísseis nucleares em zonas orientais selecionadas na terra dos cegos que guiam os cegos, essencialmente para visar o urso.
Tudo o que brilha é seda
Selo da URSS. Menos de 20 anos depois daquilo a que o urso-mor Putin definiu como "a maior catástrofe geopolítica do século XX", este propôs uma forma de URSS light ; um órgão político-económico chamado a União Económica Eurasiática (UEE).
A ideia era ter a UEE a interagir com a União Europeia – a instituição de topo da equipa heterogénea conjunta dos cegos que guiam os cegos.
A águia não se limitou a rejeitar uma possível integração; saiu-se com um cenário de revolução colorida modificada a fim de desligar a Ucrânia da UEE.
Ainda antes disso, a águia havia querido estabelecer uma Nova Rota da Seda sob o seu total controlo. A águia havia-se esquecido convenientemente de que a original, a Antiga Rota da Seda, ligara o dragão ao império romano durante séculos – sem intrusos do exterior da Eurásia.
Assim, podemos imaginar o assombro da águia quando o dragão irrompeu no palco global com as suas Novas Rotas da Seda super carregadas – melhorando a ideia original do urso de uma área de comércio livre "de Lisboa a Vladivostok" e transformando-a num corredor de múltiplas interligações, terrestres e marítimas, da China oriental à Europa ocidental, incluindo tudo entre esses dois extremos, abrangendo toda a Eurásia.
Perante este novo paradigma, os cegos, claro, mantiveram-se cegos durante tanto tempo quanto nos podemos lembrar; e, pura e simplesmente, não conseguiram agir em conjunto.
Águia, de James Audubon. Entretanto, a águia ia aumentando a parada. Lançou o que, para todos os efeitos práticos, era um cerco ao dragão, progressivamente cheio de armas.
A águia fez uma série de movimentos que equivaliam a incitar os países fronteiriços do Mar do Sul da China a antagonizar o dragão, enquanto alterava a disposição duma série de brinquedos – submarinos nucleares, porta-aviões, caças a jato – cada vez mais próximos do território do dragão.
Durante este tempo todo, o que o dragão via – e continua a ver – é uma águia estropiada, tentando abrir caminho à força para sair dum declínio irreversível, tentando intimidar, isolar e sabotar a ascensão imparável do dragão para o lugar que sempre ocupara, durante 18 dos últimos 20 séculos: a sua entronização como rei da selva.
Um vetor fundamental é que os atores de toda a Eurásia sabem que, à luz das novas leis da selva, o dragão não pode – e não irá – ser reduzido, pura e simplesmente, à situação de ator secundário. E os atores de toda a Eurásia são demasiado espertos para embarcar numa Guerra Fria 2.0 que daria cabo da própria Eurásia.
A reação da águia à estratégia da Nova Rota da Seda do dragão levou algum tempo a passar da inação à demonização aberta – complementando com a descrição conjunta do dragão e do urso como ameaças existenciais.
Contudo, apesar de todo este fogo cruzado, os atores de toda a Eurásia já não se sentem propriamente impressionados com o império da águia armada até aos dentes. Especialmente depois de a crista da águia ter sido gravemente ferida por fracassos sobre fracassos, no Afeganistão, no Iraque, na Líbia e na Síria. Os porta-aviões da águia que patrulham a parte oriental do Mare Nostrum não estão propriamente a assustar o urso, os persas e os sírios.
Um acordo entre a águia e o urso sempre foi um mito. Demorou algum tempo – e muita perturbação financeira – até o urso perceber que não iria haver nenhum acordo, enquanto o dragão só via acordo para um confronto aberto.
Depois de se estabelecer, lentamente, mas com segurança, como a potência militar mais avançada do planeta, com conhecimentos hipersónicos, o urso chegou a uma conclusão espantosa: já não nos preocupamos com o que a águia diz – ou faz.
Sob o vulcão em erupção
Águia, de James Audubon. Entretanto, o dragão continua a expandir-se, inexoravelmente, por todas as latitudes asiáticas, assim como pela África, pela América Latina e até pelas pastagens infestadas pelo desemprego dos cegos que guiam os cegos, atingidos pela austeridade.
O dragão está firmemente convencido de que, se for encurralado ao ponto de ter de recorrer a uma opção nuclear, detém o poder de fazer explodir o estarrecedor défice da águia [2] , reduzir a zero a sua avaliação de crédito e criar o caos no sistema financeiro mundial.
Não é de admirar que a águia, sob uma nuvem paranoica que tudo envolve, de dissonância cognitiva, alimentando ininterruptamente a propaganda do estado aos seus súbditos e lacaios, continue a cuspir lava como um vulcão em erupção – impondo sanções a uma grande parte do planeta, entretendo sonhos eróticos (wet dreams) de mudança de regime, lançando um embargo total contra os persas, ressuscitando a "guerra contra o terrorismo" e tentando punir quaisquer jornalistas, editores ou denunciantes que revelem as suas maquinações internas.
Dói imenso reconhecer que o centro político-económico de um novo mundo multipolar vai ser a Ásia – ou seja a Eurásia.
À medida que a águia se torna cada vez mais ameaçadora, o urso e o dragão aproximam-se cada vez mais na sua parceria estratégica. Agora, tanto o urso como o dragão têm demasiados laços estratégicos por todo o planeta para serem intimidados pelo enorme Império de Bases [militares] da águia ou por aquelas coligações periódicas dos que a isso se dispõem (um tanto relutantes).
Para corresponder à integração abrangente em curso da Eurásia, de que as Novas Rotas da Seda são o símbolo gráfico, a fúria da águia, sem freios, nada tem a oferecer – exceto requentar guerra contra o Islão, em conjunto com o cerco bélico ao urso e ao dragão.
Depois, há a Pérsia – esses mestres jogadores de xadrez. A águia tem vindo a perseguir os persas desde que eles se viram livres do procônsul da águia, o Xá, em 1979 – isso depois de a águia e a pérfida Albion terem esmagado a democracia em 1953 e colocado o Xá no poder, o qual fazia com que Saddam se parecesse a um Gandhi.
A águia quer todo o petróleo e o gás natural de volta – para não falar de um novo Xá no papel de novo polícia do Golfo Pérsico. A diferença é que, agora, o urso e o dragão estão a dizer Nem Pensem. O que é que a águia irá fazer? Hastear a bandeira falsa para acabar com todas as bandeiras falsas?
É onde estamos agora. E mais uma vez, chegámos ao fim – embora não seja o fim do jogo. Ainda não há nenhuma moral para esta fábula modernizada. Continuamos a sofrer os ataques e as frechadas de um lamentável destino. A nossa única e débil esperança é que um grupo de Homens vazios [3] obcecados pelo Segundo Advento [do Messias] não transforme a Guerra Fria 2.0 num Armagedão .
06/Maio/2019
[1] Beijar o céu: Realizar aspirações, frase de canção de Jimi Hendrix.
[2] Here's What Happens if China DUMPS Its $1 Trillion in US Debt Amid Trade War
[3] Homens vazios: Refere-se à poesia The Hollow Men , de T. S. Elliot: "[...] Este é o modo como o mundo acaba. Não com um bang mas com uma lamúria".