Publicidade

Diário Liberdade
Sábado, 17 Setembro 2016 02:00 Última modificação em Sábado, 17 Setembro 2016 15:55

Será o fim do fenómeno Trump?

Avalie este item
(0 votos)
País: Estados Unidos / Institucional, Antifascismo e anti-racismo, Batalha de ideias / Fonte: Esquerda

Segundo as pesquisas, embora faltem dois meses para as eleições presidenciais de 8 de novembro, as coisas parecem já estar claras no que diz respeito ao resultado: a candidata do Partido Democrata Hillary Clinton seria eleita, vencendo também uma chuva de preconceitos e ataques machistas, e tornaria-se-ia, assim, a primeira mulher a governar os destinos da principal potência mundial do nosso tempo.

A pergunta é: o que aconteceu com o candidato do Partido Republicano, o tão “irresistível” e mediático Donald Trump?

Por que é que, de repente, o magnata desabou nas pesquisas? Sete de cada dez norte-americanos não se sentiriam “orgulhosos” em tê-lo como presidente, e somente 43% o consideram “qualificado” para se sentar na mesa do Salão Oval – enquanto 65% acha que Clinton sim é qualificada.

Vale recordar que as eleições presidenciais nos Estados Unidos não são nacionais, nem diretas. Trata-se de um conjunto de cinquenta eleições locais, uma por Estado, que determinam um número pré estabelecido de 538 grandes eleitores, e são eles, na verdade, os que escolheram o ou a chefe(a) do Estado. Portanto, as pesquisas de âmbito nacional têm apenas um valor indicativo, e relativo.

Em meados de agosto, diante de pesquisas tão negativas, o candidato republicano remodelou a sua equipa de trabalho, e nomeou um novo chefe de campanha, Steve Bannon, diretor do ultraconservador Breitbart News Network. Também modificou seu discurso direcionados a dois grupos de eleitores decisivos, os afro-americanos e os latinos.

Será suficiente para Trump inverter a tendência e impor-se na reta final da campanha? Não se pode descartar. Porque este personagem atípico, com suas propostas grotescas e as suas ideias sensacionalistas, tem superado até agora todos os prognósticos. Venceu os pesos pesados republicanos, como Jeb Bush, Marco Rubio e Ted Cruz, que contavam com o apoio firme do establishment do partido. Eram poucos os que apostavam nele nas primárias, mas mesmo assim, ele carbonizou os seus adversários, reduziu-os a cinzas.

Para entender o fenómeno, é importante considerar que desde a crise financeira de 2008 – de que ainda não saímos – nada mais é como era antes, em lugar nenhum do mundo.

Os cidadãos estão profundamente desencantados. A própria democracia, como modelo, vem perdendo credibilidade. Os sistemas políticos foram sacudidos até as raízes. Na Europa, por exemplo, estão a multiplicar-se os terramotos eleitorais – entre eles, o brexit. Os grandes partidos tradicionais estão em crise. E em todas as partes percebemos o avanço das alianças de extrema direita (França, Áustria e países nórdicos) ou de partidos antissistema e anticorrupção (Itália e Espanha). A paisagem política foi radicalmente transformada.

"Sismo político"

Esse fenómeno chegou também aos Estados Unidos, um país que já conheceu, em 2010, uma onda populista devastadora, então encarnada pelo Tea Party. A ascensão do multimilionário Donald Trump na corrida à Casa Branca é como um prolongamento daquele fenómeno, e constitui uma revolução eleitoral que nenhum analista soube prever. Embora persista, aparentemente, a velha dicotomia entre democratas e republicanos, a ascensão de um candidato tão heterodoxo como Trump sugere um verdadeiro sismo político. O seu estilo direto, o seu discurso maniqueísta e reducionista, apelando ao populismo e aos instintos básicos de certos setores da sociedade, muito diferente do tom habitual dos políticos norte-americanos, conferiu-lhe um caráter de autenticidade aos olhos do setor mais decepcionado do eleitorado da direita. Para muitos eleitores irritados pelo “politicamente correto”, que acreditam que já não se pode dizer o que se pensa, sob pena de ser acusado de racista, a “palavra livre” de Trump sobre os latinos, os imigrantes ou os muçulmanos é entendida como um autêntico alívio.

O candidato republicano tem sabido interpretar o que poderíamos chamar de “rebelião das bases”. Melhor que ninguém, ele percebeu a fratura cada vez mais ampla entre as elites políticas, económicas, intelectuais e mediáticas, por um lado, e a base do eleitorado conservador, por outro. O seu violento discurso anti-Washington e anti-Wall Street seduziu particularmente os eleitores brancos, pouco cultos e empobrecidos pelos efeitos da globalização económica.

Precisemos também que o discurso de Trump não é semelhante ao de um partido neofascista europeu. Não é um ultradireitista convencional. Ele mesmo se define-se como um “conservador com bom senso” e a sua posição, no leque da política, situar-se-ia mais exatamente na direita da direita.

Empresário multimilionário e superestrela da tele realidade, Trump não é um antissistema, e obviamente, tão pouco é um revolucionário. Ele não censura o modelo político em si, mas sim os políticos que o estão pilotando. O seu discurso é emocional e espontâneo. Apela aos instintos, às tripas, não ao cérebro ou à razão. Fala para essa parte do povo norte-americano entre a qual vem crescendo o desânimo e a insatisfação. Dirige-se aos que estão cansados da velha política, da “casta”. E promete injetar honestidade no sistema, renovar nomes, rostos e atitudes.

Os meios de comunicação vem dando grande repercussão a algumas de suas declarações e propostas mais odiosas e surrealistas. Recordemos, por exemplo, a sua afirmação de que todos os imigrantes ilegais mexicanos são “corruptos, delinquentes e estupradores”. Ou o seu projeto de expulsar 11 milhões de imigrantes ilegais latinos, colocando-os em autocarros e levando-os de volta ao México. Ou a sua promessa inspirada na série Game of Thrones, de construir um muro fronteiriço de 3 mil quilómetros no sul do país, passando por vales, montanhas e desertos, para impedir a entrada de imigrantes latino-americanos, cujo orçamento seria de 21 mil milhões de dólares – os quais seriam financiados pelo governo do México. Nesse mesmo estilo, também anunciou que proibiria a entrada do todos os imigrantes muçulmanos, e criticou com veemência os pais de um militar norte-americano de fé muçulmana, Humayun Khan, morto em combate em 2004, no Iraque.

Catálogo de disparates

Também fazem parte do seu show afirmações sobre o matrimónio tradicional, formado por um homem e uma mulher – segundo ele, “a base de uma sociedade livre” –, junto com uma crítica à decisão do Tribunal Supremo de considerar que o matrimónio entre pessoas do mesmo sexo é um direito constitucional. Trump apoia as chamadas “leis de liberdade religiosa”, impulsionadas pelos conservadores em vários Estados, para justificar os que se negam a prestar serviços a pessoas LGTB. E não nos esqueçamos de suas declarações sobre o aquecimento global, que Trump considera uma “farsa”, um conceito “criado por e para os chineses, para fazer com que o setor de manufaturas norte-americano perda competitividade”.

Este catálogo de horripilantes e detestáveis disparates têm sido massivamente difundidos pelos meios dominantes, não só nos Estados Unidos como no resto do mundo. E a principal pergunta que muita gente se faz é: como é possível que um personagem com tão lamentáveis ideias consiga uma audiência tão considerável entre os eleitores norte-americanos – que, obviamente, não podem estar todos lobotomizados? Alguma coisa está fora da ordem.

Para responder a esta pergunta, é preciso discernir conceitos em relação à muralha informativa, e analisar mais de perto o programa completo do candidato republicano, para descobrir os sete pontos fundamentais que ele defende, silenciados pelos grandes meios.

1) Os jornalistas não lhe perdoam, em primeiro lugar, os seus ataques frontais ao poder mediático. Criticam o fato dele estimular constantemente o público nos seus comícios a vaiar os repórteres ou a chamar os meios de comunicação social de “desonestos”. Trump costuma afirmar: “não estou competindo contra Hillary Clinton, estou competindo contra os corruptos meios de comunicação”. Num mensagem recente por twitter, ele escreveu: “se os repugnantes e corruptos meios de comunicação me cobrissem de forma honesta, e não injetassem significados falsos às palavras que digo, eu estaria vencendo a Hillary por uns 20% de vantagem”.

Por considerar a cobertura mediática injusta ou parcializada, o candidato republicano não duvidou em retirar as credenciais de imprensa de vários meios importantes que cobriam a sua campanha, entre eles o Washington Post, o Huffington Post e o BuzzFeed. Inclusive atreveu-se a atacar a Fox News, a grande cadeia de televisão caracterizada por seu direitismo panfletário, apesar dela o apoiar claramente como candidato favorito…

2) Outra razão pela qual os grandes meios atacam Trump é porque ele denuncia a globalização económica, convencido de que ela está a acabar com a classe média. Segundo ele, a economia globalizada está falhar cada vez nos benefícios às pessoas, e lembra que, nos últimos quinze anos, nos Estados Unidos, mais de 60 mil fábricas tiveram que fechar, e quase cinco milhões de empregos industriais bem pagos desapareceram.

3) Trump é um fervoroso defensor do protecionismo. A sua proposta visa aumentar as taxas sobre todos os produtos importados. “Vamos recuperar o controle do país, faremos com que os Estados Unidos voltem a ser um grande país”, costuma afirmar, retomando o seu slogan de campanha.

Partidário do brexit, Donald Trump revelou que se for presidente tentará retirar os Estados Unidos do Tratado de Livre Comércio de América do Norte (NAFTA, na sigla em inglês). Também criticou as propostas de Acordo Transpacífico (TPP, na sigla em inglês), assegurando que também retirará o país do projeto assim que chegar à Casa Branca: “o TPP seria um golpe mortal para a indústria de manufaturas dos Estados Unidos”.

Em regiões como a do “cinturão do óxido”, no nordeste do país, onde o encerramento das fábricas de manufaturas tem provocado altos níveis de desemprego e pobreza, esta promessa de Trump tem tido grande efeito.

4) Também está a causar grande resistência, pelo menos no discurso, os cortes neoliberais em matéria de segurança social. Muitos eleitores republicanos, vítimas da crise económica de 2008, ou maiores de 65 anos, necessitam do benefício da segurança social e do seguro de saúde desenvolvido pelo presidente Barack Obama, e que outros líderes republicanos desejam suprimir.

Trump prometeu não tocar nestes avanços sociais, baixar o preço dos medicamentos, ajudar a resolver os problemas dos “sem abrigo”, reformar a dinâmica tributária, especialmente no que diz respeito à fiscalização dos pequenos contribuintes, e acabar com o imposto federal que afeta 73 milhões de lares modestos.

5) Contra a arrogância de Wall Street, Trump propõe aumentar significativamente os impostos dos corretores das bolsas, que ganham fortunas, e apoia o restabelecimento da Ley Glass-Steagall, a mesma que foi aprovada em 1933, em plena Grande Depressão, e que separou a banca tradicional da banca de investimentos, com o objetivo de evitar que a primeira pudesse fazer investimento de alto risco. Obviamente, todo o setor financeiro se opõe absolutamente ao restabelecimento desta medida.

6) Em termos de política internacional, Trump quer estabelecer uma aliança estratégica com a Rússia, para combater com eficácia o Estado Islâmico, mesmo que, para isso, Washington tenha que reconhecer a anexação da Crimeia por Moscovo.

7) Também declarou, na direção contrária em relação a muitos líderes do seu partido, estar de acordo com o restabelecimento das relações entre Estados Unidos e Cuba.

Todas estas propostas não invalidam as inaceitáveis e odiosas declarações do candidato republicano, difundidas com pompa e circunstância pelos grandes meios dominantes. Mas sim explicam melhor o porquê do seu sucesso entre amplos setores do eleitorado norte-americano.

Artigo de Ignacio Ramonet, para o Le Monde Diplomatique. Publicado no site Carta Maior em 12 de setembro de 2016

Tradução de Victor Farinelli

Diário Liberdade é um projeto sem fins lucrativos, mas cuja atividade gera uns gastos fixos importantes em hosting, domínios, manutençom e programaçom. Com a tua ajuda, poderemos manter o projeto livre e fazê-lo crescer em conteúdos e funcionalidades.

Doaçom de valor livre:

Microdoaçom de 3 euro:

Adicionar comentário

Diário Liberdade defende a discussom política livre, aberta e fraterna entre as pessoas e as correntes que fam parte da esquerda revolucionária. Porém, nestas páginas nom tenhem cabimento o ataque às entidades ou às pessoas nem o insulto como alegados argumentos. Os comentários serám geridos e, no seu caso, eliminados, consoante esses critérios.
Aviso sobre Dados Pessoais: De conformidade com o estabelecido na Lei Orgánica 15/1999 de Proteçom de Dados de Caráter Pessoal, enviando o teu email estás conforme com a inclusom dos teus dados num arquivo da titularidade da AC Diário Liberdade. O fim desse arquivo é possibilitar a adequada gestom dos comentários. Possues os direitos de acesso, cancelamento, retificaçom e oposiçom desses dados, e podes exercé-los escrevendo para diarioliberdade@gmail.com, indicando no assunto do email "LOPD - Comentários".

Código de segurança
Atualizar

Quem somos | Info legal | Publicidade | Copyleft © 2010 Diário Liberdade.

Contacto: diarioliberdade [arroba] gmail.com | Telf: (+34) 717714759

O Diário Liberdade utiliza cookies para o melhor funcionamento do portal.

O uso deste site implica a aceitaçom do uso das ditas cookies. Podes obter mais informaçom aqui

Aceitar