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Diário Liberdade
Quinta, 03 Novembro 2016 21:13 Última modificação em Sábado, 05 Novembro 2016 16:11

“Black Mirror”: o fantástico realismo de uma sociedade narcísica

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/ Cultura/Música / Fonte: Esquerda Diário

[Fernando Pardal] A série britânica Black Mirror é assustadora. Não tanto pela sua fantasia distópica de um futuro não-tão-distante de nós, mas pelo que ela revela sobre o adoecimento de uma sociedade tão atual, tão velha, tão nossa.

Eu assisti apenas cinco episódios de Black Mirror, meio que escolhidos ao acaso por amigos. A série – diferente da maioria que assistimos – não tem sua unicidade marcada pela continuidade de uma narrativa e de seus personagens.

O que liga os episódios totalmente distintos entre si é algo que poderíamos chamar de uma temática. É o olhar com os olhos do terror para uma evolução fictícia de nossa tecnologia, interligada com a completa alienação de uma sociedade consumida pelas mercadorias que cria. É uma hipérbole, uma caricatura de nós mesmos, que apresenta uma sociedade escravizada pela tecnologia que criou, e que tenta nos mostrar que de ficção há muito pouco nas histórias apresentadas. O grotesco das histórias inventadas acaba sendo um tipo de sarcasmo, particularmente doloroso e incisivo, sobre como nos relacionamos uns com os outros e com as coisas que criamos e que nos recriam em nossa sociedade. As coisas que nos coisificam. Um retrato de uma sociedade fetichista e reificante até o limite do absurdo.

Seu nome, “Black Mirror” (espelho negro), é uma referência à tela preta do celular, que quando apagada nos reflete, mas acesa se tornou os olhos e filtros de uma sociedade das aparências. Um espelho em que pensamos nos ver, mas que na verdade é uma projeção de nossas vaidades e sonhos de consumo; aquilo que julgamos desejar, mas que são desejos que também nos foram vendidos. A imagem que criamos para ser uma máscara de felicidade e bem-estar que tente soterrar nossa miséria psíquica, moral e social sob uma montanha de imagens produzidas com afinco para nos serem vendidas. E que compramos para poder vender a nós mesmos e a quem nos cerca. Pagamos caro pela ilusão de sermos felizes.

Não se trata, como certamente um tipo de leitura sobre a série irá dizer, de uma crítica à tecnologia. A tecnologia está no centro do enredo e da trama, e o toque mais completamente “ficcional” de Black Mirror é representado pelo fato de que o nó do enredo de cada episódio se dá em torno de criações tecnológicas que não existem hoje, mas que parecem perfeitamente verossímeis para o futuro. Mas o centro da série está no fetiche, no narcisismo, na agressividade brutal, na incapacidade de perceber o outro ser humano senão como uma mercadoria – colocado nesse papel pelo intermédio de nossas relações com as “coisas tecnológicas”, ou seja, outras mercadorias que foram criadas para substituir ou subordinar os próprios humanos.

Intencionalmente a série traz temas muito fortes, daqueles que muitos convencionaram chamar de uma forma bastante ideológica de “universais”: morte, perda, amor, inveja, ambição, ira, vingança, desejo. E todas essas paixões “eternas” do ser humano são brutalmente submetidas à lógica do consumo, da reificação, da compra e da venda. Algum crítico cínico da humanidade, desses que repete a máxima liberal de Hobbes – “O homem é o lobo do homem” – não como se fosse uma velha mentira carcomida, mas como se fosse uma incrível descoberta de sua mente genial, encontrará um prato cheio para ver em Black Mirror uma exposição dessa suposta “maldade inerente” da humanidade com uma roupagem futurista e tecnológica. Aliás, gente assim adora procurar na arte uma “prova” dessa ideologia reacionária que afirma que a “essência” do homem é sua crueldade inerente e sua vontade de subjugar os demais para seus fins privados.

Mas não: a tecnologia, como qualquer coisa relacionada à cultura do homem, ao seu trabalho de modificação da natureza, serve a um propósito condicionado pela história de quem a cria. E a escravização do homem pela tecnologia que vemos em Black Mirror não é nada mais que a expressão de valores sociais de seu mundo fictício – não muito diferentes dos que temos atualmente, e por isso o terrível mal estar ao ver a série.

A tecnologia, tanto na série como na nossa vida real já tão mediada por perfis de Facebook, Twitter, Instagram e tantos outros, cumpre apenas o papel de potencializar a fetichização e a reificação, tão antigas quanto o próprio capitalismo. Se é na alienação do trabalho, na criação do mundo das mercadorias que atuam entre elas e por elas mesmas, transformando as pessoas em objetos, que surge uma sociedade do fetiche, então é na tecnologia que cria imagens virtuais tão poderosas que esse fetiche se potencializa mil vezes. As formas de abstrair que as coisas são produtos de nosso trabalho sempre cumprem esse papel no capitalismo, e quanto mais abstratas, mais poderosas para dar autonomia às mercadorias e subjugar os que as produzem. Basta pensar na evolução mercadoria-dinheiro-cartão de crédito para ver essa potência. E transformar um ser humano em um ícone de internet ou uma animação virtual é uma representação bastante forte de como a tecnologia pode estar a serviço dessa reificação das pessoas.

O que Black Mirror nos trás de tão terrível, perverso e real é justamente essa monstruosa realidade (ficcional?): as coisas nos dominam, elas nos criam, elas nos comandam, elas nos consomem.

A série não te dá resposta alguma, ao fim de cada episódio só o gosto amargo de que ele, o fetiche, mais uma vez triunfou, tirando nossos status de sujeitos, de pessoas que pensam, sentem e decidem os rumos de nossas vidas, e nos transformou em mercadorias. As mercadorias se relacionam entre si, e nos tornamos mais uma na prateleira. É uma crítica forte, uma atualização das velhas fábulas de um capitalismo distópico – como nas obras de Philip K. Dick e as obras do “ciberpunk” – que pode ter o poder de instigar a querer transformar as coisas, ou a dolorosa constatação resignada de que rumamos a cada dia mais para o aprofundamento de um mundo em que as pessoas são mais uma mercadoria, e de baixíssimo valor. Para quem pode comprar tudo, talvez não esteja tão mal. Pode-se comprar até mesmo a crítica a essa sociedade e fazer dela uma mercadoria a mais, para gerar mais lucro, mais mercadorias. Como acontece inclusive com Black Mirror, mais uma série de grande sucesso, mais uma mercadoria, disponível na prateleira de seu Netflix, ao alcance de um clique. E depois você pode se distrair com uma comédia romântica se quiser.

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