Etimologicamente, o nome “gentrificação” vem do francês arcaico “genterise”, significando “de origem gentil, nobre”. Gentrificar uma área urbana, portanto, é fazê-la, fortuitamente, parecer que teve tal origem. A coisa real que o nome designa é a elitização de espaços urbanos, até então de caráter popular; valorização cujo objetivo é o aumento de custos e bens de serviços. O preço imediato disso, por conseguinte, é a exclusão, de dentro desses espaços (regiões, bairros, ruas, praças), de antigos moradores, frequentadores, hábitos e tradições. Ou seja, a gentrificação é sempre o assassínio da urbanidade que a precede. Um urbanicídio.
A elitização de zonas urbanas é velha conhecida do Rio de Janeiro. Um exemplo trágico disso foi a expulsão, em 1957, da favela chamada de “A Cruzada São Sebastião” das margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, para, ali, serem erigidos nobres bairros, com os antigos e populares moradores tendo sido realocados fortuitamente para a famigerada “Cidade de Deus”, na distante Zona Oeste.
Mesmo assim, desde que o Rio se tornou sede oficial, tanto de jogos da Copa do Mundo, quanto da Olimpíada, a gentrificação que na cidade morava passou a ser “carioca da gema” (expressão que designa cariocas filhos de cariocas para se apontar “cariocas de verdade”). A consequência dessa gentrificação olímpica foi que muito cariocas da gema de verdade tiveram de deixar várias zonas da cidade nas quais viviam e/ou trabalhavam para se refugiarem em outras que coubessem nos seus orçamentos, claro, bem distantes dos noveau bolervardsgentrificados.
A Gentrificação é espécie de Hidra de Lerna de muitas cabeças. A mais publicizada delas, obviamente, é a sofisticação de espaços urbanos. Outra, que decorre desta, é a substituição de classes sociais mais baixas pelas mais altas nesses espaços sofisticados. Uma outra ainda, cujos efeitos quero pensar aqui, é a gentrificação comercial que cada vez mais transforma o centro do Rio de Janeiro em uma área urbana que não serve nem às elites, nem tampouco aos antigos moradores/usuários do histórico bairro, em outras palavras, ao povo.
Usarei duas ruas do centro do Rio como exemplos desse tipo de gentrificação que, imediatamente, produziram o oposto do que pretendiam: decadência. A primeira delas: a Rua da Carioca; até os anos 2000 um movimentado polo de lojas de instrumentos musicais da cidade do samba, do chorinho e da bossa-nova. Assombrado pelo fantasma olímpico que fez com que, durante alguns anos, o Rio fosse a cidade do metro quadrado comercial mais caro do mundo, o logradouro viu os seus estabelecimentos comerciais rapidamente fecharem, sem, no entanto, nada de novo ou mais nobre tomar os lugares. A vida musical da rua calou completamente. O único som que hoje se ouve por lá é o do ruído dos automóveis reverberando tristemente no corredor de cortinas de ferro cerradas e enferrujadas, suportes para placas de Aluga-se ou Vende-se que, por mais que sejam vistas, não cabem no bolso de quem as vê
A pergunta que em primeiro lugar podemos fazer é: por que expulsar os antigos e tradicionais comerciantes e transeuntes da rua – que tem como nome o gentílico da cidade! – sem que outros, mais ricos e elitizados, os substituíssem? A resposta é mais triste do que se poderia esperar: em vez de apenas sofisticar o comércio que musicava a rua, a “política de terra arrasada” da especulação imobiliária gentrificatória é fazer com que a manutenção estratégica de uma ruína urbana apague quaisquer memórias popularmente simpáticas para, assim, parecer uma solução boa a todos serem construídos ali, por exemplo, antipáticos estacionamentos e shopping centers.
A Rua da Carioca, que inicialmente chamou-se Rua do Egito, depois, Rua do Piolho, tenha talvez de mudar de nome novamente, seja para fazer jus à ruína urbana que atualmente ela é, seja, futuramente, para nomear a “nova cidade” que ali será empreendida pelos interesses do capital imobiliário.
O segundo exemplo que trago é a Rua da Conceição, no movimentado corredor comercial popularmente chamado de Saara, que até alguns anos concentrava lojas essenciais a carnavalescos (na terra do carnaval!), sapateiros, costureiros, estofadores, encanadores, carpinteiros, e toda sorte de artesãos. Depois do tsunami gentrificatório que elevou os aluguéis, toda a variedade da Rua da Conceição foi substituída por um único tipo de serviço. Circular pelo logradouro, hoje em dia, é passear quase que exclusivamente por lojas que, uma depois da outra, vendem produtos para camelôs. Um olhar mais atento mostra ainda que tais lojas vendem todas as mesmas mercadorias. Com a gentrificação, a variedade sucumbiu diante da mesmidade.
Sem dizer que substituir lojas que antes serviam a um leque enorme da população por distribuidoras de bugigangas chinesas que suprem camelôs outra coisa não é que transformar um autêntico comércio oficial em um indesejado comércio informal, porque no mais das vezes ilegal, mediante atacadistas que, no final das contas, são os únicos que podem pagar por lojas legais em um ambiente assim gentrificado.
Só que, convenhamos, de “genterise”, isto é, de gentil, de nobre, essa gentrificação não tem nada, pois as visadas elites de modo algum passaram a frequentar os novos atacadistas que expulsaram os velhos lojistas da Rua da Conceição. Em vez disso, é o povo que, para buscar o que precisa ou deseja, não pode mais fazê-lo no interior de lojas devidamente estruturadas, mas tem de se expor nas congestionadas, sujas e perigosas ruas do centro do Rio onde os camelôs “atendem”, pelo menos até estas ruas serem gentrificadas também.
Aqui chegamos ao ponto que eu mais queria tocar. O centro Rio está sendo vítima de uma gentrificação incompleta, decadente, que expulsa o povo não para trazer elites, mas apenas para expulsar o povo. A lógica perversa dessa gentrificação é a seguinte: se as elites ainda não querem ocupar determinados espaços urbanos, ao menos a especulação imobiliária deve “limpá-los” de povo, e imediatamente, para quando os nobres desejarem, não terem “pedra no meio do caminho” alguma. Se já triste uma cidade ter a sua diversidade capitalisticamente expurgada para que certas zonas sejam privilegiadas às elites, que de certa forma também compõem a diversidade urbana, mais triste ainda é ver essa diversidade expulsa para que a não-cidade, ou seja, a não-diversidade tenha lugar cativo na cidade.
O silencioso corredor de lojas fechadas da antiga e musical Rua da Carioca, bem como a sequência de distribuidoras de bugigangas idênticas para camelôs que agora faz a Rua da Conceição, antes um rol de variedades, ambos os exemplos evidenciam, urbanisticamente, a tristeza reificada de uma gentrificação decadente, que, mesmo que não sofistique lugares às elites, precisa ao menos despopularizá-los imediatamente.
Não me atrevo propor uma solução para problema tão complexo e contra inimigos tão poderosos. Apenas peço que não nos esqueçamos de que, diametralmente oposta à gentrificação está a popularização. Pelo menos assim o povo pode saber qual dos dois movimentos que se digladiam dentro da cidade é o melhor para si, mesmo que, no momento, o movimento elitista esteja vencendo.