“Fora Temer” é uma interjeição que soa patética quando consideramos seriamente a teoria política do filósofo inglês Thomas Hobbes, autor que, a meu ver, propõe o mais desafiador convite à responsabilidade cidadã. Hobbes diz categoricamente que “tudo quanto o representante” – isto é, o governante, o Leviatã – “faz, como ator, cada um dos súditos faz também, como autor”. Em outras palavras, também do filósofo: “cada indivíduo é autor de tudo quanto o soberano fizer; por consequência aquele que se queixar de uma injúria feita por seu soberano estar-se-á queixando daquilo de que ele próprio é autor, portanto não deve acusar ninguém a não ser a si próprio”.
Dessa perspectiva hobbesiana, gritar “Fora Temer” outra coisa não é que vaiar o ator em cima do palco por desempenhar mal o espetáculo que nós mesmos escrevemos conjuntamente. A amarga ideia com que Hobbes nos confronta é que, na relação entre súditos/cidadãos e Leviatã/representante, não há vítimas. Mais ainda, se há culpados, este são os primeiros. Já o Leviatã não é vítima nem culpado, pois é feito apenas de cidadãos, pelos cidadãos, para os cidadãos. O representante político é o resultado de cálculos, de acordos, de disputas entre cidadãos. Em suma: é feito apenas de relações sociais. E como a matemática comprova, se o resultado de uma equação está errada, o erro está aquém dele.
Temer, gostemos ou não, é o nosso atual Leviatã: o resultado da disputa concreta entre os cidadãos brasileiros. Portanto, repetir “Fora Temer” apenas nos aliena do fato de que, quando Temer atua, somos nós, os cidadãos brasileiros, que atuamos através dele. E se ele está onde está, resulta da nossa “matemática” cidadã. Tal é o preço da representatividade política que dispensa os cidadãos de atuarem, direta e constantemente, em função de suas necessidades, ao preço de colocá-las nas mãos de outros atores, e, em última instância, nas mãos do protagonista supremo, o Leviatã. Para os antigos gregos, inventores da democracia direta, seria uma barbaridade legar interesses pessoais a outrem. Nós, porém, fizemos disso regra. Só que, covardemente, não queremos pagar o preço dessa mudança.
Ora, se, como coloca Bruno Latour, o Leviatã apenas traduz os cidadãos, e se, como denunciam os maiores críticos literários, qualquer tradução é sempre uma traição, está no horizonte do representante máximo trair os seus representados. Só que quando isso acontece, reclamamos, gritamos “Fora Temer”, como se estivéssemos atuando em uma democracia direta, defendemos os nossos interesses pessoalmente, esquecendo-nos de que, desde o princípio, sustentamos uma democracia indireta, burguesa, que, se por um lado, trai-nos sistematicamente, por outro, dispensa-nos do árduo e constante trabalho cidadão para assim gastarmos nosso tempo nos shopping centers comprado smartphones.
Nos anos Lula, quando todos, ricos e pobres, éramos mínima e decentemente representados, a alienação que a representatividade política sempre promove não era um problema. Agora, quando um bando de oligarcas corruptos, que representam única e escancaradamente os seus próprios interesses, encarnam o Leviatã, essa mesma representatividade política burguesa mostra seu lado insuportável. Mas, não nos esqueçamos, esta é a forma com que decidimos, consensualmente, ou, em termos hobbesianos, contratualmente, viver. Hobbes, felizmente, não nos deixa esquecer de que o soberano é apenas um ator designado pelo contrato social entre os cidadãos.
Dar um Fora no “Fora Temer”, para então focarmos em nós mesmos enquanto sujeitos de um lema de ordem que de fato possa melhorar a nossa condição de cidadãos, é assumirmos que somos nós, e ninguém mais, que delegamos, democraticamente, nosso poder a um representante, a um Leviatã, que, em verdade, nunca foi outra coisa senão o resultado dos nossos cálculos, em função dos nossos anseios. Para Hobbes, são os cálculos dos cidadãos, todos equacionados em um contrato, que constituem o Leviatã. Se, a posteriori, o “resultado Temer” parece-nos um desastre, responsabilidade cidadã é assumir que, a priori, nós não soubemos equacionar nossos valores individuais de modo menos desastroso.
O “erro Temer” é o resultado verdadeiro do erro das operações que nós, brasileiros, viemos realizando nos últimos anos. Insistir no “Fora Temer”, portanto, é como se continuássemos somando 2+2 e querermos, estupidamente, que o resultado dessa soma seja 5. Da visada hobbesiana, um “Fora Nós”, em vez de um “Fora Leviatã”, ou, no nosso caso, do “Fora Temer”, não só seria mais responsável, como principalmente nos lembraría de que devemos revisar tanto os nossos parciais cálculos individuais, quanto os subtotais cálculos coletivos, cujo total é, no final das contas, o Leviatã – ou Temer.
Minha hipótese é que a revisão “matemática” da problemática representatividade política, hoje protagonizada tristemente por Temer, passa por esclarecermos, primeiramente, o ardil da democracia representativa burguesa, que não foi feita para atender os interesses dos cidadãos, apenas para dar tal impressão. Devemos criticar a nós mesmos pela “democracia” burguesa, indireta, representativa, mediante a qual somos cidadãos estruturalmente ausentados da luta em função dos nossos interesses e necessidades. E isso para quê? Ora, para trabalharmos mais, e assim consumirmos mais. “Fora Nós” que fortalecemos àqueles que nos mentem uma democracia.
Se, por um lado, o presente impede de voltarmos ao passado idílico de uma democracia direta, na qual ninguém além de cada cidadão pode frustrar ou trair a si próprio, nada, por outro lado, nos priva de utopizarmos uma democracia diferente dessa na qual oligarcas criminosos usam o Estado como bureau de seus vis interesses. Por isso: Fora “Fora Temer”. E em seu lugar, um ensurdecedor e consensual “Fora aos nossos erráticos cálculos cidadãos”; tanto os individuais quanto os coletivos; pois é essa incompetência que resulta em erros crassos, totais, tais como Michel Temer Leviatã tupiniquim.