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Diário Liberdade
Sábado, 28 Mai 2016 03:21 Última modificação em Quinta, 21 Julho 2016 15:57

Machismo extremo: estupro

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Rafael Silva

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[Rafael Silva] Uma menina brasileira de 16 anos foi à casa do namorado que havia conhecido na escola fazia três anos. Era sábado. Ela lembra de estar à sós com o garoto e de, de repente, acordar nua e dopada, em uma outra casa, com 33 homens armados que, não satisfeitos em terem-na estuprado coletivamente, ainda por cima a fotografavam e filmavam para então postarem esses “troféus” imagéticos perversíssimos nas redes sociais. Já era domingo. Porém, somente na terça-feira a garota voltou para casa, descalça, descabelada e com uma roupa masculina toda rasgada, sem dizer nada aos seus pais, tamanha a vergonha que sentia.


Depois de sofrer a barbaridade cometida pelos 33 homens, que são melhor definidos como monstros, não só a menina estuprada, mas também seus familiares e amigos, todos profundamente abalados, ainda tiveram de se confrontar com os vídeos e fotos do estupro postados nas redes sociais pelos próprios estupradores. Como se não bastasse, nessas postagens perversas e em muitas outras que polemizavam o terrível estupro, muitos dos comentários ainda culpavam a menina pelo acontecido. Essas barbáries subsequentes diziam absurdos tais como: se estivesse em casa, se estivesse na igreja, se não usasse drogas; se usasse roupas decentes etc., não teria sido estuprada.

Aqui vale lembrar o que disse a filósofa Marcia Tiburi, que “pela lógica do estupro, pensa-se mais no ‘erro’ da vítima do que no ‘erro’ do criminoso”. É exatamente essa lógica perversa que, por um lado, levou os 33 estupradores a se sentirem livres para estuprar a garota, pois certamente tinham certeza de que o “erro” dela seria mais evidenciado e condenado do que o deles, e por outro, “autorizou” centenas de pessoas a "estuprarem-na" posteriormente com vis comentários nas redes sociais. Grosso modo, o que estes “estupradores-comentadores" fizeram foi dizer que a menina estuprada é a culpada. Seja por não ter escapado, seja por não ter desconfiado da barbaridade que lhe aconteceria. Ou o que é pior, como coloca Tiburi, “por ter ‘parecido’ mulher demais”.

Tanto os 33 estupradores quanto as centenas de comentadores perversos agiram do modo que agiram porque, conforme a filósofa, “o status da mentalidade brasileira relativamente à questão do estupro define a vítima como culpada ... É a mesma lógica que permitia que brancos privassem de liberdade, espancassem e matassem pessoas negras”. Embora o Brasil ainda seja um país fortemente machista e racista, o racismo, entretanto, é mais facilmente detectável e condenável do que o machismo extremo, qual seja, o estupro.

Mas por que um estuprador, um machista extremo, ainda goza de tamanho e abjeto privilégio? Porque “um estuprador não consegue isso sozinho ... Ele precisa do apoio de uma sociedade inteira”, ressalta a filósofa. E essa sociedade que apoia estupradores é bem conhecida de todos. Quem não está habituado com a realidade machista na qual o pai tem mais poder que a mãe; o irmão, mais liberdade que a irmã; o homem, maior salário que a mulher etc.?

Sem esquecer que essa “sociedade protetora dos estupradores” é a mesma que ainda não conseguiu –talvez porque não queira- deixar de fazer piadas machistas. Barbaramente, a sociedade machista ainda ri, diverte-se com o seu próprio machismo. E essa lógica perversa, levada ao extremo, isto é, o estupro de uma mulher, chega a prometer espécie de “diversão” maior. Como se não bastassem as velhas jocosidades machistas contra as mulheres, temos agora o rol de comentários nas redes sociais a darem nova e altamente publicizada roupagem ao machismo extremo. Somado ao machismo em forma de piadas de mau gosto, temos hoje toda sorte de “opiniões machistas” deliberadamente vomitadas na internet.

E quando a garota de 16 anos estuprada disse em recente entrevista que “não dói o útero e sim a alma”, certamente não se referia apenas ao que os 33 bárbaros estupradores fizeram com seu corpo e espírito, mas também às centenas de comentadores perversos” que, ao culpá-la por ter sido estuprada, absolvem os verdadeiros algozes e a si mesmos pelo machismo extremo que ainda resiste na nossa sociedade. Pois, nas palavras de Tiburi, “na lógica do estupro toda e qualquer culpa recai sobre a vítima ... o estuprador não é responsabilizado por seu ato”.

Não é à toa que em uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), realizada em 2014, 60% dos entrevistados -homens e mulheres- concordaram totalmente com a frase: “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. Não que a maioria das pessoas seja a favor da violência pura e simples contra as mulheres. Não obstante, essa mesma maioria entende o estupro enquanto um violência menor, de certa forma justificável em algo de errado que as próprias vítimas dos estupros -as mulheres- fazem.

Afora o estupro em si, um mal abominável, as mulheres sofrem ainda uma segunda e talvez mais brutal violência, vinda da sociedade, que afirma contra elas que mereceram o estupro que sofreram. Essa sobre violência é a inversão perversa da vítima em culpada, para, desse modo, os estupradores poderem permanecer impunes e estuprando, alimentando o machismo extremo que resulta no que hoje está em todas as bocas e manchetes: “a cultura do estupro”. Nessa “cultura”, ou nas palavras de Tiburi, “na lógica perversa do estupro, ‘ser mulher’ é condição ontológica passível do estupro”.

Para os estupradores, as mulheres são objetos estupráveis porque eles ainda cultuam a si mesmos como os únicos e verdadeiros sujeitos da realidade. Com efeito, para um “sujeito machista”, o outro -a mulher- é apenas mais um objeto; uma coisa que pode lhe satisfazer. Tiburi deixa isso bem claro ao dizer que “o estuprador é aquele que se vê tendo um estranho ‘direito ao estupro’ ... Paranoico, ele se sente o centro do mundo, o mundo no qual ele é o rei e a mulher é, quando muito, uma serva”. A relação entre homem e mulher enquanto relação entre sujeito e objeto ou rei e servo é a lógica do estupro, ou, como se diz hoje, a “cultura do estupro”, em sua perversa e vigorosa forma; ainda faz com que, no machismo extremo, as vítimas –mulheres- sejam mais “criminosas” que seus algozes –os estupradores.

A particular tragédia da carioca de 16 anos vítima de 33 estupradores e de centenas de “comentadores perversos”, todos machistas extremos, está dizendo em alto, universal e bom tom que a nossa sociedade precisa urgentemente ser revolucionada. Os homens precisam deixar de achar que são mais sujeitos que as mulheres. Essa resistente ficção é talvez o nosso mais abjeto fundamentalismo social. Revolucionar a sociedade machista extrema, todavia, não é tarefa fácil. Exigirá muitas batalhas. Uma delas é confrontar o macho com o seu insustentável mito de superioridade. A outra, forçar o macho à verdade social mais necessária à nossa época, qual seja: a igualdade entre os sexos. Por quê? -perguntaria o conservador criacionista. Porque estamos no século XXI, responde a parte sã da sociedade que já está na guerra contra o machismo, seja ele brando, seja extremo.

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