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Diário Liberdade
Sábado, 28 Mai 2016 11:57

O fascínio desumanizado de D.H. Lawrence pelo México

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Miguel Urbano Rodrigues

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Desconhecia o México quando li A Serpente Emplumada*.


A partir de l970 visitei muitas vezes aquele país. Percorri alguns Estados e adquiri um razoável conhecimento da sua história, sobretudo da pré-colombiana.

Reli agora numa edição francesa A Serpente Emplumada e percebi que a minha compreensão do romance tinha sido, quando jovem, lacunar.

EM BUSCA DO DESCONHECIDO

Filho de um mineiro, David Herbert Lawrence (1885-1930) cresceu numa família de trabalhadores incultos. Sofreu privações, mas a educação universitária permitiu-lhe superar as fronteiras do meio social que o rodeava.

Ainda adolescente, começou a escrever.

A sua obra desencadeou tempestades emocionais. Alguns dos seus livros foram proibidos por obscenos. Outros levaram a crítica a situá-lo na fronteira da loucura. Mas, cabe perguntar o que deve entender-se por loucura, tao diferentes são as manifestações do comportamento humano quando alguém pelo pensamento e a atitude rompe com aquilo que é considerado respeitável nas sociedades do mundo contemporâneo?

Lawrence sentia-se incompatível com a atmosfera da Inglaterra pós vitoriana. Ao atingir a idade da razão decidiu sair do país natal e a maior parte da sua breve existência foi vivida longe do Reino Unido.

Rejeitava o mundo moderno, industrializado, o materialismo da chamada civilização ocidental, comandada pela divinização do dinheiro.

Na Alemanha apaixonou se pela baronesa Frieda Richtoffen, seis anos mais velha do que ele. Tão tempestuoso foi esse amor que a aristocrata abandonou o marido, os filhos e a fortuna para partilhar com ele uma vida de pobreza.

Atraído pelo exotismo de regiões remotas, desembarcou na Austrália onde rapidamente passou do fascínio ao desencanto e à aversão. Dessa aventura ficou um romance: Canguru.

O Ceilão foi outra breve etapa do seu nomadismo inquieto.

Nos EUA comprou um rancho e tentou transformar-se num agricultor. Mas a permanência no sudoeste despertou o seu interesse pelas culturas dos índios norte-americanos. Foi então que «descobriu» as civilizações pré-colombianas da Mesoamérica. Acumulou uma biblioteca sobre o México antigo que ia da Historia de Bernal Diaz del Castillo e das Cartas de Relação de Cortez aos mais prestigiados historiadores e sociólogos daquela época. Devorou essa riquíssima bibliografia e decidiu escrever um romance: A Serpente Emplumada.

O FEITIÇO MEXICANO

Lawrence instalou-se na margem do Lago de Chapala, em Jalisco.

Escrevia num ritmo alucinante, em alguns dias mais de 2000 palavras.

Chegou numa época de transição. A Revolução, iniciada com a derrota da ditadura de Porfírio Diaz, tentava institucionalizar-se apos uma prolongada e devastadora guerra civil.

Quando Lawrence escreveu o seu romance, em l923, o presidente era o general Álvaro Obregón (assassinado anos depois), No livro aparece, desfigurado, como general Montes.

Lawrence, que não tinha uma formação politica minimamente estruturada, não entendeu a revolução e o seu significado. Surge na Serpente Emplumada, como um terremoto social negativo. O seu discurso político apresenta matizes de anarquismo intelectual.

Algumas das personagens secundárias falam e agem como seres irreais. Os mexicanos, os europeus, os índios, os brancos e os mestiços.

Três personagens principais atravessam o romance: a irlandesa Kate, Don Ramon e Don Cipriano.

Kate é uma viúva irlandesa de 40 anos, bela, sensual, insegura, neurótica.

O escritor transmite-lhe algo da sua mundividência. Ela, como ele, acredita que é indispensável uma harmonia entre o sexo e o pensamento, um equilíbrio entre o corpo e a mente.

Kate chegou como turista, mas alugou uma casa em Sayula (a cidade onde nasceu o escritor Juan Rulfo) e decidiu ficar ali por tempo indeterminado. O México perturba-a. Sente -se fustigada por emoções opostas de repulsa, ternura, desprezo e encantamento. Acha os índios mexicanos muito belos.

Mas Kate, como Lawrence ,é racista, considera os índios seres inferiores.

Don Ramon deslumbra-a. Na primeira parte do romance, o escritor esboça dele o retrato de um intelectual refinado, arqueólogo eminente, respeitado pelos europeus.

Mas rapidamente o intelectual sofisticado transfigura-se. Funda uma religião que retoma os antigos deuses do panteão tolteca e asteca. Ele próprio se assume como Quetzalcoatl, o deus mítico que voara para Oriente, anunciando que voltaria um dia. A opção religiosa leva-o a um choque frontal com os católicos cujas igrejas ocupa, transformando-as em templos de Quetzalcoatl.

O romance perde qualidade nos diálogos com Kate, no pormenor dos rituais religiosos, na repetição de hinos, proclamações e apelos dirigidos à legião de fiéis de Quetzalcoatl.

Páginas de grande beleza literária – Lawrence é um maravilhoso artista a trabalhar a língua de Shakespeare – alternam com outras de péssimo gosto. O relato da luta de Ramon e Kate com pistoleiros de organizações criminosas que pretendiam assassiná-lo é folhetinesco, lembra cenas de westerns intragáveis. Os diálogos de Ramon com Carlota, a mulher, e os filhos são também in convincentes, toscos, artificiais, de uma mediocridade confrangedora.

Cipriano, o general Viedma, é um militar enigmático, índio educado em Oxford que regressou ao México sem que as suas raízes indígenas fossem afetadas pela cultura europeia. Ao conhecer Kate à saída de uma corrida de touros que a enojara, nasceu nele um atracão pela bela irlandesa que iria aprofundar-se, marcando o rumo da vida de ambos. Casaram, mas o casamento durante muito tempo não foi consumado. A motivação do distanciamento sexual é abordada em páginas belas sobre a evolução da complexa sexualidade de Kate.

Cipriano, admirador fervoroso e complemento de Ramon, já então se assumia como Hutzilopochtli, o sanguinário deus asteca da guerra, o outro pilar da nova religião. É difícil o acompanhamento e a compreensão dos capítulos em que Ramon e Cipriano justificam o seu combate pela transformação do México e da Humanidade através do culto aos deuses redivivos que eles pretendem encarnar.

Kate é por eles guindada a deusa, Malintzi, e aceita, embora perplexa e angustiada. Assiste passivamente à matança de prisioneiros quando Cipriano, imitando Hutzilopochtli, apunhala inimigos de don Ramon.

O final do romance, a resvalar para o melodrama, não surpreende.

Kate fica no México e Cipriano diz-lhe que a ama muito, muito.

OBRA PRIMA? NÃO

Quando o romance, reescrito varia vezes, foi publicado em Inglaterra em 1926 as reações da crítica e dos leitores foram contraditórias.

Para uns é uma obra-prima, um livro tao importante como o Amante de Lady Chaterley. Para outros um desafio fracassado, medíocre como obra literária.

Na Serpente Emplumada há uma frequente contiguidade da grande literatura com o artesanato literário.

No México, os intelectuais criticaram com severidade os erros históricos do livro. Trata-se de uma obra de ficção. Mas Lawrence foi longe demais na complementaridade Quetzalcoatl-Huitzilopochtli. O primeiro emerge na cosmogonia asteca como um deus humanista, incompatível com a violência; o segundo exigia os corações e o sangue das vítimas sacrificadas no seu altar do templo maior de Tenochtitlan. Hernan Cortez viu nele um «ídolo diabólico»; Estropiando-lhe o nome, chama-lhe Huichilobos. Nada aproxima os dois deuses; tudo os distância.

A atribuição da divindade a Malintzi, também choca, por absurda.

Malintzi não foi uma deusa. Assim se chamava em nahuatl um vulcão extinto, mas os espanhóis deram esse nome a Dona Marina, a princesa ásteca que foi tradutora e amante de Cortez.

Lawrence escreveu a Serpente Emplumada para o público europeu e norte americano, ambos totalmente desconhecedores da história do México pré-colombiano e dos seus deuses. Certamente estava consciente da deturpação dessa História que aliás não transcendia os meios académicos.

Mas o seu romance contribuiu para que muitos milhares de pessoas em muitos países ( A Serpente Emplumada foi traduzido em dezenas de línguas) se interessassem pelo México, pelo seu povo e cultura.

Esse é talvez o mérito maior de um romance que desencadeou intermináveis polémicas, como outros do grande escritor.

No regresso à Europa, Lawrence escreveu O Amante de Lady Chaterley (1928). O livro pôs em estado de choque a Inglaterra conservadora. A aristocracia e a gentry reagiram com indignação e a pequena burguesia, hipócrita e puritana, condenou o adultério de uma grande senhora que trocou o marido impotente pelo seu guarda caça.

Lawrence, cuja tuberculose se tinha agravado, morreu em Vence, no sul da França, em l930, rodeado pelo carinho de dois grandes amigos que o admiravam, os escritores H.G.Wells e Aldous Huxley.

Os seus pulmões arruinados não lhe permitiram concretizar uma velha aspiração: escrever um livro sobre o povo inuit que vive nas solidões árticas da Groenlândia.

*D.H.Lawrence, Le Serpent à Plumes,1961,502 pg, Paris

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Vila Nova de Gaia, maio de 2016

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