Trata-se de um fenômeno político estranho no cenário prevalecente da América Latina – como em demais regiões do mundo –, pois a abundância institucional de participação, de processos eleitorais e de consultas (recall, referendos etc.), contrasta abertamente com os imperativos do chamado mercado. Este, por meio de seus porta-vozes, como despudoramente se vê em nosso Brasil, sequer os rituais eleitorais convencionais têm admitido e respeitado.
Sem dúvida, na Venezuela o tão endeusado mercado também não admite e não faz muita força para mascarar o fato. Todavia, a nação vizinha possui um governo e forças políticas e sociais que, em meio a muitas limitações, têm conseguido incrementar a democracia e relativamente resguardá-la da ingerência do mercado. As reformas democratizantes têm seguido seu curso, dilatando o acesso a direitos à cidadania política, social e econômica.
Isso em meio a um verdadeiro caldeirão de boicotes, pressões exercidas para manutenção ou recuperação de privilégios, por parte das corporações multinacionais, das finanças, de governos do centro capitalista, de pequenas faixas medianas, das oligarquias políticas e da burguesia do país. Não raro, pressões conduzidas por tentativas golpistas, pelo uso desenfreado da violência e da danificação de bens e equipamentos públicos.
Por aqui, anos a fio, fazendo coro irrefletido com a linha editorial dos conglomerados de comunicação, amplos setores do universo politicamente progressista (incluindo segmentos autodeclarados de esquerda e socialista), têm disseminado não poucas bobagens sobre a Revolução Bolivariana.
Não surpreende. Correspondem a uma turma que não sabe o que é imperialismo, não têm a capacidade de mapear as características, os interesses e os sentidos vende pátria das burguesias domésticas de nuestra América, nessas terras de séculos de "solidão". Não sabem onde estão pisando e operam, na melhor das hipóteses, com um socialismo livresco, importado dos centros intelectuais do capitalismo, sem a devida mediação criadora e intelectual ativa.
Isso posto, retomando o assunto que nos interessa, me parece que os desafios e dilemas da Revolução Bolivariana na Venezuela revelam duas dimensões fundamentais, em termos de opções restritas que a América Latina possui.
De um lado, como destacado no início, trata-se do embate entre democracia e capitalismo. Se em circunstâncias muito peculiares esse casamento foi possível – particularmente nos países europeus do centro capitalista, durante a Guerra Fria –, há algumas décadas diferentes fenômenos políticos demonstram total antagonismo.
A espoliação financeira e dos conglomerados multinacionais mundo afora revela a consolidação de um núcleo de poder que atua em escala internacional, nada cioso com práticas democráticas, dispensando-as já mesmo nos países do capitalismo central. Na periferia do sistema, soberanias ameaçadas e violadas seguidamente. Líbia, Síria, Iraque, Cuba, Venezuela, eis alguns casos mais dramáticos.
De outro lado, do ponto de vista da base produtiva, técnica e financeira, os desafios e dilemas da Revolução Bolivariana, não circunscritos à eleição de hoje, apontam para dois caminhos, razoavelmente naturais:
1. O recuo ou a derrota bolivariana, erodindo as conquistas sociais, as metas distributivas e o exercício de controle sobre os excedentes econômicos, com potencial reversão inclusive da soberania política alcançada. Aumento da miséria, desapossamento popular sobre a participação nos processos decisórios, desnacionalização do parque produtivo. Neocolonialismo galopante.
2. O avanço bolivariano, com uma inevitável semiautarquização, por tempo imprevisto, como Cuba foi obrigada a fazer e ainda lhe é, em boa medida, imposta pelos constrangimentos internacionais do antigo bloqueio erguido pelos EUA. As consequências não são insignificantes, afetando o acesso e a produção de bens de consumo mais elaborados, com maior densidade tecnológica.
Em todo caso, na medida das possibilidades de cada nação que se depara com essas alternativas na contemporaneidade, no seio da periferia, com o tempo, recentes experiências como a chinesa e a cubana indicam algumas possibilidades de arranjos produtivos assentados no esquema empresarial de joint ventures, compartilhando saberes e equipamentos técnicos sob domínio exclusivo das corporações multinacionais.
Havendo margens políticas internas e externas, uma revolução das estruturas sociais e econômicas, em nação periférica, pode ensejar novos e menos onerosos termos de intercâmbio comercial e tecnológico com as potências capitalistas, contribuindo para a elevação da produtividade, o domínio técnico-cientifico e a promoção de bem-estar social.
Há que se ter consciência de que o caminho é árduo e fica na dependência da correlação de forças internacionais, bem como dos recursos à disposição dos países da periferia que seguem a senda revolucionária a favor do desenvolvimento e da soberania.
A asfixia financeira e os constrangimentos militares e tecnológicos externos são variáveis muito restritivas. Alguns países, como o Brasil, teriam condições um pouco menos inóspitas, dada a diversidade de recursos que detém, oferecidos pela natureza, a grandeza territorial, o mercado consumidor e a latente massa crítica e técnica existente.
Em todo caso, é dureza nossa vida morena de latino-americanos, inseridos subalterna e perifericamente no sistema político e econômico mundial. Pero, hay que pelear, como nuestros hermanos bolivarianos na Venezuela têm feito. Que a votação de hoje transcorra com paz e contribua no caminho soberano do país e do seu povo.
Roberto Bitencourt da Silva – historiador e cientista político.