É estarrecedor, por exemplo, que em pleno século XXI centenas de deputados estaduais cantem, de mãos dadas e entusiasticamente, um não sei que hino religioso-evangélico, em pleno horário de trabalho na Assembleia Legislativa do Estado (constitucionalmente laico) do Rio de Janeiro. Infelizmente, essa força obscurantista cresce não só no parlamento fluminense, mas em toda política brasileira, fato que conflita frontalmente com a certeza, moderna por excelência, de que da política a religião deve estar excluída.
Não estará errado quem disser, lucidamente, que por trás da ladainha neofundamentalista há, imediata e objetivamente, o projeto de poder de alguns poucos que, apenas instrumentalmente exploram o divino para melhor obterem êxito mundano. Não é mistério que engôdos para manipular a opinião pública é lugar-comum na luta pelo poder. Quem conhece minimamente a “nossa democracia” sabe muito bem que basta plantar sordidamente, e regar insistentemente certas ideias em parte substantiva da população para ideologizá-la em benefício próprio. E uma vez que a alienação fundamentalista estrategicamente criada por uns poucos em função do poder é só uma variante da sempiterna alienação produzida pelo macroprojeto de poder do capital, talvez seja mais oportuno investigar a particularidade da vulnerável população tupiniquim sobre a qual esses oportunistas fundamentalistas estão lançando suas podres sementes para crescerem qual erva daninha.
Procurando, na presente conjuntura, pelo “sentimento nacional” que estaria unindo a um só tempo gregos e troianos, melhor dizendo, fundamentalistas retrógrados e modernistas progressistas, encontraremos, em primeiro lugar, a indignação coletiva com a corrupção política. E, em segundo e remediativo lugar, temos a exigência outrossim coletiva de que haja ética na política. Exemplos emblemáticos e históricos, tais como junho de 2013 e os movimentos pró-impeachment de 2015 e 2016, porventura não foram, cada qual com sua distinta qualidade, clamores massivos no sentido de se eticizar a política para então ser possível controlar, quiçá erradicar a afrontosa e sistemática corrupção?
Entretanto, para frustração geral, a corrupção e a imoralidade na política não desapareceram. Ao contrário, estão mais livres e corrosivas do que nunca. Ai está o ponto que merece especial atenção para se entender a receptividade religiosa-fundamentalista por parte da população brasileira. O fracasso popular – tanto o dos progressistas de 2013 quanto o dos reacionários de 2015 e 2016 – diante da corrupção política pode explicar o fato de algumas pessoas deixarem de confiar nelas mesmas, enquanto indivíduos, enquanto cidadãos, para cumprirem tal empreitada, e, desesperada e irracionalmente, começarem a crer que essa tarefa é sobre-humana, digna apenas de um Deus, ou, o que o projeto de poder por trás disso quer que concluam, digna dos oportunistas vigários mundanos dEle.
Aqui é salutar lembrar de Nicolau Maquiavel, não só porque foi precursor do pensamento político moderno, revolucionária e escandalosamente apartando o longevo casamente entre política e moral, mas sobretudo – o que aqui mais deve nos interessar – porque ele viu que as pessoas só conseguiram um dia se sujeitar às leis civis, isto é, as leis que as próprias pessoas dão a si mesmas, porque, antes, foram habituadas pelas religiões a aceitarem e seguirem mandamentos que valiam e deveriam valer para todos. As religiões, dessa perspectiva maquiaveliana, seriam um estágio pré-civilizatório fundamental à civilidade.
Esse apontamento de Maquiavel sobre o papel das religiões na construção da dimensão propriamente civil pode iluminar o fato de, hoje, algumas pessoas estarem reagindo à corrupção generalizada recorrendo à religião em forma de um clamor desesperado por uma reeducação cívica aplicada pelo “mestre supremo do universo”. O “Não roubarás”, por exemplo, que “coxinhas” e “petralhas” estão exigindo dos seus representantes políticos, em um plano absolutamente laico pode ser inobservado, como de fato o é, quando se acredita que se pode ficar legalmente impune. Já num plano religioso, onde há um Deus onisciente, mesmo que ninguém no mundo saiba da corrupção cometida por alguém, ainda assim o Ser supremo saberá; dela nunca se esquecerá; e cedo ou tarde fara justiça.
Essa ideia de que Deus é o maior, mais presente e eficiente juiz; de que sua “governança” celestial será a melhor ou única solução; é tão ingênua quanto primitiva. Todavia, explica porque historicamente, no árduo e longo processo de autonomização da humanidade, as pessoas sempre sobrehumanizaram alguns de seus iguais para se assegurarem de que “um poder maior” do que elas lhes protegesse. Daí se sujeitarem ao pai, ao padre, ao rei, ao ditador, ao representante político, e por aí vai; pois sem nenhum poder superior e inquestionável as observando e constrangendo não encontrariam, não dariam a si mesmas restrições suficientes no sentido de não se corromperem.
O paralelo político dessa histórica autonomização humana é a evolução das formas de governo: respectivamente: teocracia, monarquia, aristocracia e democracia. O que os fundamentalistas religiosos talvez mais queiram seja apenas reiniciar o ciclo; enquanto os progressistas se negam terminantemente a isso. Porém, lembrando Maquiavel novamente, cada uma das diversas formas de governo se coloca como “a” solução aos problemas, temporal e inevitavelmente, trazidos pela anterior: a monarquia solucionando as insuficiências da teocracia; a aristocracia, as da monarquia; e a democracia, as da aristocracia. Só que a democracia, assim como as demais formas, com o tempo também se torna problemática e insustentável, e, também como as demais, precisa de uma solução extrínseca.
Maquiavel é taxativo – e talvez devêssemos atentar mais para a sua revolucionária sabedoria: a corrupção trazida pela democracia não tem como ser sanada democraticamente. Antes, a democracia apenas a agravará. Se aceitarmos a necessidade de um expediente extraordinário à democracia para resolver os problemas que ela mesmo coloca, as opções seriam duas: ou regride-se reacionariamente a uma forma de governo prévia – a teocracia, a monarquia ou a aristocracia -; ou, em vez disso, progressivamente, introduz-se uma nova forma de governo que possa resolver a crise democrática. Se são essas as opções, temos que os reacionários fundamentalistas já têm a deles, enquanto que os progressistas, infelizmente, ainda não.
Diante do perigo do fundamentalismo teocrático, os progressistas, inclusive os melhor intencionados, insistem na democracia sustentando que nenhuma outra forma de governo é aceitável, independente da circunstância. Interessante é que os progressistas, nessa insistência, são tão fundamentalistas quanto os religiosos; apenas colocam outro deus no pedestal: em vez do perfeito Deus celestial, o imperfeito anjo caído da democracia. Nesse sentido, e paradoxalmente, os neofundamentalistas religiosos são algo menos conservadores que os progressistas: ao menos relativizam democracia e ousam se arriscar em uma outra forma de governo. Algo de salutar no neofundamentalismo religioso – e a a única! – é o fato de aceitarem com menor resistência os limites imanentes da democracia, ainda que seu imperdoável vício seja eleger imediatamente o transcendente.
Esse apego dos progressistas à democracia porventura não poderia ser chamado de fundamentalismo laico? Afinal, como categorizar essa fé cega, essa crença inarredável de que o melhor é o único caminho, em toda e qualquer circunstância, é o democrático? Ora, para quem sabe que a “nossa democracia”, cujo real nome é democracia parlamentar burguesa, é uma forma de governo criada pela casse dominante em benefício próprio para que a única participação da classe dominada no poder se dê no expediente paliativo das urnas, e para que contra todas as demais tentativas dessa classe desfavorecida de participar do poder sejam reprimidas legal e militarmente, enfim, para quem conhece a essência dessa “nossa democracia”, defendê-la é mais do que fundamentalista, é burrice!
Com efeito, há um pecado comum aos fundamentalistas religiosos e aos progressistas laicos: ambos não aventam uma nova e mais eficiente forma de autogoverno mundano. Aqueles, recolocam Deus no comando da sociedade; estes, insistem na forma atual, problemática como bem podemos observar. Que os fundamentalistas assim o façam, não deve causar espanto. Agora, que os progressistas estejam estagnados na ladainha democrática merece uma crítica contundente, afinal, caberia a eles, que defendem o progresso, não permanecerem beatos do já existente para então realizarem de fato o progresso; trazerem o novo, o melhor; em suma, materializarem a evolução.
Os progressistas deveriam criticar a si mesmos, pelo menos tanto quanto criticam os reacionários. Defendendo cega e ingenuamente a democracia, apenas colocam o seu “deus fundamental” para se digladiar com o “deus fundamental dos seus oponentes, e a arena política, por consequência, resta absolutamente fundamentalista. Se os progressistas deixassem de demonizar os ídolos dos reacionários para, em vez disso, trazerem ao mundo não o velho e desgastado deus democrático, que no atual estado das coisas todos deveríamos rejeitar, mas sim uma nova e melhor forma para a realmente resolver o que é mais crítico na nossa sociedade mundana, talvez os deuses dos fundamentalistas caíssem mais facilmente de seus falsos pedestais. Porém, enquanto os progressistas não fazem bem esse seu trabalho de reificar o progresso, os reacionários fazem o deles, notoriamente miserável e velho. E tanto pior para todos.