Quem afirma todo isso, no Estado espanhol e na Galiza, fai parte de um movimento “de esquerda” (vamos poupar siglas) inequivocamente alinhado com um outro projeto nacional, o espanhol, cuja afirmaçom inclui o que em época de Lenine se denominava “anexaçons”; quer dizer, a incorporaçom de territórios e povos nacionalmente oprimidos.
Comecemos por lembrar que a forma de Estado-naçom moderna é um produto do desenvolvimento histórico da sociedade capitalista, constituindo a forma em que se organiza o mercado mundial. Esse elementar facto nom impediu que o próprio Karl Marx defendesse a constituiçom de estados-naçom modernos que fossem além das formas arcaicas da institucionalidade no seu tempo (por exemplo, na sua naçom, a Alemanha), ou como forma de rutura e afirmaçom nacional por parte de povos oprimidos (por exemplo, a Irlanda ou a Polónia da segunda metade do século XIX).
Nom deveria ser necessário explicar que, sendo a principal expressom jurídico-política capitalista, nom haverá superaçom da forma Estado-naçom enquanto nom houver superaçom do seu conteúdo mercantil no palco da concorrência mundial que caracteriza o atual modo de produçom, ou algumha mudança substancial no seu desdobramento histórico, que até hoje nom se enxerga.
Dito o anterior, vale a pena lembrar duas cousas:
1º Contra o que muito marxista escolástico afirma, nom é verdade que Marx negasse a importáncia dos direitos democrático-burgueses. Ao invés, valorizou-nos como grande avanço histórico e reivindicou-nos como parte de aquilo que denominou “emancipaçom política”. Entram aí os que costumam chamar-se “direitos humanos”, que as constituiçons burguesas incorporárom em funçom dos interesses da nova classe dominante e nom dos interesses “gerais” da humanidade. De facto, Marx nega o seu caráter geral e inscreve-os nas formas institucionais e jurídicas que interessam à burguesia contra a nobreza primeiro e contra a ameaça do ascenso histórico do proletariado depois. Porém, reconhece o seu caráter progressivo em relaçom à situaçom anterior.
2º Também contra o que muito dogmatismo devedor de versons deformadas do marxismo afirma, Marx nunca desprezou a questom nacional, nem afirmou que o socialismo devesse trazer o fim das naçons. O comunismo deveria ultrapassar a forma estatal que caracteriza a organizaçom das naçons no mundo de hegemonia capitalista, mas nom as diferenças lingüístico-culturais nem os direitos dos povos. Existem claros exemplos disto que afirmamos na obra de Marx, incluindo a burla sarcástica contra as posiçons cosmopolitas de alguns líderes da esquerda do seu tempo.
Todos esses direitos, que costumamos chamar “democráticos” ou “humanos”, constituem para Marx o que ele denominou “emancipaçom política”, novidade da revoluçom democrático-burguesa frente às numerosas opressons anteriormente normalizadas. Porém, o programa revolucionário socialista aspira a ir mais longe, concretizando o que Marx chama “emancipaçom humana”: a superaçom da sociedade de classes, mediante o fim da divisom do trabalho, da propriedade privada e da exploraçom como fundamento das relaçons sociais visadas para o lucro. Isso daria verdadeira concreçom aos “direitos humanos” que a burguesia nom estava, nem está, em condiçons de realizar: a verdadeira liberdade, a verdadeira igualdade e a verdadeira fraternidade que no capitalismo som condicionados polos privilégios efetivos da classe dominante.
Basta ler o livrinho Sobre a questom judaica, de um ainda jovem Marx, para compreender a perspetiva do autor em relaçom aos direitos democráticos formulados no programa burguês, nos quais devemos inscrever os que assistem a todo povo oprimido. Tentar suspender quaisquer direitos democráticos em funçom do interesse concreto de umha burguesia anexionista ou expansionária, como a esquerda espanhola fai, equivale a alinhar com os inimigos da “emancipaçom política”, o que supom um recuo histórico evidente.
Basta ver a composiçom das manifestaçons pró-espanholas contra a autodeterminaçom catalá nestes meses para comprovar o seu caráter arcaico e ultrarreacionário. Ocultar-se, como a chamada “esquerda-tricórnio” fai, na defesa abstrata dos mais elevados objetivos da “emancipaçom humana” para justificar tal estratégia involucionista supom desvincular-se do princípio marxista de ultrapassar, nom negar, esses limitados direitos democráticos.
Achamos que a posiçom chauvinista da chamada esquerda espanhola, quando alinha com a sua própria burguesia na beligerante campanha contra os direitos nacionais cataláns, reflete precisamente essa fraude tantas vezes cometida por correntes de esquerda ligadas aos nacionalismos opressores de Estado. Em nome de utópicos objetivos dependentes da vitória revolucionária na “metrópole”, negam-se direitos democráticos dos povos oprimidos que, no pior dos casos, manteriam esses povos nos contornos da hegemonia capitalista, mas que poderiam abrir também novas perspectivas de disputa em termos de hegemonia de classe.
Sem cairmos em nengum etapismo, também a história nos mostra que só a partir da afirmaçom e defesa concreta desses direitos democráticos é que a esquerda poderá aspirar a ir mais longe. Ao invés, o apoio —ativo ou passivo— às posiçons chauvinistas do grande capital espanhol nom só reforça os limites políticos do Reino de Espanha, como contribui para a estabilidade do sistema de exploraçom capitalista numha Europa em clara deriva reacionária.