Essa conjuntura advém das contradições que romperam a cena política brasileira em 2013, elencadas, por um lado, a partir das necessidades básicas e falta de prioridades na política pública brasileira diante dos investimentos na Copa do Mundo entre nós; e por outro, conformados nas hordas conservadoras e reacionárias da pequena burguesia que alimentavam, já há algum tempo, o fascismo cotidiano e que identificavam nos direitos sociais em disputa o problema da sua decadência. Esse segmento social conseguiu abrir um novo ciclo da direita no Brasil. Contudo, esse escaldante fenômeno social não foi rapidamente identificado, portanto, tergiversou-se sobre o papel dos conflitos e quem estava em disputa pelas ruas do país, permitindo que a “aberração” obscurantista tomasse conta do espaço público.
Nesse contexto, a quadra da luta de classes impactada pelo apassivamento governista, e por uma imensa dificuldade em desvelar a cena política brasileira por parte da esquerda socialista, confundiu o sentido das contradições em curso numa conjuntura cada vez mais turva e com uma rápida modificação na relação de força entre os blocos em disputa: a direita em seu novo ciclo, o governo burgo-petista, a esquerda socialista e o revolucionarismo pequeno-burguês de algumas organizações do campo da esquerda.
Durante esse longo período, quando a conjuntura estava em chamas, o processo da conciliação de classe foi reafirmado no velho estilo do pacto da autocracia burguesa tão presente na história política do Brasil, não permitindo que o PT e a CUT entendessem qual era a contradição principal e secundária das lutas em curso. Esperou-se nas mesas palacianas que os acordos realizados pela cúpula, estabelecidas no balcão da pequena política, solucionassem os graves problemas políticos e seus vetores econômicos (incentivados ou não). O lapso temporal, na célere conjuntura, foi domado pelo impactado da presença de massa das hordas proto-fascistas; o balcão da política avançou com o comportamento de lumpesinato do parlamento; as principais frações da burguesia, embora desarticuladas dos negócios da política no parlamento, perceberam que o governo ilegítimo e o Parlamento de comércio aprovavam ao toque das ações de exceção o mais genuíno produto dos seus interesses. Criou-se a zona de conforto para que a burguesia interna, consorciada ao imperialismo, mesmo com muitas contradições entre suas frações, pudesse criar condições para ampliar e revalorizar as taxas de lucro no curto prazo. O bloco burguês conseguiu o que queria: acelerar a conquista do Estado para a nova formatação da sua ordem jurídica. Construíram a ruptura dentro da ruptura e estão “aprimorando” a democracia formal para “legalizar” as suas ações de classe e criminalizar a luta social.
A conjuntura em curso, de alto impacto pelas contradições da disputa política, tem “renovado” a caracterização do fascismo. Dentro da sua prática cotidiana, o fascismo se apresenta a partir da xenofobia, do ataque aos sujeitos sociais que são enquadrados no campo das opressões, em um novo pentecostalismo que centrou-se na adoração ao deus Manon (culto ao dinheiro), com ideias e práticas regressivas na vida social, no comportamento obscurantista e na influência dentro da disputa ideológica que tem movimentado a mídia burguesa. Estamos vivendo sob o ataque de hordas que querem a regressividade nas artes, na cultura, nas ciências e que tentam avançar para construir uma cultura reacionária que colocará em risco as relações humanas ao se consolidar seu projeto de barbárie capitalista. Contudo, permanece ainda muito válido a diversa caracterização do fascismo apresentado pela teoria social marxista. Portanto, a partir dessa lógica categorial, e sua aderência na realidade concreta, ainda não estamos vivendo um ciclo clássico do fascismo entre nós.
O campo da disputa de classe apresenta uma relação de força favorável ao bloco burguês e seus agentes. Essa correlação, em aberto, demonstra a necessidade histórica de construção de um bloco proletário que precisa movimentar os trabalhadores, os pobres da periferia e os oprimidos de várias conformações para tirar o protagonismo político da burguesia interna e derrotar as ações do fascismo cotidiano. É dentro dessa relação de força que se colocou, de forma decisiva, o papel do judiciário e do ministério público na criminalização do ex-presidente Lula. Agindo de forma seletiva, orientados por um profundo preconceito de classe, alargando as balizas da autocracia burguesa, essas agências do Estado capitalista operaram com as diversas manipulações políticas e ideológicas para criar o ápice do processo de reconfiguração da ordem capitalista e sua democracia formal: a prisão de Lula.
Esse confronto promovido pelo aparato de Estado, a serviço da disputa ideológica, não previa que a classe trabalhadora, os pobres e oprimidos movimentassem a esquerda brasileira para agir de forma unitária, possibilitando a construção da mais ampla unidade em defesa das liberdades democráticas e dos interesses populares. Está sendo construído o necessário enfrentamento. Trabalhadores e movimentos populares começaram a desvelar a cena política; cercaram Lula de solidariedade de classe, afirmaram que podemos resistir e enfrentar o inimigo onde ele se encontrar. A batalha de São Bernardo, em São Paulo, elevou a política para um novo patamar da relação de força. Contudo, uma lição se mostrou muita viva: as praças e as ruas teriam sido os lugares mais qualificados para enfrentar o bloco burguês em vez da conciliação de classe e da promiscuidade da política.
A burguesia, com seu aparelho de Estado, nunca informou que está prendendo os divergentes por questões políticas. No Brasil do século XXI, o discurso da corrupção tem sido o combustível mais explosivo que a lógica corrupta do Estado capitalista encontrou para tergiversar sobre a política e construir novos ciclos de poder, colocando o cabresto nos lugares comuns como nova roupagem para dominação dos subalternos. Todavia, dessa vez, abre-se a possibilidade para que os trabalhadores e o povo pobre possam entender que o combate a promiscuidade do Estado capitalista não tem fim dentro da ordem do capital, precisamos avançar na autoconstrução proletária.
A ordem do capital burlou a constituição, feriu a democracia formal, construiu a ruptura dentro da ruptura institucional e golpeou o chamado Estado de direito do fetiche capitalista. A contradição de classe está afirmando que precisamos tirar as devidas lições desse processo. Temos muitas hipóteses, contudo, algumas foram desveladas: a primeira, é que o Estado capitalista é uma ditadura de classe; a segunda, é que o processo de exceção das regras da ordem burguesa se constrói de forma paulatina e que a conciliação de classes fermentou a ampliação desse quadro; a terceira, Lula, agora descartado, foi identificado como inimigo de classe. Portanto, no limiar do século XXI, o ex-presidente se transformou em um preso político do novo ciclo da direita no Brasil. Portanto, a defesa da sua liberdade e dos seus direitos políticos pode ser um passo inicial para a construção da frente única contra as contrarreformas, pelos direitos dos trabalhadores/as, argamassa necessária para derrotar as pautas regressivas, o obscurantismo e avançar na construção de uma plataforma de lutas que movimente a classe trabalhadora com toda as suas especificidades.
A possibilidade da unidade das forças populares que está em construção no Brasil, em especial a partir do processo de prisão do ex-presidente, tem que levar em conta o projeto dos trabalhadores/as, a situação dos oprimidos/as e o campo de luta que queremos construir. Afinal, abre-se uma possibilidade a partir desses momentos de condensação de crises que estamos vivendo, para que o bloco proletário possa despertar para lutar pelas pautas progressistas, agindo com firmeza e determinação. No primeiro momento, dentro dos marcos da desobediência civil e no segundo momento, lutando pelo Poder Popular.
Milton Pinheiro é Cientista Político, pesquisador da história política brasileira, professor da Universidade do Estado da Bahia e autor/organizador, entre outros, do livro Ditadura: o que resta da transição. São Paulo: Boitempo, 2014.