Ironia e irreverência sempre marcaram a trajetória pessoal e teórica do sociólogo nascido em 1916 (a 28 de agosto) e que não chegou a completar 46 anos (faleceu a 20 de março de 1962), mas nos deixou uma obra original, fecunda e instigante, elaborada especialmente no marco das suas atividades acadêmicas na Universidade de Colúmbia, a que se vinculou a partir de 1947 *.
Acadêmico sim, academicista nunca: num tempo em que a sociologia norte-americana era dominada pelo sofisticado conformismo do estrutural-funcionalismo de Talcott Parsons (1902-1979), exaltando as suas “objetividade” e “imparcialidade”, e os professores iam à universidade de terno e gravata, Mills demoliu nada diplomaticamente a regência intelectual parsoniana, explicitou francamente as suas posições de esquerda (v.g., a sua simpatia pela Revolução Cubana e os seus juízos na Carta à nova esquerda, de 1960) e, vestindo jeans, deslocava-se da casa ao trabalho de motocicleta – um quase escândalo. Aliás, motocicleta era uma das paixões de Mills: sua primeira viagem à Europa (1956) teve por objetivo fazer um curso na fábrica da BMW, em Munique, e ele exibia o seu diploma de mecânico de motos com grande orgulho.
A obra de Mills, legatária do chamado radicalismo da “era progressista” norte-americana dos primeiros anos do século XX e em cuja base está uma eclética mescla de Marx e Weber (porém um “ecletismo bem temperado”, para tomar a sugestiva expressão de Gabriel Cohn a propósito de Florestan Fernandes), é um dos componentes mais ponderáveis da emergência e expansão da sociologia crítica nos Estados Unidos e, como tal, foi analisada em significativa documentação, de que são ilustrativos, por exemplo, os trabalhos pertinentes de George Novack e Irving L. Horowitz (ao que sei, inéditos em português). No entanto, não me parece que a partir dela se tenha constituído uma qualquer “escola” sociológica, o que não equivale a minimizar a sua influência, seja na academia (norte-americana ou não), seja sobre personalidades e movimentos sociais – recorde-se que Fidel Castro disse ter lido, ainda na Sierra Maestra, A elite do poder e que as autoridades norte-americanas, confrontadas com as manifestações contestatárias do final dos anos 1960 nos campi não tenham hesitado em qualificar Mills, então já falecido, como um dos inspiradores dos jovens rebeldes.
E é indiscutível que se trata de uma obra de peso, sólida e densa. Dentre as suas várias dimensões, duas merecem destaque. A primeira diz respeito à teoria sociológica: a contribuição de Mills foi além da crítica corrosiva ao generalizado empirismo rasteiro da sociologia norte-americana e ao pensamento de Parsons – a “grande teoria” –; ademais de apresentar, em alternativa à divulgada por este, uma leitura diversa de Weber, Mills propôs um diferente estilo de pensar e exercitar a sociologia, sublinhando a sua função social ou, mais precisamente, a responsabilidade social do sociólogo. E a segunda se mostra no seu esforço para analisar a sociedade norte-americana do seu tempo, com uma perspectiva abrangente do seu particular sistema de estratificação social, esforço que já comparece na sua pesquisa, de 1948, sobre as lideranças sindicais – The New Men of Power. America’s Labor Leaders. New York: Harcourt, Brace & Co., 1948 – e que se completa em A elite do poder e A nova classe média (White Collar). Não me parece possível compreender os Estados Unidos de meados do século XX sem o recurso a tais trabalhos, ainda que se possa discordar de muitas das suas inferências.
Marxistas ilustres acompanharam com atenção o labor de Mills (que, aliás, manteve cordiais relações com muitos deles, como os ingleses R. Miliband, T. B. Bottomore e E. P. Thompson) e com ele aprenderam. Na Europa, por exemplo, Lukács via em Mills um pesquisador que enfrentava seriamente as questões da alienação e a ele se refere (em Para uma ontologia do ser social) como, na América do Norte, “de longe o crítico mais importante do sistema de manipulação”; nos Estados Unidos, o exigente Paul M. Sweezy, avaliando A elite do poder em ensaio publicado em setembro de 1956 na Monthly Review, fez – sem prejuízo de reservas teóricas e categoriais – uma apreciação extremamente positiva do livro e ressaltou a coragem intelectual do autor.
No que toca à sua relação com o marxismo, embora a tenha sinalizado em vários momentos do seu processo de elaboração teórica, é todavia em Os marxistas que Mills a explicita mais clara e inequivocamente. Voltemos rapidamente a este livro que, lido hoje, ainda se revela tão instigante e útil quanto problemático.
Nas suas quase 500 páginas, torna acessíveis ao leitor textos escolhidos de Marx-Engels e de autores a eles vinculados, que são tomados por Mills como referências da tradição marxista até o início da segunda metade do século XX. Esta verdadeira antologia se abre com excertos de Marx-Engels e os materiais que se lhe seguem estão agrupados conforme uma distribuição que responde à visão que Mills tem da diferencialidade da constituição da tradição marxista (que ele resume no capítulo 7): há uma seção referida à social-democracia alemã (Kautsky, Bernstein e Rosa Luxemburgo), a seguinte é relativa ao “eixo bolchevique” (Lenin, Trotsky), depois a que diz respeito ao stalinismo (com fragmentos de Stalin); na sequência, Mills arrola materiais que designa como “críticos do stalinismo” (excertos premonitórios de Rosa Luxemburgo, trechos de R. Hilferding e F. Borkenau e reflexões de Trotsky e I. Deutscher) e avança reunindo textos posteriores à denúncia do “culto à personalidade” (1956), apresentando passos de N. Kruschev, Mao Tsé-Tung e Palmiro Togliatti; enfim, antes de concluir indicando algumas prospecções, retoma autores que considera “fora do bloco” (E. Kardelj e “Che” Guevara).
É cabível a discussão acerca da seleção de textos feita por Mills – nem sempre as suas escolhas são as mais procedentes e, como em toda antologia, muitos autores significativos acabam por ficar de fora; contudo, em Os marxistas os omitidos não são apenas significativos: são importantíssimos (embora as suas notas ou passagens pontuais os registrem, não há nenhum texto, p. ex., de K. Korsch, G. Lukács e A. Gramsci). Mas é de convir que a seleção de Mills é congruente com a concepção geral que ele tem da obra de Marx-Engels e do desenvolvimento do seu legado – concepção que ele apresenta especialmente nos capítulos 2 e 4 (depois de sugerir, no capítulo 1, por que nem o “liberalismo” e a “ciência social” foram capazes de, no seu entender, examinar adequadamente o marxismo) e antes de formular as suas críticas a Marx-Engels (resumidas nas 30 páginas do capítulo 6).
Deixo de lado essas críticas, nenhuma delas original, com Mills centrando-as principalmente no que designa como “modelo de Marx” (que qualifica, a meu ver, erroneamente como do “capitalismo vitoriano”), porque o balanço global que faz da obra marxiana é francamente positivo (como se constata no capítulo 2: “Louvor a Marx…”) e porque, ao tratar do essencial – isto é: do método de Marx –, respondendo à questão de se este método foi superado, ele escreve: “Minha resposta a isso deve ser clara: não. Seu método é uma indicação e uma contribuição duradoura para as melhores formas de reflexão e de indagação sociológicas existentes” (p. 137); paradoxalmente, na sequência imediata desta afirmação fundamental, Mills faz tolas observações sobre dialética, pensando a dialética de Marx a partir das chamadas “três leis” (cf. p. 137-138) – o que tão somente sinaliza as suas próprias limitações filosóficas.
Para Mills, no que chama de “idade moderna”, os referenciais do pensamento político-social são o liberalismo (na sua versão clássica) e o marxismo. Mas, para ele, no século XX, o liberalismo assumiu a herança do conservadorismo clássico (o de E. Burke): “não há um conservadorismo coerente que não seja uma variedade do liberalismo” (p. 19). Por outra parte, ele considera que “o que há de mais valioso no liberalismo clássico está incorporado de forma muito coerente e frutífera no marxismo clássico” (p. 17) – o que se compreende porque, valorizando na obra de Marx o racionalismo e o humanismo, Mills a reconhece como parte da cultura europeia, encerrando “o humanismo secular do Ocidente, sistematicamente, como suposições morais profundas e relevantes” (p. 27).
Mills concebe a obra de Marx como parte constitutiva da ciência social. E o diz de um modo que me parece essencialmente correto: “Há […] ciência social: sem a obra de Marx e outros marxistas, ela não seria o que é hoje; apenas com essa obra, ela não teria a qualidade que tem. Quem não se viu às voltas com as ideias do marxismo não pode ser um cientista social competente; quem acredita que o marxismo encerra a última palavra, também não o pode ser” (p. 13; itálicos não originais). Diz mais: “Para nós, hoje, a obra de Marx é um ponto de partida e não uma visão acabada do mundo social que estamos tentando compreender” (p. 138). Mills não vê Marx apenas como um “clássico” da ciência social: pensa “que o valor intelectual do marxismo clássico e do marxismo em geral não é meramente histórico; tem hoje uma relevância intelectual direta” (p. 34); pensa que a obra de Marx “continua viva, e continua sendo usada na convicção e na prática” (p. 110); pensa que o “marxismo vivo”, que se opõe ao marxismo que invoca os textos “clássicos” como “a Autoridade” (tal como o faz o marxismo “oficial”, o “marxismo-leninismo” de raiz staliniana), é uma “parte viva de qualquer ciência social contemporânea viável” (idem). Em resumidas contas: segundo Mills, Marx é necessário, mas não suficiente: para ele, na abertura dos anos 1960, sem Marx, nada se compreende do mundo contemporâneo e, apenas com ele, pouco se compreenderá.
Estou em crer que, em 1962 como em 2016, nenhum marxista sério discordaria/discordará responsavelmente de Mills, mesmo discrepando francamente (como é o caso deste signatário) das críticas que ele dirige a Marx. Claro: diversas seriam/são as questões a se colocar para esclarecer como a insuficiência marxiana haveria/haverá de ser superada. Certamente, então, outras expressivas discordâncias se revelariam entre Mills e os marxistas; mas este não é o ponto decisivo a salientar aqui. A mim, aqui, parece-me importante apenas registrar que o nível alto em que um sociólogo não-marxista como Mills dialogou com a tradição de Marx permitiu-lhe produzir um livro que, ainda hoje, lido criticamente, serve igualmente a sociólogos e a marxistas.
E este simples registro, considerada a relação que as ciências sociais hoje dominantes mantêm (ou não mantêm) com Marx e sua tradição, faz-me sentir saudades de Mills, no ano que em decorre o centenário do seu nascimento.
* Se Mills escreveu muito, diga-se que os seus principais títulos foram traduzidos e lançados no Brasil, na década de 1960 e com várias reedições, por Zahar Editores, do Rio de Janeiro: As causas da próxima guerra mundial, A verdade sobre Cuba, A elite do poder, Poder e política, A imaginação sociológica e A nova classe média; o livro que abordarei mais adiante, publicado originalmente no ano de sua morte, também saiu entre nós àquela época (Os marxistas. Rio de Janeiro: Zahar, 1968; as citações feitas abaixo referem-se a páginas desta edição, mas revisei algumas delas com base na edição americana: The Marxists. New York: Dell, 1963). A mesma casa carioca publicou, naqueles anos, a seleta weberiana que Mills preparou com Hans H. Gerth (1908-1978): Max Weber. Ensaios de sociologia e um trabalho posterior de ambos está igualmente traduzido: Caráter e estrutura social (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973). No volume 48 da coleção “Grandes Cientistas Sociais” – Wright Mills/Sociologia (S. Paulo: Ática, 1985) –, organizado por Heloisa Fernandes, encontra-se representativa amostra do pensamento de Mills, precedida de eficiente introdução. E há poucos anos foram novamente coligidas páginas suas, aos cuidados de Celso Castro (que para elas redigiu sintética e informada apresentação): Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009).
Fonte: Blog da Boitempo