A questão em debate não é banal.
O artigo nos remete a vários temas.
O primeiro, em minha opinião, é a relação conflituosa entre o espaço da vida privada e da vida pública.
Nas sociedades pré-capitalistas, ou seja, predominantemente, agrárias, a imensa maioria das pessoas não tinha quase espaço algum de vida privada.
Tampouco tinham possibilidades de intervenção na dimensão mais importante da vida pública, a política, porque não existia o direito de voto, as informações disponíveis eram restritas, e a maioria era explorada, oprimida e iletrada.
A vida social era organizada e dominada pelas Igrejas.
A maioria das pessoas não ia muito longe da aldeia em que nasceu.
O que acontecia na vida de cada um era parte da vida social, e falar sobre a vida dos outros consumia um bom tempo. Havia muito pertencimento porque todos estavam integrados em famílias alargadas que protegiam os seus membros, mas também os controlavam.
A sociedade burguesa subverteu estas relações com a migração em massa do campo para a cidade, e a crescente dissolução das relações familiares ampliadas.
Surgiram novas classes sociais, típicas da vida urbana, como a classe trabalhadora e as camadas médias.
A família nuclear – pai, mãe e filhos – passou a ser o espaço da intimidade.
O espaço da vida privada cresceu. Podemos viver vidas mais ou menos anônimas em nossos prédios, nas ruas de nossas casas, e até mesmo nos locais de trabalho.
Essa liberdade elevada da vida pessoal foi um progresso, em especial, para as mulheres, quando se integraram no mercado de trabalho e conquistaram a independência econômica.
Tanto quanto sei, existem duas grandes tradições políticas burguesas contemporâneas sobre este tema.
Na França e nos países de língua latina sob sua influência, se consolidou a ideia de que a vida privada das figuras públicas não deve ser do interesse de ninguém.
Nos países de cultura anglo-saxônica, como a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, prevaleceu o critério oposto: a vida privada das figuras públicas é investigada porque se considera que a coerência entre vida privada e pública, ou seja, a coerência entre o que se defende e o que se faz, é um valor insubstituível.
A maioria da esquerda da minha geração, aqueles que chegamos à vida adulta nos anos setenta, foi educada pelo critério francês, isto é, estrita separação. Observo, com satisfação, pelas reações de ontem, que a geração mais jovem pensa diferente.
Qual deve ser a posição da esquerda socialista do século XXI sobre estas duas tradições herdadas da cultura burguesa?
Não acredito que figuras públicas possam viver vidas privadas ocultas, ou camufladas.
E artistas são figuras tão públicas como as lideranças políticas.
Não se pode ter um compromisso com a luta contra a exploração e as opressões em público, e na vida privada ser machista, racista, homofóbico.
É uma questão de princípios.
Para a esquerda, os princípios são poucos, porém, devem ser invioláveis.
Quando alguém aumenta o seu grau de exposição pública, e passa a ter direitos ampliados, que resultam da posição que ocupam aqueles que emitem opiniões políticas, vêm, também, deveres maiores.
A politização dos temas do modo de vida, inclusive da dimensão subjetiva dos afetos, precisa ser uma causa da esquerda socialista e tem sido um progresso civilizatório.
O anonimato protege a possível duplicidade de critérios, portanto, a demagogia.
Foi curioso que o artigo de Gregório tenha tido repercussão no dia em que Cunha teve seu mandato cassado. Porque a explicação legal que levou à cassação de Cunha foi o fato de ter mentido o ano passado sobre a titularidade das contas que mantinha em um banco suíço com sua esposa e sua filha. Ele contava que estas contas estariam blindadas pelo sigilo bancário, e se deu mal. Elas revelaram uma duplicidade infame. O ultraje, o desplante, a afronta, o escárnio do ex-presidente da Câmara de Deputados que abriu o processo de impeachment, e cumpriu o papel aglutinador da maioria reacionária com um discurso moralizador, mas não conseguia explicar a origem de seu enriquecimento vertiginoso foi tão grande que a mesma maioria que o ergueu, ontem o derrubou.
Eu gostei do artigo do Gregório Duvivier, e penso que é um depoimento político.
Porque vivemos em uma época cínica e decadente.
A ideologia dominante é “o todos contra todos e salve-se quem puder”.
A luta pela felicidade foi reduzida à luta pelo dinheiro, a qualquer preço, porque ter princípios é considerado um privilégio de endinheirados ou excentricidade de otários.
E como a imensa maioria vive frustrada porque ganha pouco ou está desempregada, todas as relações sociais estão contaminadas pelo oportunismo e descartabilidade, inclusive, as relações amorosas.
E não me impressiona que o artigo tenha sido escrito na véspera do lançamento de um filme. A sinergia, a potencialização do filme pela oportunidade do artigo “confessional” me parece que deve ser uma escolha dos autores.
Faz parte, desde que os envolvidos estejam de acordo.
Gregório escreveu um texto delicado, educativo e até inspirador sobre o que pode ser uma relação amorosa respeitosa e saudável entre pessoas livres.
Isso é o que se deve esperar de alguém de esquerda.