Hoje, tudo isto mudou. Quando ouvimos um governo social-democrata falar em “reformas”, devemos traduzir o calão críptico para a linguagem mais chã que falamos todos os dias: esse governo está, na realidade, a falar em contra-reformas.
O “reformismo” dos nossos tempos é um frenesi de invenções neo-liberais como o restabelecimento das jornadas de 10, 12 e mais horas diárias, o aumento da idade da reforma, o aumento de propinas e taxas moderadoras, o pagamento de cada vez mais TSU dos patrões pelos trabalhadores e outras “novidades” que no limite deveriam levar-nos de volta ao tempo da escravatura.
A cassette neo-liberal martela todos os dias a opinião pública com o famoso slogan TINA: There Is No Alternative, não há alternativa. E, como é suposto não haver alternativa, todo o debate político se esvazia e todas as formas democráticas se tornam simples acessório cosmético para caucionar decisões já tomadas. Quando a democracia é abolida, como no caso da Turquia, não faz falta nenhuma (quem daria pela falta de algo que já foi deixando de existir?), e Erdogan é felicitado publicamente pelo líder do “mundo livre”, Donald Trump, por se ter desembaraçado desse estropício.
Quando falam em reformas, os eurocratas neoliberais do jaez de Dijsselbloem ou os seus sátrapas ibéricos referem-se a medidas para proporcionar ao capitalismo condições mais lucrativas — antítese absoluta das reformas sociais da velha social-democracia. Eles tornaram-se incapazes de mudar seja o que for para preservar o essencial e não lhes passa pela cabeça sacrificarem algum anel a pensarem nos dedos. A ganância é mãe da cegueira.
Depois, a realidade vinga-se cruelmente da cegueira. Subitamente, os nababos de Bruxelas descobrem que já quase ninguém os quer. Na Grécia, pulverizou-se o PASOK europeísta e corrupto, milhões votaram à esquerda (depois traídos pelo Syriza) e em qualquer momento milhões poderão virar à direita, para a “Aurora dourada”. Na Hungria, o Governo de Órban todos os dias humilha a União Europeia, seguro da sua impunidade. Na Áustria, a extrema-direita perdeu por uma unha negra a eleição presidencial. Na Holanda, Geert Wilders não chegou ao poder, mas andou perto e pulverizou o partido (“trabalhista”!) de Dijsselbloem. Em Inglaterra, Nigel Farrage não é preciso no poder, porque Theresa May trata de aplicar o seu programa racista e xenófobo. E os exemplos poderiam multiplicar-se ad infinitum.
Despertados em sobressalto pelas sirenes do fascismo, os nababos põem-se então a clamar “unidade, unidade”. Em França, o espantalho de Marine Le Pen serve-lhes para pedirem uma grande fraternidade republicana a votar por Macron, mas também lhes teria servido para pedirem a eleição de Fillon, gatuno e nepotista, drástico apertador dos cintos alheios. A receita é “mais do mesmo” – uma receita infalível para continuar a amamentar o populismo, a xenofobia e o fascismo.
Em Portugal, comemoramos no 25 de Abril a ruptura revolucionária. Mas não devemos comemorar a unidade balofa em torno desta democracia galinácea, que choca na sua capoeira os ovos da serpente fascista. As lutas de massas que podem salvar os últimos restos de democracia real precisam de clareza e divisão de águas.