Quem faz essa avaliação é o cientista político cubano Roberto Regalado, de 69 anos, fundador do Foro de São Paulo e representante do Partido Comunista do seu país nessa articulação, que reúne mais de cem organizações de esquerda e centro-esquerda na América Latina e Caribe. Entrevistado em San Salvador, capital de El Salvador, um país governado há oito anos por um movimento insurrecional de esquerda que trocou as armas pela política institucional –, Regalado admite que estamos vivendo, sim, o final de um ciclo político na região. Mas não no sentido utilizado pelos analistas da direita, que veem nos acontecimentos recentes uma prova do “fim da história” e do triunfo eterno do capitalismo.
O que ocorre, segundo Regalado, é o esgotamento das possibilidades de transformação política e social profunda nos marcos das instituições vigentes. A saída, para ele, é aprofundar a agenda das mudanças e trazer para o centro do projeto político da esquerda as formas de atuação política, como a democracia direta e participativa, desenvolvidas no contexto das lutas populares dos últimos vinte anos. “Está se fechando o ciclo progressista e se abrindo o ciclo revolucionário”, afirma Regalado, esclarecendo que se refere à busca da emancipação social pela via pacífica.
A entrevista, concedida na segunda-feira, dia 15, será publicada em duas partes. Esta é a primeira delas.
Opera Mundi: Qual é a sua explicação para o atual declínio dos projetos políticos de esquerda na América Latina?
Roberto Regalado: Para entender o que acontece é preciso retroceder um pouco no tempo. O ciclo político que marcou este início de século na América Latina tem sua origem numa situação paradoxal. Justamente no momento em que a União Soviética desmoronou e em que as forças de esquerda pareciam destinadas a desaparecer ou a mergulharem num longo período de refluxo, nesse momento, pela primeira vez na história, os movimentos populares e os partidos políticos ligados a eles começaram a ocupar espaços institucionais em toda a América Latina, ao mesmo tempo. Começaram pela conquista de prefeituras, depois vieram os governos estaduais e passaram a eleger bancadas expressivas de deputados e senadores, até que, a partir da eleição presidencial de Hugo Chávez, a esquerda chegou ao governo. Logo se seguiram Lula, Nestor Kirchner e todos os outros.
Eu atribuo esse paradoxo a três motivos. O primeiro é o acúmulo de forças das lutas populares ao longo da história e principalmente nas três décadas de luta abertas com o triunfo da Revolução Cubana em 1959. Nós estamos aqui conversando em El Salvador, um país onde ditaduras militares imperaram durante a maior parte do período que se seguiu a 1930. Mesmo quando havia alguma aparência de democracia burguesa, os esforços dos movimentos populares para ocupar espaços institucionais eram bloqueados.
Se não houvesse surgido a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN), que durante doze anos levou adiante uma luta insurrecional conduzida de modo eficiente, a direita não teria sido obrigada a aceitar negociações que resultaram na abertura de um espaço para a atuação política da esquerda. O mesmo se pode dizer da Nicarágua. Quando se considera o impacto de toda a luta insurrecional na América Latina, tanto no caso das experiencias bem-sucedidas quanto daquelas que malograram, percebe-se que isso deixou um saldo político que possibilitou o milagre da abertura de um espaço institucional nunca antes existente na região.
O segundo fator para esse milagre foi o amplo repúdio aos métodos violentos de repressão utilizados pelas ditaduras militares de segurança nacional que se disseminaram pela região após a derrubada de Joao Goulart no Brasil, em 1964. A partir da década de 1980, o uso desses métodos criminosos para manter o sistema capitalista já não é mais aceito na Europa nem nos EUA.
Um terceiro elemento tem a ver com a própria reestruturação económica neoliberal, nas décadas de 1980 e 1990. O imperialismo cometeu um erro de cálculo quando promoveu o mal chamado processo de redemocratização. Esse foi um pacto entre as elites pelo qual os militares foram embora e entregaram o poder aos partidos de direita, que colocaram em prática o projeto neoliberal. O presidente dos EUA era Ronald Reagan. Eles não perceberam a contradição que existe entre o funcionamento democrático da sociedade e a aplicação das políticas neoliberais. As pessoas reagiram, se organizaram para defender seus interesses, reconstruíram os sindicatos. O auge dos movimentos populares foi a luta contra o neoliberalismo. As demandas desses movimentos ganharam uma dimensão política, como ocorreu com a luta do MST no Brasil, a dos cocaleros na Bolívia. Isso é o que fez o milagre que favoreceu a ocupação de crescentes espaços institucionais até a conquista do Poder Executivo.
OM: Como a direita reagiu a esses avanços?
RR: O tempo foi passando, e a democracia liberal burguesa é um sistema de dominação de classe. Ela não está aí para que a esquerda ganhe. E, caso isso aconteça, as classes dominantes possuem mecanismos para colocar na esquerda uma camisa-de-força de tal maneira que não possa modificar nada de fundamental no sistema.
A direita foi, então, utilizando todos os mecanismos de poder de que dispõe dentro do próprio Estado: o Poder Judiciário, quando o controla, o Legislativo, nos casos em que os partidos conservadores têm uma maioria substancial, o funcionalismo público e, além de tudo, o fato de que os chamados governos de esquerda são na realidade governos de coalizão. Foram utilizados os chamados poderes fáticos, ou seja, os meios de comunicação, o grande capital, os monopólios internacionais e também a embaixada dos EUA e de outros países imperialistas. Tudo isso se soma de modo a ir minando a institucionalidade a fim de tornar à esquerda impossível governar.
O que nós temos visto nos diversos países? Em Honduras, prenderam o presidente Zelaya, o colocaram num avião e o tiraram do país. No Paraguai ocorreu o chamado golpe legislativo. No Brasil, houve o julgamento político de Dilma, uma coisa vergonhosa para o país, ver aqueles deputados e senadores corruptos, todos eles investigados pela Justiça, falando de Deus para justificar um golpe. Aqui em El Salvador a oligarquia, por meio da bancada da direita e de um punhado de juízes, vai mudando grosseiramente a Constituição para impedir a esquerda de exercer o governo.
OM: Você acredita que estamos vivendo o final de um ciclo político?
RR: Existe atualmente todo um discurso sobre o encerramento do ciclo progressista, mas isso não passa de um retorno à tese desacreditada do fim da história. É a ideia de que o mundo será eternamente capitalista. E também de que, se houve um parêntesis, um acidente histórico pelo qual governos progressistas foram eleitos na América Latina, isso se explica pela bonança económica gerada pela alta dos preços das matérias-primas. Acabou a bonança e esse acidente histórico se encerrou.
Eu acredito que, sim, existe um ciclo histórico que está terminando, mas por motivos muito diferentes. Trata-se de um período em que a esquerda ocupa determinados espaços na institucionalidade democrática burguesa e instala governos com traços bonapartistas, por meio dos quais as forças populares conseguem fazer avançar suas próprias causas. Já se passaram quase vinte anos desde a primeira eleição de Chávez. Nesse intervalo o imperialismo tratou de se reorganizar e, pouco a pouco, de instalar o cerco aos governos progressistas, até colocar no topo da agenda a expulsão da esquerda.
O imperialismo e a direita não estão dispostos a se alternar no governo com a esquerda. Não se trata de que, no Brasil, a direita agora queira governar por um período e depois permitir que o PT ou qualquer outra forca de esquerda regresse ao governo. Trata-se, isto sim, de expulsar a esquerda dos espaços institucionais e, em particular, do Poder Executivo, e de liquidá-la, para que tenha a menor presença possível no Legislativo. Também faz parte do plano expulsar a esquerda dos governos estaduais, expulsar, fechar a porta e jogar fora a chave, para que não regresse nunca mais. É para isso que promovem toda essa campanha de criminalização dos nossos líderes. No caso de Cristina Kirchner, é preciso condená-la, mandá-la para a prisão. Lula também está sendo criminalizado, querem colocá-lo na cadeia. O objetivo em todos esses casos é fechar o espaço institucional à esquerda.
Acredito que o que se encerrou foi esse espaço. Mudou a correlação de forças que permitiu um Estado bonapartista hoje cada vez menos viável. Existem, é claro, diferenças de país para país, uns que avançaram mais, outros menos. Mas, como tendência geral, o que se percebe é que a direita e o imperialismo já conseguiram reduzir os espaços democráticos que nós tínhamos conseguido abrir. Está se fechando o ciclo progressista e agora é necessário abrir um ciclo revolucionário. Isso não significa, é claro, um retorno à luta armada, mas sim a necessidade de transcender a democracia burguesa e construir uma nova democracia política, económica, social e cultural, de signo popular.
OM: A correlação de forças mudou também no plano internacional?
RR: Sim, existe o cenário de uma crise econômica mundial que se agrava cada vez mais. O capitalismo de hoje é um sistema envelhecido, decadente, que necessita explorar com intensidade crescente, concentrar mais e mais as riquezas. Nesse contexto, as tentativas da esquerda de mostrar bom comportamento, de se apresentar como algo aceitável ao imperialismo e aas oligarquias, de aparecer como uma esquerda light, uma esquerda que não é uma ameaça ao sistema, nada disso resolve o problema. O capitalismo não está disposto a conviver com essa esquerda de características mais moderadas. Por isso é necessário um Macri, um Temer, um Sebastián Piñera no Chile. É preciso que governem aqueles elementos que favorecem a ultraconcentracao da riqueza, a ultradependencia dos nossos países. Os imperialistas não podem se dar ao luxo de que exista uma social-democracia no poder. Aliás, a própria social-democracia foi ganha já faz muito tempo para a causa neoliberal.
OM: Você descarta a possibilidade de retomar o projeto progressista a partir da vitória em futuras eleições?
RR: Eu não vejo a possibilidade de que, se a esquerda voltar a ganhar eleições na Argentina ou no Brasil ou no Paraguai, isso vá resolver o problema. É claro que é positivo obter novamente vitórias eleitorais, mas isso deve ocorrer com base num projeto transformador. As campanhas eleitorais devem ter na sua base um projeto que se proponha realmente a construir o alicerce de uma democracia popular, comunitária, que incorpore todos os tipos de participação democrática que o povo foi construindo dentro da democracia burguesa. E isso não se consegue simplesmente batalhando para ganhar uma eleição.
OM: Então a esquerda fracassou?
RR: Num evento recente, escutei um companheiro, Carlos Fonseca, da Nicarágua, expor uma tese que me pareceu interessante. Ele dizia: bom, se está demonstrado que esses espaços democráticos e populares que nós abrimos tem uma duração limitada, é necessário que no tempo de uma geração política nós sejamos capazes de promover mudanças sociais efetivas, essenciais. Do contrário, caímos na defensiva. Ele entende por geração política o período entre o momento em que uma criança nasce e aquele em que ela completa 18 anos, que é a idade de votar. E é exatamente esse o tempo que já transcorreu aqui na América Latina.
OM: Os governos progressistas são muito diferentes entre si. Uma coisa é a Venezuela bolivariana e outra é o Brasil com Lula e Dilma. Você aplica a sua análise igualmente a todos esses casos?
RR: Num livro, eu esbocei uma espécie de tipologia dos governos progressistas latino-americanos. Em alguns países a chegada de forças de esquerda ao Poder Executivo foi antecedida por graves crises institucionais. Em reação a essas crises, se instalaram governos com melhores condições, maior disposição e vontade de realizar transformações profundas. É o caso da Venezuela e da Bolívia, países onde foi possível fazer novas Constituições, de conteúdo popular. Não se rompeu com o capitalismo, mas ao menos o sistema político institucional evoluiu de tal maneira que hoje existe mais espaco democrático.
E há outros países, como o Brasil e o Uruguai, onde não se chegou ao governo em condições tão favoráveis. Nesses países a esquerda chegou ao governo meio que dizendo: “Sou a esquerda responsável que vai impedir a eclosão da crise”, “vamos aceitar os limites que nos estão sendo impostos”. Há ainda variantes, como a dos movimentos insurrecionais que se tornaram governo, os casos da Nicarágua e de El Salvador. E tem os países onde, na falta de lideranças de esquerda, figuras provenientes do próprio sistema político passaram a exercer um papel progressista. Isso ocorreu na Argentina com os Kirchner, oriundos do peronismo, um partido institucional.
Nos países onde a proposta foi a de fazer transformações mais profundas, se construiu um alicerce mais firme. Esses países fizeram suas Constituintes, mas, ainda assim, as sementes do liberalismo e das suas formas políticas, como mecanismos de dominação de classe, sobreviveram. Isso mostra como a dominação capitalista é capaz de mostrar resiliência de modo a suportar períodos de assédio, debilitamento, refluxo. Do nosso ponto de vista, não basta exercer o poder formal, estabelecer novas instituições, se não conseguimos construir hegemonia. Não basta fazer uma nova Constituição. Se você não tem hegemonia, esse poder formal se volta contra você mesmo. Hoje na Venezuela quem está invocando a Constituição é a direita. Essa Constituição nasceu como um elemento de legitimação de um governo popular. Mas como você perdeu a batalha pela hegemonia, ela se converteu num instrumento contra você.
É o que Gramsci já dizia: não basta o poder formal. O poder principal é o que está dentro da cabeça das pessoas. Na Bolívia a direita fabricou um caso de corrupção inexistente, atribuiu a Evo Morales um filho que não existia, e ele perdeu o referendo em que tentava conseguir o direito de concorrer a mais uma reeleição. A denúncia contra ele era uma grande mentira, mas quando isso foi finalmente demonstrado, já era tarde.
(*) Igor Fuser é doutor em ciência política pela USP e professor de relações internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC)