Transcrição da entrevista em vídeo:
GREGORY WILPERT: Bem-vindo The Real News Network. Sou Gregory Wilpert, falando com vocês, de Quito, Equador.
A maior empresa de construção da América Latina, Odebrecht, negociou com o Departamento de Justiça dos EUA, na 4ª-feira, o pagamento de uma multa de $4,5 bilhões, por ter praticado suborno generalizado de funcionários públicos em todo o mundo. Essa multa é a maior jamais aplicada na história dos EUA pelos termos da Lei Contra Prática de Corrupção Estrangeira [ing. Foreign Corrupt Practices Act] de 1977. Segundo documentos do tribunal, Odebrecht, que tem sede no Brasil e sua subsidiária Braskem, empresa de produtos petroquímicos, pagaram quase $800 milhões em ações de suborno de funcionários dos governos em 12 países, dentre os quais Brasil, México, Colômbia, Peru, República Dominicana, Venezuela, Angola e Moçambique.
Depois que o Departamento de Justiça dos EUA anunciou a sentença, governos afetados pela revelação emitiram comunicados nos quais se comprometem a investigar quem recebeu as propinas. Por exemplo, o presidente do Peru, Pietro Pablo Kuczyinski (...).
Hoje, para examinar mais de perto mais esse escândalo de corrupção, está conosco Rafael Ioris. Rafael é professor de História e Política Latino-americanas na Universidade de Denver. Também é autor de Transforming Brazil: A History of National Development in the Post-War Era. Obrigado, Rafael, por nos receber.
RAFAEL IORIS: Obrigado pelo convite.
GREGORY WILPERT: Comecemos pela reação no Brasil, a essa notícia. Já se sabe que ações já conhecidas de corrupção pela Odebrecht no Brasil resultaram na condenação do presidente executivo da empresa, Marcelo Odebrecht, que cumpre sentença de 19 anos de prisão. Muitos outros políticos foram indiciados ou estão sendo investigados em conexão com propinas pagas pela Odebrecht. Qual está sendo a reação dos políticos no Brasil, na sequência dos mais recentes desenvolvimentos?
RAFAEL IORIS: Bem... Para começar é preciso considerar que, sim, Odebrecht é realmente empresa gigante, com papel de destaque na economia do Brasil e, com certeza, no sistema político brasileiro. E que já é assim há muitos e muitos anos.
No Brasil as investigações caminham já há dois anos pelo menos, na chamada "Operação Lava-jato" e no Ministério Público. Como você já disse, o ex-presidente da empresa Marcelo Odebrecht, herdeiro da fortuna e chefe da família Odebrecht cumpre pena de prisão há alguns meses. Foi condenado em repetidas acusações e, de certo modo, está no centro do debate político e de grande parte da crise econômica em curso no Brasil hoje.
A Operação Lava-jato foi realmente um ponto de virada no processo político, que gerou muita preocupação e incertezas em todo o sistema político, atingindo todos os principais partidos e com certeza também influenciou a atual crise política que levou, em agosto desse ano, ao impeachment de Dilma Rousseff, presidenta do Brasil.
GREGORY WILPERT: Odebrecht, como você mencionou, é uma grande empresa, com longa história no Brasil. Parece-me que foi fundada em 1944. Hoje é das maiores construtoras do mundo. Você pode falar um pouco sobre a história da empresa e de seus envolvimentos e influência na política brasileira?
RAFAEL IORIS: A empresa existe há muitos anos e realmente, nos anos 1940s e 1950s cresceu e expandiu muito, tornando-se o que se define como "empresa gigante' em seu ramo. E é empresa gigante que sempre viveu de vender serviços contratados por governos – sobretudo governos centrais, federais, mas, de fato, em todos os níveis de governo. Não se trata de empresa que construa moradias, ou viva de negócios com entidades privadas. Seu grande objeto são os contratos que obtém com governos, para construir obras públicas. A verdade é que se tornou empresa gigante durante a ditadura no Brasil, que se estendeu de 1964 até 1985. Especialmente nos anos 1970s, quando a economia entrou em rápido crescimento, em grande medida graças a desembolsos massivos do governo federal, inclusive com empréstimos tomados no exterior.
Assim a Odebrecht, com várias outras grandes empresas de construção – Odebrecht, Andrade Gutierrez, Mendes Junior – realmente viveram anos de rápida expansão, todas apoiadas naqueles grandes contratos assinados com governos, para construir infraestrutura, obras públicas, por todo o país. Realmente, essas empresas têm histórias de conexão e de dependência com governos. É muito difícil compreender o crescimento no Brasil e, de fato, o próprio capitalismo no Brasil ao longo dos últimos anos, sem ter em mente essa conexão subterrânea, clandestina, esse casamento assinado no inferno, entre governos (federal e estaduais e todos) e essas grandes empresas construtoras que, nos últimos 15 anos, realmente cresceram também em outros países. Na verdade, desde antes, a partir dos anos 1970s e 1980s, mas especialmente nos últimos 15, 10 anos – e agora já com operações em mais de 20 países em todo o mundo.
Quero dizer: esse relacionamento tem a ver realmente com o núcleo mais duro de como funcionam economia e política. E grande parte do crescimento econômico quando aconteceu, nos últimos 40 anos – sempre dependente de gastos do governo federal, e de grandes obras de infraestrutura, construção de obras públicas em todo o país – sempre conectado a esse, pode-se dizer, esse cartel, de cinco empresas construtoras gigantes.
GREGORY WILPERT: Você falou de conexão nefanda, de um casamento urdido no inferno. Por quê? A empresa sempre esteve envolvida em corrupção de funcionários e autoridades? Sempre trabalhou assim também durante a ditadura? A empresa cresceu mais durante a ditadura?
RAFAEL IORIS: Sim. A maior parte dos dados já organizados sobre contratos específicos tem a ver, hoje, com o específico acordo de delação que a empresa firmou com o Departamento de Justiça aqui nos EUA, principalmente, com os últimos 15 anos. Mas sabe-se e já alguns estudos produzidos nos últimos anos sobre essas conexões – especialmente durante a ditadura.
Como se sabe, as ditaduras cuidam muito de manter um manto de segredo sobre suas operações e é sempre difícil chegar realmente ao âmago dos negócios. E já é história pode-se dizer antiga. Assim hoje, afinal, é que se começa a compreender o que realmente aconteceu.
Mas pode-se dizer que já ninguém duvida de que a expansão dessas empresa enormes de construção – que hoje são das maiores empresas que há no Brasil e que também operam fora do Brasil – sempre esteve conectada com corrupção e sempre envolveu algum nível de propinas e favorecimentos e sobrepreços em contratos que só chegaram a ser o que foram porque eram movidos a dinheiro daqueles altos executivos 'aplicado' em políticos eleitos (e corruptos), de todos os partidos políticos. E isso desde a ditadura, sim, mas especialmente desde a chamada "redemocratização" que aconteceu em meados dos anos 1980s.
GREGORY WILPERT: Como já dissemos na introdução, o caso envolve centenas de milhões de dólares para funcionários de governos em praticamente toda a América do Sul – e você também já disse que o negócio expandiu-se para o mundo. O que lhe parece que esse caso indique sobre o papel de grandes empresas privadas na política latino-americana e a persistência da corrupção na região?
RAFAEL IORIS: Primeiro, que é interessante, de algum modo irônico, se não, mesmo, trágico, que por um lado, a maioria dos países latino-americanos, inclusive o Brasil, têm legislação muito mais rígida sobre doação de dinheiro a partidos políticos e campanhas, que os EUA. E o gasto público também é muito alto, em tempo pago de TV (o Supremo Tribunal Eleitoral paga às redes para veicularem o que se chama "propaganda eleitoral gratuita", Mas não é gratuita), nas campanhas eleitorais. Mas nada disso infelizmente foi suficiente para conter a intervenção das grandes empresas, como essas construtoras, imobiliárias em geral e, claro, os bancos. Tudo aí se articula entre dois tipos de fatores ativos na economia, principais legisladores eleitos, dois partidos políticos e empresas que dependem de decisões dos legisladores eleitos.
Tudo isso para dizer que essas empresas têm e continuam a ter esse papel nefando dentro do sistema político. Apesar de tentativas para conter esse processo, e esse debate já tem vários anos, no Brasil. Se as campanhas serão pagas só com dinheiro público ou se haverá também dinheiro de empresas privadas, e ainda nada está decidido. Principalmente agora, com o retrocesso na direção da política mais conservadora no Brasil. Acho muito difícil que haja qualquer tipo de controle efetivo sobre o dinheiro privado em futuras eleições.
Esse talvez seja o pior efeito dos escândalos de corrupção que enchem as páginas dos jornais: o governo, a autoridade de governos eleitos é realmente arranhada. Políticos eleitos realmente participaram de ações de corrupção. A ideia de o setor público ser encarregado de gerir os principais setores da economia foi realmente arranhada... A discussão rapidamente toma o rumo de 'será que o Estado' seria capaz de gerir eleições gerais?
Não seria o caso de liberar realmente todos e quaisquer fluxos de dinheiro, uma vez que os 'controles' deram em nada? A questão está no ar, e assume rapidamente o formato de 'discussões sobre leis'... Leis e mais leis que conseguiriam controlar as vias de corrupção, regular mais, dar conta dos problemas... Essa discussão com certeza está ativada em todos os países da América Latina.
Além de corrupção dos mais altos executivos e funcionários do Executivo, a corrupção também tem a ver com a fragmentação de partidos políticos em quase toda a América Latina, com partidos q, em alguns casos, nem são diferentes entre eles, mas viram novas e novas 'linhas' com potencial para receber dinheiro da corrupção. Não significa dizer que o sistema bipartidário dos EUA seja ideal e, com certeza é desejável que haja mais de dois partidos, mas o excesso também é problemático.
Não se pode deixar de considerar que muitas das coalizões atualmente governantes na América Latina dependem de apoio do Congresso – são sistemas presidencialistas –, para aprovar leis, o que implica que o dinheiro sempre tome a direção de alguns específicos líderes políticos 'articuladores'. Há também o processo de angariar votos nas próprias bases eleitorais, com serviços públicos, grandes construções sempre muito 'visíveis', e em todos esses processos estão presentes as megaconstrutoras.
Suborno de autoridades é como 'um item' dos custos dessas grandes empresas, tanto quanto as doações para campanhas eleitorais (grande parte dessas doações acabam sempre nos cofres das redes de TV, que recebem por veiculação de propaganda eleitoral e, também, para promover os candidatos 'associados' a seus principais anunciantes [NTs]). Esses deputados e senadores eleitos 'alugados' passam a garantir apoio às coalizões governantes. As construções nos respectivos estados, por sua vez, ajudam a reeleger sempre os mesmos grupos, de deputados e senadores corruptos e de empresas corruptoras, os quais só servirão de base de apoio para governos que aceitem operar pelas regras desses negócios, vale dizer, pelas regras da corrupção de políticos por grandes empresas construtoras e bancos. As empresas pagam pelas campanhas, e assim se gera esse círculo viciado que envolve o setor privado e os braços Executivo e Legislativo dos governos estaduais e nacionais.
GREGORY WILPERT: Queria voltar rapidamente, antes de encerrar, à questão de o que tudo isso significa para as relações entre EUA e América Latina. Quero dizer, em certo sentido é um caso pouco comum. Afinal é a maior multa jamais cobrada nos termos da lei norte-americana contra práticas de corrupção nos EUA, mas na verdade não envolve muitas entidades ou empresas norte-americanas. O agente corruptor é estrangeiro, mas os agentes corrompidos não são norte-americanos... O que lhe parece que esse acordo diga sobre o papel dos EUA, o verdadeiro papel, dos EUA na América do Sul e as relações entre EUA e América Latina?
RAFEL IORIS: Verdade. [EUA] Estado-polícia. Essa é operação que envolveu empresas e investigações no Brasil, Suíça e EUA. Mas, claro, foi provocada, na verdade, em grande parte, por ações do sistema judiciário nos EUA. Mas dizem aqui que estariam cooperando com autoridades suíças e brasileiras, e que o dinheiro arrecadado com as multas, de fato quase todo, será revertido para o governo do Brasil, como um modo de restituir o dinheiro da corrupção. OK. Mas acho que, antes, temos de considerar um pouco a ironia de tudo isso.
O governo dos EUA e as políticas externas dos EUA especialmente para a América Latina sempre foram, historicamente, políticas paternalistas. Mas no melhor dos casos esse paternalismo foi muito pouco condescendente. E no pior dos casos incluiu as práticas e intervenções mais nefandas. Pelo menos durante toda a Guerra Fria, os EUA apoiaram os governos mais autoritários e mais corruptos em toda a América Latina, inclusive no Brasil.
Assim sendo, chega a ser irônico o modo como o sistema dos EUA, repentinamente, põe-se a trabalhar na direção exatamente oposta de tudo que ele mesmo fez durante tanto tempo, e quer-se mostrar agora num papel mais construtivo.
Mesmo assim, talvez seja potencialmente uma coisa boa, que talvez ajude a melhorar as investigações e promova melhores soluções em pelo menos alguns casos de corrupção que são muito, muito presentes nos sistemas políticos do Brasil e de toda a América Latina. Temos obrigação de esperar pelo melhor. Talvez se trate, mesmo, de lavar aquele legado imundo dos EUA naquela região.
Mas há aí uma ironia também envolvida aí Os EUA mais uma vez estão operando de modo q se pode dizer "superdistendido", como se tivessem alguma autoridade legítima sobre toda a região para, pode-se dizer, ensinar anticorrupção à América Latina.
Nessa direção, não se pode deixar de considerar o nacionalismo envolvido nessas questões, especialmente no Peru e agora também em Quito, onde o governo nacionalista de Rafael Correa fala do "imperialismo gringo". Tudo isso está envolvido também nessas questões sobre as quais estamos falando.
Vamos esperar que se criem relações de melhor cooperação, para que a luta contra a corrupção seja mais efetiva, mas não se devem esperar novidades para breve, há muita coisa pela frente.
No Brasil, sim, essas são as questões mais 'quentes' hoje. Sinceramente não tenho muitas esperanças de que alguma coisa seja realmente reformada. O mais provável, me parece, é que tudo continuará, que os mecanismos de corrupção continuarão a ser reproduzir.
Hoje, a situação política no Brasil é extremamente fluida. O atual presidente, que era vice-presidente no governo da presidenta Rousseff, derrubada por impeachment, talvez consiga manter-se no poder até as eleições, talvez não. Por enquanto ainda é impossível prever. Temos de esperar.
[Despedidas e fim da entrevista]