A crise do governo Temer e do projeto das classes dominantes se aprofundou com as delações do Grupo JBS, está em momento delicado de definição sobre o que fazer para assegurar a estabilidade institucional, dar sequência às reformas antipopulares de austeridade fiscal e retomar o domínio político no Congresso Nacional, na mídia e nas ruas. Na confusão generalizada é preciso verificar o que a crise abre de espaço para o avanço das forças populares, progressistas e de esquerda, e o que não passa de manobra das forças elitistas, conservadoras e da direita para continuar firme no controle do País, com Temer ou sem Temer.
Vale lembrar que o governo Temer nasceu da crise que causou o colapso do governo Dilma, o qual, mesmo entregue para a gestão direta do capital rentista (Joaquim Levy), perdeu o respaldo da base aliada no Congresso Nacional e caiu em total descrédito nas classes médias e setores populares. Temer passou um ano sem se livrar da crise, não reverteu o desemprego, governou com baixíssima popularidade, conseguiu articular maioria no Congresso Nacional para aprovar algumas medidas, mas não todas, e, assim mesmo, foi muito fustigado por protestos e desgaste constante do envolvimento de sua equipe nos crimes apurados pela Operação Lava Jato.
Expressei um pouco dessa situação no artigo publicado pelo Correio da Cidadania em 27.01.2017, quando afirmo o seguinte: “Não faz o menor sentido a esquerda embarcar na aleatória disputa entre facções da burguesia, divididas entre o apoio ao Temer e a busca de uma alternativa ao Temer. Também não faz o menor sentido entrar no jogo do lulismo, que encena agora o papel de oposição, faz suposta campanha para antecipar as eleições tão somente para dificultar eventual condenação de Lula nos vários processos em que é réu”. O cenário já estava descortinado em janeiro. O que marca o momento atual é que a crise foi agudizada pelas facções dominantes e ficou mais acirrada na luta aberta das instituições.
A burguesia só dispensou Dilma no final de 2015 quando percebeu que ela não reunia mais as mínimas condições de fazer as reformas exigidas. A situação de Temer, agora, é quase a mesma. Sua permanência vai depender se consegue manter a necessária governabilidade para tocar as reformas, se consegue evitar os vários pedidos de impeachment e se consegue estancar seu desmoronamento junto à Procuradoria Geral da República e ao Supremo Tribunal Federal. Até hoje, dias após a delação da JBS, perdeu o apoio de alguns poucos deputados, de parte da mídia empresarial, do que restava de aprovação na opinião pública e de algumas entidades significativas como a OAB. Mas mantém uma ampla base no Congresso Nacional.
Autofragelação
O agravamento da crise se deu de forma inesperada e explosiva. Não teve nada a ver com a pressão das ruas contra os projetos das reformas trabalhista e da Previdência; nem por causa da oposição de centrais sindicais, dos movimentos sociais e dos partidos que deram sustentação aos governos anteriores. O estopim dessa vez foi a delação de megaempresários do grupo JBS ao Ministério Público Federal negociada diretamente com a Procuradoria Geral da República e com o ministro relator da Operação Lava Jato no STF. É gente da burguesia nacional atirando no projeto da burguesia no salve-se quem puder criado pela Operação Lava Jato.
Quem alvejou o presidente da República com tiro de bazuca, e de quebra levou junto o senador Aécio Neves (até então presidente do PSDB, segundo maior partido da base aliada) e mais uma centena de políticos de 28 partidos, inclusive os ex-presidentes Lula e Dilma, do PT, foi nada menos do que um quadro referencial da mais promissora burguesia nacional. Foi justamente a dupla empresarial que mais mamou em dinheiro barato do BNDES, facilitado pelos últimos governos, e que se tornou potência internacional de maneira inusitada, em poucos anos, em diversas áreas de atividades econômicas desde geração de energia elétrica, papel e celulose, até banco de negócios.
Essa é uma questão chave no atual processo: um cachorro grande do capital nacional atinge em cheio um governo que está tocando o programa desejado pela burguesia nacional com a ajuda da mais poderosa mídia empresarial (Globo) e de instituições tradicionalmente afinadas com as classes dominantes (PGR e STF). A agudização da crise bagunça a planejada transição do governo Temer de chegar até 2018 com as reformas aprovadas e a economia fora da recessão. A nova escalada da crise introduz novos elementos de fragilização do governo, como a virtualidade da renúncia, do impeachment ou da cassação pelo TSE. E coloca também no debate a viabilidade de novo governo de transição, seja pela eleição indireta no Congresso Nacional e, se for o caso, até mesmo pela realização de ele ição direta mediante mudança da Constituição Federal e do calendário eleitoral.
Controle
É claro que a burguesia atua rapidamente para manobrar todas as situações, já que importa para ela garantir que o programa neoliberal e as reformas sejam impostos à sociedade, não importa se pelo governo Temer ou por qualquer outro governo saído dessa crise. No caso de vacância da presidência (renúncia, impeachment ou cassação), a escolha de novo governo via Congresso Nacional, com ritual definido pelo STF, conforme a previsão constitucional, pode ser uma manobra razoavelmente controlada pelas classes dominantes, tendo em vista que a base parlamentar fecha com o programa retrógado e antipopular sem maior dificuldade, desde que tenha alguma garantia de chegar às eleições gerais de 2018 sem maiores impedimentos.
Se Temer não estabilizar a situação nas próximas semanas e se vier a ser cassado pelo TSE no mês de junho, o caminho da eleição indireta tende a contar com a grande maioria do Congresso Nacional e com respaldo institucional do STF. Nada impede inclusive a realização de um acordo mais amplo com a participação de parte da oposição (por exemplo, com PT, PDT, PSB e PCdoB) se contiver eventual anistia para que processados na Operação Lava Jato possam participar do pleito de 2018 sem restrições. Tal encaminhamento, evidentemente, não elimina a defesa pública e a luta real pelas eleições diretas-já. Mas, com certeza, essa manobra pode ser um fator de divisão e de enfraquecimento das forças populares e de esquerda que apostam nessa bandeira, seja pra valer ou tão somente para ac& amp; amp; uacute;mulo de forças.
As forças populares, progressistas e de esquerda precisam ter claro que a maior possibilidade de avanço na atual crise está em não abrir mão de se opor ao que é mesmo o objeto de desejo das classes dominantes e de seu projeto neoliberal, que é retirar dos trabalhadores conquistas e direitos consolidados nas leis trabalhistas e da Previdência Social. A defesa dessas bandeiras deve ser a linha mestra de conduta dos trabalhadores e do povo diante de qualquer governo de plantão, não importa que venha a ser eleito indireta ou diretamente. A forma de eleição não muda a questão central do conflito colocado hoje na sociedade brasileira, que é decidir quem vai pagar pela crise gerada pelo capitalismo, se são os ricos e donos do capital ou se são os trabalhadores e os pobres. A prova disso é que a Dilma fez um discurso na campanh a de 2014 totalmente ao contrário do programa que tentou implantar depois de reeleita.
Está na cara que as manobras da burguesia diante da crise estão em dispor para a sociedade falsas disputas e falsos conflitos, entorpecer a visão e embaralhar as opções. Está claro que tal estratégia visa não apenas rearranjar as forças da ordem, que apoiaram Lula e Dilma, apoiaram Temer e podem apoiar um eventual novo governo como se fosse algo realmente novo, quando na verdade é algo recauchutado para tocar o mesmo programa de sempre. Visa também abrir a porta para grupos, partidos e forças políticas que caminharam para a oposição, mas que podem voltar ao leito da conciliação do qual já fizeram parte, desde que se sintam novamente coparticipantes do governo. Enquanto a grande mídia debate o que fazer com Temer, cassação ou não, direta ou indireta, o governo e o Congresso tratam de manter a agenda das reformas. Isso é o vale para a burguesia.
A manobra dos grupos dominantes visa também domesticar os movimentos sociais organizados e isolar os grupos e setores radicalizados das forças populares, progressistas e de esquerda, justamente aquelas que fazem o enfrentamento aberto contra o projeto neoliberal e que podem ganhar força agora com manifestações em todo o País. Isso pode acontecer, por exemplo, se a oposição atual continuar com apenas as bandeiras do “Fora Temer” e das “Eleições Diretas Já”. No caso do “Fora Temer”, a renúncia, o impeachment ou a cassação já eliminam essa bandeira. E o que muda com Rodrigo Maia na presidência ou com a eleição indireta de um presidente da confiança do atual Congresso Nacional? Praticamente nada.
No caso das “Eleições Diretas Já”, supondo-se que aconteça um grande acordo para a aprovação de uma Emenda Constitucional introduzindo a convocação de “Eleições Diretas Já”, quais as chances de uma vitória das forças populares, progressistas e de esquerda? Nas duas situações possíveis, tudo indica que os governos eleitos direta ou indiretamente continuarão expressando o programa atual das classes dominantes, talvez com a legitimidade que falta ao governo Temer.
O PT aprovou a bandeira das “Eleições Diretas Já” não porque acredita e queira que as eleições sejam mesmo realizadas imediatamente, mas porque permite ao partido surfar nas manifestações populares e nos protestos de ruas, acumular forças para as eleições gerais de 2018 e tentar recuperar parte do eleitorado perdido diante das denúncias de corrupção. Ao mesmo tempo, o partido quer usar a bandeira das “Eleições Diretas Já” para criar uma espécie de salvo-conduto ao candidato Lula coerente com o discurso de que ele é perseguido político, quando todo mundo sabe que os crimes de Lula são crimes comuns, estão no Código Penal, tratam de corrupção, ocultação de patrimônio, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha. At& amp; amp; eacute; mesmo os últimos vassalos do lulismo sabem que o ex-presidente é capaz de levar o PT à destruição total para não ter de assumir a responsabilidade por seus erros e prestar contas à Justiça.
Enfrentamento
Assim, para as oposições populares, progressistas e de esquerda, a luta do “Fora Temer” e das “Eleições Diretas Já” não podem ser as principais bandeiras de acumulação e de enfrentamento, pois não são também as principais bandeiras que assustam a burguesia. As bandeiras que realmente confrontam as classes dominantes têm a ver com a defesa intransigente dos trabalhadores e do povo, contra a desigualdade, contra essa tentativa de jogar nas costas dos mais pobres o pagamento da crise gerada pelo capital. Tais bandeiras só podem ser aquelas que preservam direitos e conquistas, que não deixam que o trabalho seja precarizado, que não reduza salários e nem piore as condições de vida e de trabalho das classes trabalhadoras. “Nenhum Direito a Menos”, “Fora Reforma Trabalhista”, &am p;am p;ld quo;Fora Reforma da Previdência” – essas sim são as bandeiras que aglutinam os trabalhadores e os movimentos populares e não serão engolidas nas manipulações da burguesia diante da crise atual.
Para as forças populares e de esquerda, essa crise é mesmo uma rara oportunidade de desgastar ao máximo os governos da burguesia, fustigar ao máximo o seu programa neoliberal, desmascarar todos os seus métodos de fazer política, tanto de manipulação pela mídia quanto da corrupção deslavada nas relações entre o público e o privado. É sim a oportunidade de acumular forças, colocar a luta nas ruas e nos locais de trabalho, mudar a atual correlação e derrubar o governo de plantão, seja com Temer, Maia ou quem mais estiver a serviço do jogo dominante. O Brasil precisa de um governo que não tenha nada a ver com os governos do passado, um governo que inaugure uma nova era de prosperidade para o povo brasileiro.
Hamilton Octavio de Souza é jornalista e professor.