O feminicídio corresponde ao assassinato de mulheres pelo fato de serem mulheres. No Brasil, esse tipo de assassinato tem aumentado. Segundo os dados do Mapa da Violência de 2012, em sua atualização dos dados específicos sobre homicídio de mulheres no Brasil, há registro do assassinato de 92.100 mulheres no país entre 1980 e 2010. Em 2010, esse registro foi de 4.465 mulheres assassinadas.
Um estudo mais recente do IPEA fala em 5,82 mortes a cada 100 mil mulheres entre 2009 e 2011 – reproduzindo o destaque do relatório, uma média de 5.664 mortes por ano, 472 a cada mês, 15,52 a cada dia, uma a cada hora e meia.
Segundo dados presentes no Mapa da Violência, um número inferior, de 4,4 mulheres a cada 100 mil habitantes no ano de 2009, deu ao Brasil a quinta posição entre 84 países que tiveram seus índices de homicídios contra mulheres comparados pela Organização Mundial de Saúde.
A maior parte dessas mulheres é jovem e tem baixa escolaridade. Segundo o estudo do IPEA, 61% delas são negras. Dados apresentados pelo Mapa da Violência mostram que em 71,8% dos registros de atendimento a violência ocorreu na casa das mulheres. Trata-se de um padrão fundamental para o entendimento do feminicídio: mulheres de diferentes faixas etárias são agredidas no espaço doméstico, por pessoas que lhes são próximas – pais, tios, namorados, companheiros.
E, apesar da enorme importância da Lei Maria da Penha, de 2006, os estudos disponíveis indicam que houve pouco avanço na prevenção do homicídio de mulheres por homens que lhes são próximos.
Não são dados novos para quem está atenta ao tema. O Brasil é uma sociedade na qual mulheres são violentadas e assassinadas rotineiramente.
O feminicídio é o limite de formas de opressão e dominação que recusam às mulheres sua individualidade. O fato de que em tantos casos os assassinos sejam ex-namorados e ex-companheiros que não aceitam que a vida das mulheres exista sem que sejam parte dela é característico de tal recusa (vale conferir a denúncia feita por meio de registros aqui).
“Machismo mata”, como vem sendo afirmado por diferentes movimentos feministas nas últimas décadas. O sentido dessa afirmação pode ser tomado em sua amplitude e complexidade. O que me parece importante é compreender que muitas das formas hoje correntes de reação contra os direitos das mulheres e a igualdade de gênero, no campo político e no cotidiano, contribuem para a reprodução de um cenário no qual essa violência toma forma e é aceita.
A aprovação de leis que permitem punir adequadamente a violência contra as mulheres, que é sem dúvida uma das principais conquistas no Brasil nos anos recentes, é uma afirmação de que o Estado não compactua com essa violência, e pune os agressores. A ação do Estado é fundamental em contextos nos quais a intimidade das mulheres é marcada, ao menos potencialmente, por constrangimentos, abusos e violência. Ativistas e pesquisadoras procuram, hoje, reduzir os obstáculos à efetividade das leis, tendo clareza da sua relevância.
Em outras frentes, no entanto, permanecem afirmações cotidianas de que as mulheres são menos do que indivíduos – são corpos objetificados, são corpos que se definem da perspectiva masculina, são sujeitos que precisam do controle dos homens que lhes são próximos ou do Estado. No Brasil, o conservadorismo no Congresso Nacional nos temas relativos à família, à sexualidade e aos direitos reprodutivos, em que se destaca a legislação relativa ao aborto e o chamado “combate à ideologia de gênero”, é um exemplo de como o machismo que mata permanece cultivado e reafirmado.
Há mediações, é claro, entre o “combate ao gênero”, a criminalização do aborto e o assassinato de mulheres, mas a recusa a defini-las como cidadãs em pé de igualdade com os homens compõe o caldo em que a violência contra elas é, como dito, produzida e aceita socialmente.
É em um contexto de mudanças na posição relativa das mulheres que assédio, violência sexual e assassinatos reafirmam para elas uma posição de menor valor. A dupla moral sexual, que engrossa o caldo de que falava, o do conservadorismo, é um componente importante na reprodução da ideia que os “desvios” das mulheres – o fim de um relacionamento, o envolvimento com “outro” homem ou com uma mulher – é que teriam levado à violência.
No livro Chicas Muertas (Literatura Random House, 2015), a escritora argentina Selva Almada procura reconstruir o contexto do assassinato de três jovens mulheres argentinas nos anos 1980, Andrea, Maria Luiza e Sarita, três casos nos quais não houve condenação dos assassinos ou mesmo o esclarecimento do que se deu.
A busca de informações sobre essas mulheres fez com que se deparasse, permanentemente, com casos de outras tantas mulheres, quase sempre jovens, que com menor ou maior atenção pública tiveram suas vidas interrompidas de maneira violenta pelo fato de serem mulheres. O cuidado para individualizar essas mulheres anda, no livro, junto com a busca de compreender a posição em que foram colocadas.
Nesse esforço literário-jornalístico, Almada expõe algo que os estudos têm mostrado: a violência faz parte do cotidiano das mulheres, está permanentemente no seu horizonte, produz comportamentos e receios que constituem suas trajetórias. “Yo creo – diz Almada – que lo que tenemos que conseguir es reconstruir cómo el mundo las miraba a ellas”, para que seja possível assim compreender o olhar que lhes era possível ter sobre o mundo.
Nota:
Para aprofundar a reflexão sobre questões de gênero, o impacto do feminismo na teoria política e as diferentes matizes e debates em torno da luta e da teoria da emancipação das mulheres, recomendamos a leitura de Feminismo e política: uma introdução, de Flávia Biroli e Luis Felipe Miguel, que oferece um inédito e didático panorama do feminismo hoje.
Flávia Biroli é professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde edita a Revista Brasileira de Ciência Política e coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê.
Publicado originalmente no Blog da Boitempo em 11 de agosto de 2015.